Uma tradução de (e um reencontro com) Warsan Shire

Laura Assis
Mulheres que Escrevem
5 min readJun 12, 2020

Assim como grande parte das pessoas que hoje conhecem Warsan Shire, ouvi falar pela primeira vez da poeta em 2016, quando ela teve alguns de seus versos usados por Beyoncé no álbum visual Lemonade. Procurando mais informações sobre ela na época, encontrei no Tumblr alguns textos tirados de suas duas publicações, Teaching My Mother How To Give Birth (flipped eye, 2011) e Her Blue Body (flipped eye, 2015), além da página no bandcamp do projeto warsan versus melancholy (the seven stages of being lonely), com áudios de leituras de alguns de seus poemas. Em português, havia apenas algumas traduções na Modo de Usar & Co. (“what they did yesterday afternoon”, “home”, “The Kitchen”) e, se não me falha a memória, outros dois poemas em um blog (ou canal) que não existe mais.

Traduzi e postei no blog que eu mantinha na época dois textos de Shire: “the unbearable weight of staying” e “for women who are difficult to love”. Ainda em 2016, cheguei a apresentar uma leitura pública em que eu alternava o áudio dos poemas originais na voz de Shire (retirados do bandcamp e de leituras dela disponíveis no YouTube) e a leitura das minhas traduções. Entretanto, depois disso, não retornei mais à obra dela e nem tive mais notícias da poeta. Aparentemente, ela é bastante reclusa, não deu mais entrevistas e nem publicou nada depois daquele ano. A informação mais recente que encontrei diz que ela está trabalhando em um novo livro.

Recentemente, mexendo em arquivos antigos no meu computador, vi que cheguei a começar traduções de vários outros poemas dela, mas por algum motivo (doutorado, aulas, tese, concursos, vida) não terminei. Fiz uma breve pesquisa e, para minha surpresa, vi que muito pouco mudou no cenário da tradução de Shire aqui no Brasil e por enquanto só o que temos são algumas traduções esparsas de um ou outro poema. Então retomei os textos que eu já tinha começado e passei a ler e traduzir mais sistematicamente outras coisas dela. A maior parte está em processo, mas publico aqui “Backwards”, que considero terminado e é um dos meus poemas preferidos da autora.

A tradução foi revisada pela Larissa Andrioli (a quem agradeço) e é uma tradução mais do que livre, que encaro como um exercício e uma oportunidade de me aproximar de um poema que gosto (além de uma maneira de divulgar um pouquinho a obra de uma ótima e necessária poeta, ainda pouco conhecida por aqui).

Em reverso

para Saaid Shire

O poema pode começar rebobinando ele para o quarto.
Ele tira o casaco e fica pra sempre ali sentado:
é assim que a gente tem o pai de volta.
Faço o sangue voltar pro meu nariz como formigas pro buraco,
nossos corpos ficarem menores, meus peitos chapados,
os dentes retornarem à gengiva, devolvo ao seu rosto a maciez.
É só falar e eu faço com que a gente tenha sido amada.
Corto fora a mão rejeitada que ainda assim nos tocava.
Eu posso escrever o poema e fazer tudo isso desaparecer
O padrasto cospe a cachaça de volta na garrafa.
A mãe rolando escada acima, o osso dela se encaixa
Talvez assim ela não perca o bebê.
Talvez assim, mana, a gente fique de boa?
Eu vou reescrever nossa vida toda.
Vai ter tanto amor dessa vez, meu bem,
você não vai enxergar nada além.

Você não vai enxergar nada além.
Vai ter tanto amor dessa vez, meu bem.
Talvez assim, mana, a gente fique de boa?
Eu vou reescrever nossa vida toda.
Talvez assim ela não perca o bebê.
A mãe rolando escada acima, o osso dela se encaixa,
o padrasto cospe a cachaça de volta na garrafa,
eu posso escrever o poema e fazer tudo isso desaparecer.
Corto fora a mão rejeitada que ainda assim nos tocava,
é só falar e eu faço com que a gente tenha sido amada,
os dentes retornarem à gengiva, devolvo ao seu rosto a maciez,
Nossos corpos ficarem menores, meus peitos chapados,
faço o sangue voltar pro meu nariz como formigas pro buraco,
é assim que a gente tem o pai de volta.
Ele tira o casaco e fica pra sempre ali sentado,
o poema pode começar rebobinando ele para o quarto.

Minha maior dúvida era como traduzir o primeiro verso, uma vez que é ele que dá todo o tom de “rebobinamento” ao poema. Depois de muitas tentativas, optei por “O poema pode começar rebobinando ele para o quarto”, que subverte um pouco o sentido do verso original (“The poem can start with him walking backwards into a room”) mas constrói a imagem gráfica de “walking backwards” e contém essa ideia do poema que, se escrito, será um agente da reversão da realidade do abandono do pai, conforme retratado no texto, o que vai resultar em uma vida familiar feliz, “desfazendo” todos os episódios violentos elencados ao longo dos versos.

Uma questão que me tomou por um tempo foi o fato de que só depois, com a tradução quase pronta, descobri que Saaid, a pessoa para quem o poema é dedicado, é o irmão de Warsan, e não a irmã, como eu pensava. Meu equívoco se deu porque eu já tinha escutado ela falar em entrevistas de três irmãs, mas nunca de um irmão, então automaticamente presumi que Saaid (nome masculino, claro! mas só associei depois) era uma mulher e coloquei no feminino dois versos: “É só falar e eu faço com que a gente tenha sido amada” e “Talvez assim, mana, a gente fique de boa?”. A mudança não seria difícil, mas atrapalharia um pouco o arranjo de sonoridades que eu tinha pensado (e, tal qual uma música, já ressoava na minha cabeça), então decidi manter no feminino, até porque, em termos de sentido, isso não interfere em nada.

No vídeo abaixo, gravado em 2014, Warsan Shire lê três poemas. “Backwards” é o primeiro deles. A leitura dela é muito bonita e enche o poema ainda mais de significados.

O último poema que ela lê nesse vídeo, “The House”, também é sensacional. Estou terminando a tradução dele.

Clique aqui para ler “Backwards” no original.

Esse texto foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa não só debater questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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