Uma conversa entre escritoras: Valeska Torres entrevista Heleine Fernandes

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
20 min readApr 9, 2020

[Entrevista feita através de áudio de WhatsApp no dia 22 de março de 2020.]

VALESKA TORRES: Você comentou comigo no evento III Seminário Mulher, Poder e Democracia, no CCJF sobre o quanto demorou para compartilhar seus poemas para as pessoas, pois justamente, durante um período passado outras pessoas haviam te desmotivado. Como foi esse processo de se reconhecer poeta? Teve alguém importante nesse processo?

HELEINE FERNANDES: Só antes de responder, como vai ser uma publicação na Mulheres Que Escrevem, quero registrar um agradecimento, porque publiquei recentemente uma série de poemas nesta plataforma muito por estímulo da Estela Rosa, que é uma querida, e que colocou muita pilha para que eu mandasse poemas, escrevesse ensaios, enfim, foi bem importante. E também agradecer à Taís Bravo.

Bom, eu escrevo desde criança, desde que me lembro. São muitas memórias de uma criança que ficava muito tempo sozinha e que usava muito desse tempo para escrever. Então a escrita para mim é alguma coisa muito íntima, cotidiana, não é alguma coisa que está no lugar da exceção. Só que é muito diferente quando essa escrita se coloca pro mundo, porque sempre tem uma avaliação da validade daquele escrito, que não existe quando se está no espaço da intimidade: porque a escrita se faz, ela é válida, importante, necessária e eficaz. Então acho muito diferente um exercício de escrita que, de fato, quer afetar os outros e um exercício de escrita que é para você se afetar com o mundo e poder elaborar suas questões, uma escrita mais de autoconhecimento mesmo. Essa escrita íntima de autoconhecimento eu sempre fiz, sempre me reconheci no lugar de uma pessoa que tem uma relação muito forte com a escrita.

Me formei em Letras. Fui para o curso porque eu gostava de escrever, essa era a minha orientação para fazer Letras… só que a faculdade vai te colocando muitos padrões de qualidade sobre aquilo que é o literário, o melhor, o interessante, o que seria literatura e o que não seria literatura. Essa minha formação, que foi muito importante, também me desestimulou bastante no sentido de achar que o que eu escrevia não tinha qualidade. Ao longo do tempo fiquei com a sensação de que a minha escrita só servia para mim, não servia para compartilhar com uma comunidade. Apesar disso, fiz vários ensaios: fiz livrinhos artesanais, que circularam entre os meus amigos, mostrei poemas para um professor ou outro, para colegas… Fiz algumas tentativas, mas quase sempre a minha sensação era de que não existia uma resposta muito entusiasmada, então isso também foi me deixando um pouco ressabiada. Por isso, tomei uma decisão, que durou até pouco tempo, de não mostrar nada para ninguém, de escrever independente de qualquer efeito que isso pudesse produzir nas outras pessoas, porque já que a escrita servia muito para mim, na minha relação comigo mesma e com o mundo, como essa escrita para mim era muito fundamental, eu não queria que ela fosse ameaçada pela opinião das outras pessoas. (…)

Muitas vezes esse julgamento do que é de qualidade e do que não é está pautada no modelo eurocêntrico de poesia. Na Faculdade de Letras, especialmente, muito da nossa formação está pautada em modelos europeus, em poesia francesa, americana… a gente estuda literatura brasileira também, mas mesmo os poetas que a gente estuda, que são os consagrados, muitas vezes estão pautados nesses modelos eurocêntricos de qualidade. O que eu produzo não se afina a esses modelos. Nos últimos anos, estou numa caminhada de me desviar dos padrões eurocêntricos que integram a minha formação acadêmica.

