Uma longa e conflituosa amizade

Fabiane Secches
Mulheres que Escrevem
4 min readFeb 8, 2019

A primeira temporada de My brilliant friend, adaptação da tetralogia napolitana de Elena Ferrante para a televisão, emociona e incomoda

Colagem de Sumaya Fagury

A série My brilliant friend, inspirada na obra de Elena Ferrante, estreou no final do ano passado na HBO. Para quem não leu a tetralogia napolitana, a história começa quando uma mulher sexagenária, Elena Greco, tem notícia do desaparecimento de sua amiga de infância, Rafaella Cerullo, a quem chama de Lila. Como resposta à ausência de Lila, Elena passa a escrever um romance sobre essa longa e conflituosa amizade. Tudo o que vemos na tela está filtrado ao menos por dois meios: a memória e a percepção subjetiva.

Os oito episódios da primeira temporada correspondem ao primeiro livro da obra, A amiga genial, que abarca a infância e a adolescência das personagens em Nápoles, no Sul do Itália. O primeiro episódio concentra a maior parte das qualidades e dos defeitos que encontramos nos demais. Do lado dos acertos, destacamos a escolha do elenco, bastante elogiado pela crítica, e do idioma — a série foi filmada em italiano e em dialeto napolitano.

As atrizes Elisa del Genio e Ludovica Nasti interpretam, respectivamente, Elena e Lila quando crianças. A irmã mais nova de Elisa, Ingrid del Genio, faz a versão de Elena ainda menor, nas primeiras cenas da escola.

Mais tarde, é a vez das atrizes Margherita Mazzucco e Gaia Girace personificarem Elena e Lila na adolescência. A passagem do tempo se dá no terceiro episódio, em meio a um sonho macabro de Elena, e é um dos bons acréscimos da série em relação ao livro, uma aposta em recursos próprios do meio audiovisual.

Outro elemento que tem sido destacado pela crítica, esse mais controverso, é a fidelidade ao material original: Ferrante, que a princípio atuaria como consultora, foi creditada como uma das roteiristas, ao lado do diretor Saverio Costanzo (de Solidão dos números primos, 2010), e de Laura Paolucci e Francesco Piccolo. Se a adesão quase completa ao texto de origem pode agradar a uma imensidão de leitoras e leitores, também limita os caminhos da série como obra autônoma.

Nos poucos momentos em que My brilliant friend acrescenta trechos ou toma decisões mais ousadas de transposição, temos boas surpresas, como na cena em que um rebanho de ovelhas invade a estrada de terra quando as meninas estão ultrapassando os limites do bairro em que viviam pela primeira vez. Do ponto de vista cinematográfico, o episódio “A ilha” é o mais sofisticado: a cena de Elena entrando no mar em Ischia é uma das mais bonitas da série.

Mazzuco, que interpreta Elena na adolescência, consegue transmitir muito com pouco: com gestos e palavras sempre comedidos, garante um ar melancólico que cai como uma luva na personagem. Elena é uma observadora sensível e atenta, e algumas vezes chega a se retirar de sua própria história, entregando o protagonismo para Lila — amiga feroz e assertiva.

Em geral, as personagens são opostas e complementares, mas também compartilham afinidades e interesses, e por vezes ocupam papéis intercambiáveis, escapando assim de um arranjo esquemático.

Se no início a condensação dos acontecimentos narrados no livro chega a incomodar, impondo uma velocidade que compromete a experiência, depois a série encontra um equilíbrio e consegue transmitir, sem atropelos, a posição ambivalente de Elena. O carinho e a admiração que sente pela amiga são incontestáveis, mas também há o ressentimento, a inveja, o desapontamento.

É possível aproximar Lila de Capitu e de outras personagens ambíguas a quem só temos acesso pelo olhar enviesado de quem narra, como ocorre em Dom Casmurro.

A narração em voice over, recurso tão batido no cinema, aqui encontra um propósito: chama atenção para o fato de que não estamos testemunhando os eventos tal como se deram, mas sim imagens que se formam a partir de um texto escrito pela narradora.

A manipulação da palavra escrita é uma peça-chave para quem quer pensar sobre essa história: é justamente no texto que a mistura das personagens se dá de maneira mais radical. Não à toa o diretor valoriza o momento em que Lila lê e edita um texto de Elena, focalizando o papel em que a alquimia ocorre e as duas se tornam, de alguma maneira, um só corpo escrito.

Como ocorre nos mitos clássicos, a tetralogia napolitana é uma narrativa de fôlego, com reviravoltas folhetinescas, repleta de uma riqueza simbólica que ultrapassa o enredo e permanece ambígua desde o início do relato.

Resta saber se a série conseguirá sustentar a ambivalência que está no coração dos livros e que permite tantas leituras e interpretações diferentes. Afinal, a palavra que define essa história de amizade é a obscuridade, não a clareza.

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