Na minha graduação, eu sempre estudei poesias de mulheres, justamente porque sou uma mulher que escreve. Então, eu acho que secretamente sempre me achei poeta, mas não assumia publicamente isso para não ser questionada, não estava afim de entrar nesse embate, de questionamento do que eu era ou do que eu não era. Sempre estudei mulheres porque meu interesse era, justamente, descobrir a poeta que eu sou, que quero ser e que serei ainda. Mas só nos últimos seis anos me dei conta de que as mulheres que escolhia para escrever eram mulheres brancas, de uma classe social diferente da minha. Sou uma mulher que nasceu e cresceu na favela, de uma família negra; acessei a faculdade, ascendi socialmente, mas muito do que eu sou tem a ver com essa origem, com a minha conexão com os meus familiares, com a minha ancestralidade e com os problemas do meu povo, que é o povo negro. Então, me dar conta de onde eu estava circulando intelectualmente (um meio muito embranquecido) e quem eu era modificou muito a minha escrita. Quando eu me dei conta de que só estudava poetas brancas, percebi que muito das coisas que essas moças falavam tinha a ver comigo, mas muito do que eu sou não estava ali. E não tinha como estar! Aí fui buscar essa poesia escrita por poetas negras, contemporâneas e do passado, e isso foi me causando um impacto muito grande, porque não conhecia e não tinha dimensão do que poderia ser. Com o tempo isso foi modificando também a minha escrita, pois pude ter modelos mais adequados às minhas experiências e ao que eu desejava fazer. Foi uma virada de chave muito importante para mudar o meu jeito de me colocar no mundo, minha autoestima e, consequentemente, o que escrevo.

Assim, eu acho que essa minha nova tentativa de mostrar o que eu escrevo está sendo mais bem-sucedida porque vem de uma elaboração, de um caminho longo, que já carrega uma bagagem. Minha escrita está sendo interessante para outras pessoas também nesse momento específico, em que existe a demanda por outras poéticas, pela reverberação de outros lugares de falas. Esse é um momento muito oportuno e que foi construído com muita luta por intelectuais negras e negros mais velhos e ancestrais.

Sobre a questão do encorajamento, uma pessoa importante para mim foi a Lubi Prates, que conheci numa oficina de escrita ministrada por ela. Essas oficinas são um fenômeno muito incrível, têm acontecido muitas oficinas de escrita voltadas para mulheres negras que estimulam a narrativa de suas histórias de vida. Isso é muito potente! Fiz algumas oficinas, a da Lubi Prates, da Carolina Rocha e da Kátia Santos, e elas criaram espaços de acolhimento e de estímulo para que eu escrevesse minhas histórias ao meu modo, sem uma grande preocupação com a estética, isso que acredito ser libertador. Nesses espaços, o mais importante era que a escrita falasse de você e permitisse que você se descobrisse. A Lubi Prates, especialmente, se tornou uma amiga, reconheceu na minha escrita um valor, apostou e aposta muito em mim, me dando várias oportunidades. A gente se apoia muito hoje e isso é muito lindo!

Eu estava num momento de autoestima muito baixa em relação à minha escrita, e com essas relações com intelectuais negras escritoras pude ir me fortalecendo e encorajando novamente no sentido de compartilhar o que escrevia.

VT: Heleine é muito bom te ouvir, principalmente, quando você me diz que a academia foi o lugar que te podou, pois ela apresenta poetas que trabalham muito mais o teor estético do que o fator vivência. Isso me puxa para outra pergunta: na sua tese, você investiga as poetas na literatura negra-brasileira. Entre elas, seu objeto de pesquisa foram as poetas Conceição Evaristo, Lívia Natalia e Tatiana Nascimento. Me conta, diante a tudo isso, como foi decidir trabalhar essa temática dentro da academia?

HF: Defendi essa tese no meio do ano passado sobre a poesia afro-feminina, produzida por poetas negras contemporâneas, e o epistemicídio, que é um termo do Boaventura dos Santos, de que a Sueli Carneiro também fala. É um termo para dizer do apagamento de outras epistemologias, de outros saberes, de outras formas de ver o mundo, de verdades produzidas por povos não europeus que foram colonizados e subjugados. Então, eu estudo como essas poetas — Conceição Evaristo, Lívia Natalia e Tatiana Nascimento — combatem o apagamento de outras epistemologias, no caso, de epistemologias afrocentradas.

Olha, a minha permanência na universidade tem muita relação com uma questão financeira. Minha família sempre foi dura, mas sempre apostou nos meus estudos. Eu gostava de estudar, então ficou mais fácil para mim. Entrar na universidade foi uma puta oportunidade de vida, e eu só comecei a ganhar dinheiro quando eu entrei na faculdade, através das bolsas de estudo. Sendo assim, sou um fruto de políticas públicas que investiram em pesquisa científica. Antes de entrar na universidade, eu não conseguia ganhar dinheiro que me possibilitasse sair da casa da minha mãe e fazer minhas coisas. Muito da minha permanência na universidade tem relação com gostar de estudar, mas também com conseguir ganhar dinheiro com as bolsas. Isso fez com que eu criasse uma relação profissional com o estudo.

Fui avançando nas pesquisas, mas tive muita dificuldade em conseguir professores que me orientassem. Tive dois professores orientadores, primeiro o Ary Pimentel e depois o Alberto Pucheu. Os dois foram muito importantes e apostaram em mim. Com o Pucheu a relação foi mais longa, com ele fiz o mestrado e o doutorado, coisas que nunca pensei que poderia fazer. Entrei no doutorado com uma pesquisa sobre poesia contemporânea produzida por mulheres, todas brancas. Estudava a Ana Cristina Cesar e depois passei a escrever sobre a Angélica Freitas, a Anita Costa Malufe e a Marília Garcia. Só que entrei numa super crise porque essa pesquisa não fazia sentido pra mim e eu não entendia o porquê. Fiquei muito tempo sem entender. Aí teve um evento muito importante, que foi a Flip de 2016, em homenagem à Ana Cristina César, autora que eu estudava desde a graduação. Essa foi a Flip em que houve o grande questionamento sobre a ausência de escritoras e intelectuais negras em eventos literários. Esse questionamento foi levantado pelas intelectuais negras da UFRJ, um grupo que tinha a Giovana Xavier, a Janete Santos Ribeiro, dentre outras intelectuais, e que fez circular a carta “Arraiá da Branquidade”, em que elas questionavam a invisibilidade de intelectuais negras e falavam dos efeitos do epistemicídio. Em um evento dedicado às mulheres, por que não havia mulheres negras? Como assim!? As mulheres negras não são mulheres? Esse questionamento mobilizou e incomodou muita gente na Letras da UFRJ. Foi um incômodo bastante produtivo. Numa discussão com o meu orientador na época, o Alberto Pucheu, debatemos muito sobre esse assunto e ele me colocou a seguinte questão: Você tá falando que essa carta é importante, mas e você, que só estuda poeta branca? (Risos). Foi incrível! Nem tinha me dado conta disso ainda! Só estudo poetas brancas, caralho! E quais são as poetas negras que eu conheço? Nenhuma! Perdi o chão! E foi super importante perder esse chão, só que também foi muito difícil me dar conta de que eu nunca tinha estudado uma poeta negra-brasileira, nem um poeta negro-brasileiro ao longo da minha formação inteira… eu já estava no doutorado! Mesmo Machado da Assis, na Letras da UFRJ, era um autor embranquecido pra caramba!

Isso tudo pra mim foi muito difícil, ainda mais por que minha entrada no doutorado tinha sido muito complicada, marcada por um episódio de racismo. Minha defesa do mestrado também foi marcada por outro episódio de racismo. Eu estava muito machucada pela academia, profundamente magoada e machucada, com a autoestima lá embaixo. Então, pensei em desistir, em jogar tudo pra cima, achando que aquele não era meu lugar mesmo, que eu não tinha que investir energia na universidade. Já que a academia não trazia a minha ancestralidade, por que estar ali? Fiquei muito mal, mas o que me segurou, mais uma vez, foi a bolsa. Apesar de ter passado por um episódio de racismo na entrada do doutorado, eu ganhei bolsa logo no primeiro semestre, o que mostrava que eu tinha que estar ali, era super adequado eu estar ali. Acabei concluindo meu doutorado porque aquele dinheiro era importante para minha sobrevivência, para a garantia da minha segurança financeira.

A partir de então, eu passei por um puta processo pra poder conseguir chegar nesse projeto de discutir o apagamento de pensamento de mulheres negras na literatura brasileira e descobrir poetas negras-brasileiras, me reconhecer nelas e me dedicar amorosamente a três delas, que acho que são muito representativas nesse cenário contemporâneo. Foi tudo muito sofrido, dolorido, foi uma travessia no deserto, mas foi extremamente importante, minha vida deu uma transformada através dessa escrita. Hoje em dia vejo que foi bom não ter desistido, não ter jogado a toalha. Mas tive muito medo de ser esculachada, de ter mais uma vez minha intelectualidade questionada. Durante muitos anos eu achei que a academia era o melhor para se estar, eu idealizava muito este lugar de saber. Me dar conta de que aquele lugar era politicamente complicado, como diversos outros, foi bastante difícil… precisei de muita análise para fazer a travessia, mas consegui fazer e isso foi fundamental! Acho que agora estou colhendo os frutos de ter conseguido construir esse outro caminho.

Foi um texto bem recebido, tive uma banca feliz, que acolheu o projeto. Gostaria que fosse uma banca integralmente de professoras negras, mas isso é extremamente complicado, pois a maior parte do corpo docente dos cursos de Letras no país é formado por pessoas brancas, e a maioria homens brancos. Temos mulheres brancas em minoria, mas mulheres e homens negras/os é a minoria da minoria. Conseguimos fazer uma banca de 50% e 50%, com a Fernanda Felisberto (UFRRJ) e a Fabiana Lima (UFSB), duas professoras negras maravilhosas, muito competentes e cuidadosas; além da Marta Alkimin (UFRJ) e da Tatiana Pequeno (UFF), que me apoiaram e ajudaram bastante. O texto foi bem recebido, indicado para publicação. Modestamente, acho que consigo fazer uma contribuição neste campo de pesquisa, que é tornar visível esse problema da invisibilização da produção de poetas negras. Pretendo publicar esta tese, pensando na contribuição para o debate acadêmico, pautando os malefícios do racismo epistemológico, que desrespeita a intelectualidade negra.

VT: Nos seus poemas, versos como acordar com o som dos helicópteros/ espanta-pássaros e o dia não se anunciará/ com o som das hélices/ que tiram o ar exprimem uma situação que as moradoras e os moradores das favelas do Rio de Janeiro convivem cotidianamente. A Rocinha é a maior favela do país com mais de 70 mil habitantes e um farto comércio. Como é sua relação na cena literária da sua comunidade? Digo, no âmbito dxs poetas da região, bibliotecas, livrarias, espaços culturais.

HF: Eu já não moro na Rocinha há alguns anos, mas cresci lá. Com mais ou menos com 11 anos de idade fui morar numa favela próxima, que é uma espécie de anexo da Rocinha, a Favelinha, que fica na Estrada das Canoas, onde minha mãe e minha irmã moram. Apesar da mudança, continuei a frequentar a casa dos meus parentes na Rocinha, o que faço até hoje, com uma frequência menor.

A cena literária da Rocinha que eu conheci é uma cena de literatura oral, predominantemente, dos contadores de história, do griô que é o meu avô, do repente, da poesia de improviso das feiras, e do cordel. Uma literatura que tem o pé no Nordeste, a poesia dos migrantes nordestinos, que compõem a maior parte dos moradores da Rocinha. Não sei muito sobre como é hoje, imagino que a Biblioteca Parque da Rocinha, enquanto projeto social voltado para leitura e para escrita, tenha modificado esse cenário. Penso, por exemplo, no efeito das oficinas do Carlito Azevedo, que possibilitaram a projeção do Geovani Martins, escritor estreante que publica “Um sol na Cabeça”, em 2018, pela Companhia das Letras e já é traduzido para várias línguas. Imagino que hoje em dia essa literatura contemporânea produzida pelos moradores da Rocinha esteja diferente, mas a literatura que eu vivi na minha época de moradora era fundamentalmente oral.

VT: Seu livro Nascente sairá pela editora Garupa e Kza1, se tudo der certo, ainda nesse ano de 2020. Boto fé! Como foi o seu processo de escrita do livro? Ele foi pensando anteriormente para ser um livro ou foi posterior a escrita dos poemas? Há uma narrativa de temáticas que envolve os capítulos?

HF: Esse é um livro pequeno, sairá na coleção À galope, da Editora Garupa em associação com a Editora Kza1. Se trata de um convite do Thadeu Santos, da Kza1. Eu conheci pessoalmente o Thadeu na mesma ocasião em que eu conheci a Lubi, nessa oficina de escrita para mulheres negras que ocorreu no prédio da Mídia Ninja, na região da Central do Brasil. Nessa oficina, a Lubi se propunha a apresentar, minimamente, a literatura negro-brasileira, (…) e no final a proposta era fazermos uma zine com os poemas produzidos. O Thadeu dava suporte editorial para montar a zine, assim nos conhecemos. Anteriormente já tinha sido convidada por ele para publicar meus poemas em alguma revista, não me recordo exatamente onde. Na ocasião eu estava me sentindo pouco poeta, então eu recusei o convite que ele me fez dizendo exatamente isso: Desculpa, Thadeu, eu não tenho me sentindo muito poeta ultimamente, por isso não tenho como aceitar o seu convite. (risos) Depois do contato com a Lubi, de fazer alguns trabalhos, ler meus poemas no Poeta de Dois Mundos, na Livraria Travessa, de publicar no Mulheres que Escrevem… ou seja, depois de ter uma resposta positiva ao que eu estava fazendo mais recentemente, me encorajei e mandei um grupo de poemas para o Thadeu. (…). E aí, no começo desse ano, ele me fez o convite para, de fato, publicar nessa coleção que tem um formato meio que de revista, uma publicação mais acessível. Fiquei super feliz! Aproveitei a oportunidade. É minha primeira experiência de fazer um livro, que é muito desejada, porém, muito nova. Vai ser muito bom experimentar isso num formato menor, que tem cara de livro artesanal, essas coisas que me tocam afetivamente.

A outra parte da pergunta era sobre o livro, se ele foi projetado previamente. Mais ou menos. Eu faço análise há muitos anos e esse processo foi muito transformador, principalmente porque a análise ensina a contar a sua história, ensina que a sua história tem valor e que é importante cuidar dessa sua narrativa de vida. Então, em 2016, eu tive essa ideia de escrever poemas contando a história da minha família, personagens e histórias que circulavam, através de poemas. Faço isso desde 2016, já faz bastante tempo, cinco anos fazendo isso, pensando que geraria um grupo de poemas que eu iria reunir em algum momento. Ao longo deste tempo fui escrevendo este grupo temático de poemas e também poemas sobre outros assuntos.

Quando surgiu o convite em janeiro, eu estava na Bahia e logo pensei nesse projeto antigo. São 15 poemas, a maioria sobre esses familiares, e tem a temática das águas, que atravessa tudo. Porque é isso, eu sou filha das águas também, sou filha da minha mãe, do meu pai, dos meus avós, dos meus tios, mas também sou filha de Iemanjá e de Oxum. Então é um livro das águas. Tem essa filiação ancestral, espiritual. É um livro que fala muito sobre origem, sobre as nascentes, daonde nascem as águas. Também é o livro em que nasço como autora, oficialmente. Estou nascendo de alguma maneira com esse livro, que é um livro de nascente. E é bonito porque fiquei pensando nesse projeto lá na Bahia, na Chapada da Diamantina, e eu descobri que aquela é uma região de nascente de várias águas que irrigam o território baiano: as águas da Bahia de Todos os Santos nascem nas cachoeiras da Chapada da Diamantina, o rio que banha a cidade de Cachoeira, o Paraguaçu, também nasce nessa região de muitas águas doces. Águas doces que correm em direção ao mar. Tem todos esses significados de filiações, é um livro sobre genealogia.

VT: No evento que fizemos juntas, você falou que a sua relação com a poesia muitas vezes foi na posição de professora e, atualmente, você se encontra nesse momento de ser a poeta que escreve e declama em público. Quais são suas ferramentas para fazer com que o/a aluno/a se sinta próxima a esse gênero literário que por muitas vezes é visto como algo chato entre crianças e adolescentes?

HF: Eu gosto muito de ser professora, adoro minha profissão, acho super política. É muito lindo tá intervindo na formação de sujeitos, é incrível! Acho fácil trabalhar poesia com adolescentes. A maior parte dos anos que trabalhei como professora foi com adolescentes, entre 13 e 14 anos. Trabalhei muito com pré-vestibular social também. Eu acho fácil trabalhar com poesia contemporânea especialmente. Esta é uma estratégia. A poesia contemporânea aproxima muitas vezes por usar um vocabulário mais acessível, e por isso não cria tanto distanciamento. A poesia em si já transforma a língua de tal modo que parece criar um código estrangeiro, então se você coloca um vocabulário muito rebuscado ou muito antigo, aí fica quase impossível. Acho que a poesia contemporânea é mais facilmente aceita.

Outra estratégia é trazer a dimensão coletiva que a poesia tem, ou seja, de colocar a poesia pra debate, colocar poesia no ar, poesia como som, como provocadora de sensações, quase como um fenômeno da natureza… ir por esta via sensória da poesia. Nesse sentido, a leitura em voz alta tem uma importância muito grande. Além disso, acho importante trazer a poesia como uma ferramenta de pensamento, de abertura de outros mundos e de autoconhecimento. Para adolescente isso é maravilhoso, né? Estão muito nesse momento de questionar quem eles são, de construir quem querem ser. A poesia, geralmente, tem uma entrada muito boa, existe uma resistência inicial, mas que no debate, falando e predominantemente ouvindo o que surge das impressões, o texto fica muito vivo, produzindo muito significado.

Eu acho que o que dá certo é usar a poesia como motor de pensamento, como experiência no corpo e como exercício. Ler poesia para escrever poesia. Trabalhando nos pré-vestibulares comunitários, isso sempre foi muito lindo, porque muita gente não sabe que pode contar sua própria história, não se sente autorizada a fazer isso, ou faz em segredo, então quando você abre um espaço em que isso é possível falar de si e contar sua história, e isso é bem recebido, tem um efeito muito lindo, potente e contagiante.

As aulas de poesia são de poesia contemporânea, e sempre acabam no formato de oficina de escrita, e de observar que narrativa a poesia está trazendo para depois pensar forma, pensar os modos com que se constrói esse tipo de discurso. Os adolescentes já são poetas, tem até aquela história de quem vai continuar poeta depois da adolescência, né? Dizem que os verdadeiros poetas são aqueles que saem da adolescência e continuam a escrever… Mas os adolescentes têm um saber intuitivo que é muito afim à poesia. Por isso eu acho trabalhar poesia na escola muito fácil (risos). Já nos pré-vestibulares comunitários é uma via um pouco diferente, até mesmo porque tem um objetivo prático muito claro, que é passar no concurso, aproveitar uma chance da vida. Mas geralmente essa via de usar a poesia pra contar a própria história e para se conhecer dá muito certo, sensibiliza muito.

VT: E como foi seu contato com a poesia na escola?

HF: A lembrança mais antiga que tenho disso é o livro didático. Fiz o ensino fundamental inteiro numa escola particular de classe média, o colégio Divina Providência. Minha mãe trabalhava como caixa da Formosinho, uma loja de calçados, e a empresa dava bolsa de 100% para os filhos dos trabalhadores, então fiz a maior parte da minha formação lá. A poesia era livro didático, eu adorava esse tipo de livro na época… E, de novo, a história da literatura brasileira que você vê no livro didático é a literatura canônica de autores homens brancos que liam a poesia europeia. Essa poesia: Olavo Bilac, Álvares de Azevedo, Cruz e Souza… Cruz e Souza não era branco, mas no livro didático ele era, né? (risos). Na minha formação básica não existiam autores negros; mesmo os negros eram brancos, isso é o mais perverso.

Eu lembro que gostava muito do Augusto dos Anjos e do Álvares de Azevedo. Sempre gostei muito mais de poesia do que de prosa, sempre, always! Na minha escola se adotava livro paradidático, mas era sempre literatura infanto-juvenil e sempre prosa. O trabalho com a poesia no ensino fundamental e no ensino médio era muito voltado para questões formais: identificar figuras de linguagem, sistema de rimas, decorar as características do estilo literário, enfim… Uma abordagem muito estéril. Apesar disso, eu conseguia me sensibilizar, ficar impactada, entrar na onda da poesia e gostar muito daquilo. Todo o trabalho de mortificação do que a poesia podia ter de potente não deu certo para mim, porque eu conseguia me conectar ali com o poder, mesmo com o livro didático e com essas aulas estéreis.

No Divina Providência havia muitos alunos da Rocinha, pois era uma escola católica que oferecia muitas bolsas, então eu tinha muitos colegas negros que eram meus vizinhos. Lá tinha uma biblioteca grande, e como eu era uma criança tímida e retraída, passava muitos recreios na biblioteca. Eu achava um máximo, ficava ali naqueles corredores sentindo a emanação dos livros antigos. Enfim, até lia umas paradas, mas, na verdade, o que eu sinto que foi mais importante foi ter tido contato com o objeto livro. Perceber o quanto era misterioso, o quanto cada objeto daquele podia abrir possibilidades na imaginação, que flutuava naquele espaço de silêncio. A biblioteca era muito importante. Os meus pais não são leitores, meu pai é engenheiro, o cara das exatas, que abria as televisões, eletricista e tal. Até tinha muitos livros, mas todos técnicos. E minha mãe nunca teve essa relação, ela até valorizava os livros e os contos de fadas, mas era algo distante dela. A maior parte da minha família não é letrada, até hoje, então essa biblioteca e a escola em si tinham uma função extremamente importante para mim, pois era um mundo muito diferente da minha casa e que eu almejava muito.

VT: Durante essa pausa obrigatória por conta da epidemia do Covid-19, quais livros, podcasts, filmes e/ou séries você sugere. Conta um pouco o porquê.

HF: Estamos num momento de pausa forçada para resetar o mundo, né? Eu não sei porque, eu tenho tido pouca paciência para ver filmes. Já tive uma relação forte com o cinema, mas hoje em dia é difícil eu parar pra assistir um filme, uma série. Estou lendo muito mais e minha leitura nessa primeira semana de reclusão foi a poesia completa da Maya Angelou, editada pela Astral Cultural. Esse foi um lançamento pré-apocalíptico (risos), saiu antes dessa pandemia chegar aqui, ainda bem! Melhor viver a reclusão com a poesia completa da Maya Angelou do que sem ela! (risos). É incrível esse momento em que se tem traduzido muitas obras de escritoras afro-americanas impressionantes! Estou lendo de cabo à rabo esse livro, e tem sido uma experiência muito prazerosa e proveitosa. São poemas ótimos para serem lidos em voz alta. Tem sido um estudo, um deleite, super recomendo. Entre minhas próximas leituras está o seu livro, Valeska, O coice da égua, e também o da Bruna Mitrano, Não. Acho que vocês duas trazem uma poética muito interessante que desejo conhecer, vai ser uma possibilidade de mergulhar no que vocês estão propondo, vai ser ótimo. Também quero ler o Água de Barrela, da Eliana Alves Cruz, que é um livro que estou namorando há um tempo. Nele, a autora escreve sobre a história da família dela remontando ao século XIX. É um livro que já li muito a respeito, mas que ainda não tive tempo de me dedicar a ele. É prosa. Ela parte da investigação de sua árvore genealógica, que é um tipo informação que famílias negras carecem, muitas vezes nós não sabemos sobre a vida de nossos avós! Existe esse apagamento que atua na história do povo negro abarcando várias dimensões. Então a Eliana Cruz, além de ser uma escritora muito habilidosa, se dedica a essa investigação sobre seus antepassados, o que me interessa demais. Inclusive, esse é um livro que fala sobre epidemias no Brasil em outros momentos, o que fica conveniente pra esse momento, já que ela conta uma história de sobrevivência.

Além da leitura, também estou fazendo jardinagem, yoga, produzindo conteúdo nas redes sociais, o que tem sido ótimo! Descobri a ferramenta do IGTV e tenho visto o quanto é legal compartilhar o que você está fazendo, leituras, o que dá uma movimentada na vida e não deixa a gente ficar tão baixo astral. É assim que estou vivendo meu período de reclusão. Acredito que este período possa ser muito bom para todo mundo descobrir muitas coisas sobre si mesmo e se reinventar.

Heleine Fernandes é mulher negra, poeta, professora. Encantada pela magia da voz e do canto. Feita das águas. Nascida e criada na Rocinha, é doutora em Teoria Literária pela UFRJ, com a tese “Poesia Afro-Feminina e resistência ao epistemicídio através das poéticas de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento”. Tem poemas publicados no “Mulheres que escrevem”, nas revistas “Escamandro” e “Ruído Manifesto”, na antologia Cult #1 e na antologia “Ato poético”, da editora Oficina Raquel.

Valeska Torres é escritora, performer e estudante de Biblioteconomia pela UniRio. Nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro em 1996. É autora do livro O coice da égua [Editora 7Letras, 2019]. Seu conto Conceição foi narrado por Elisa Lucinda no podcast Águas de Kalunga realizado pelo Museu de Arte do Rio. Publicou nas coletâneas de poemas, contos e crônicas Do Rio ao mar [Turista Aprendiz, 2015], na antologia Seis temas à procura de um poema [Flup, 2017], na antologia Alma — Projeto Identidade [Editora Conexão 7, 2018]. Tem poemas publicados em fanzines no Brasil, Argentina e Paraguai e em plataformas digitais, como: Mulheres Que Escrevem, Escamandro, Macabéa Edições, Ruído Manifesto, Periferias, Garupa, Gueto e Mallarmargens. Em 2017, foi selecionada para a Residência FIPR na Argentina e no mesmo ano recebeu menção honrosa por sua participação no V Concurso Literário Professor Arnaldo Niskier com a crônica Marlene.

Esta entrevista foi publicada na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram |Twitter

--

--