Vinte e três de maio de dois mil e vinte

Texto enviado na newsletter O acúmulo da vida sem registro

Estela Rosa
Mulheres que Escrevem
7 min readOct 14, 2020

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Plaza de Mayo — Agosto de 2008

Não tenho escrito quase nada no meu diário. Quando faltavam três folhas para acabar, cansei. A última entrada diz “Não sei, só sei que sigo não tendo vontade de escrever aqui”. Antes disso, me questiono se a falta de vontade tem a ver com não querer registrar esta época que vivemos ou com não querer acabar o caderno. Talvez seja a mesma coisa. Não sei dizer ou não tenho vontade. Tanto faz.

Minha hipótese agora é que eu esteja começando assim para me justificar de não ter escrito durante tanto tempo. Tento ser um pouco mais gentil comigo mesma e penso em algo que tenho repetido para as pessoas que amo: nesta quarentena, faremos apenas as coisas na hora em que tivermos vontade. Uma utopia, lógico. Porque a louça segue se acumulando e o lixeiro passando no mesmo horário.

Ontem, uma amiga que dividiu apartamento comigo quando vivi em Buenos Aires há doze anos me escreveu. Ela me perguntava se eu ainda tinha algumas das nossas fotos antigas, daquela época, 2008. As fotos ficaram perdidas em um computador antigo, corrompido, só me restaram as que subi em álbuns do Facebook, respondi. Tenho algumas aqui ainda, quer?, ela me perguntou. Sou uma pessoa nostálgica e, na quarentena, a nostalgia e a saudade batem ainda mais forte. Às vezes penso que nunca mais fomos tão felizes a ponto de esquecer. Abro as fotos que ela me mandou e lá estava eu com 22 anos, comemorando a entrada da primavera em um país que guarda minha segunda língua. As pastas em que as fotos estavam divididas foram feitas por mim, ela conservou inclusive meu modo de me organizar. Caótico e sentimental, mas sempre em pastas e subpastas. Organizar documentos me dá prazer, às vezes gosto da burocracia, mesmo quando é sobre paixões e memórias.

Eu e Juliana voltando do Parque Centenario

Dentre as fotos, alguns vídeos. Eu, com 22 anos, abraçada ao meu namorado da época: Facundo. Essa história virou anedota entre minhas amigas, o argentino bonito e canalha que tinha seu nome tatuado no peito. Ele tirava a camisa e eu atestava de novo: estou aqui, nesta cama estrangeira, em um apartamento quarto-sala no sul do continente, com este homem que insiste em reforçar que se chama Facundo e veio do fim do mundo. Nas pastas, vídeos em que eu dizia a ele, sempre em espanhol: estamos gravando para quando eu voltar ao Brasil poder te apresentar pras pessoas, quando você chegar, elas já vão te conhecer. Comigo ele nunca chegou.

Me pergunto se Facundo chegou a conhecer o Brasil. Acontece que brigamos feio antes de eu voltar. Nunca mais falei com ele. Era um homem muito bonito e nos vídeos parecia gostar muito de mim. Eu também parecia gostar muito dele. Apaixonada, como sempre. Nós dois no balcão do apartamento alugado por cinco brasileiras, pago em dólar, na esquina da Moreno com a Entre Ríos. Ouço minha voz em espanhol cheia de sotaque misturada à dele. Latinoamericanos. Estou em outro país e sinto a falta gelando nos ossos. Vivo em uma eterna nostalgia do sul.

Ontem também, que pelo visto foi um dia de reunir muitas informações sobre a Argentina, a Luciana di Leone, minha orientadora, me mandou um link. Uma série de contos e crônicas de autores argentinos, gravados por atores e atrizes argentinas, produzida pelo argentiníssimo Centro Cultural Kirchner, com direção e curadoria das cineastas argentinas Lucrecia Martel e Graciela Speranza. Mais conteúdo para ter vontade de lavar louça. Antes eu ouvia podcasts para aproveitar o tempo da louça. Hoje procuro louça para aproveitar o tempo do podcast. A louça sempre está lá, é claro. Quando não está, monto quebra-cabeças. Fazer coisas com as mãos me ajuda a ouvir melhor. Luciana mandou o link e disse: “Você vai gostar da Hebe Uhart”. Dei play enquanto lavava a cuscuzeira.

Eu amei a Hebe Uhart e por isso me sentei aqui pra escrever.

Às vezes me pego constrangida com o quanto uma pessoa pode chegar a me conhecer em tão pouco tempo. Ontem, em mais um dos cafés profundos da quarentena com Ana Carolina Assis, falávamos do quão constante e pouco misteriosa sou. Posso comer a mesma coisa todos os dias e achar bom todas as vezes que como. Atualmente, vivo essa paixão com tapioca com recheio de queijo, tomate e orégano. É que eu demoro nas coisas, disse pra ela. Eu demoro, não mudo tão rápido. Ainda que às vezes surja alguém do nada e diga que se surpreendeu comigo. É quando me assusto, não está na minha genética ser misteriosa e surpreendente. Por isso me constranjo fácil quando alguém sabe exatamente do que vou gostar, porque não há muitos mistérios mesmo. Foi assim ontem: Luciana disse Hebe Uhart e ouvi desconfiando um pouco.

Estou constrangida neste exato momento. Luciana me conhece. Escrevo constrangida porque é o melhor que tenho agora.

A Hebe Uhart, nessa crônica lida pela Mónica Cabrera, demora nas coisas. Gosto de quem demora nas coisas, me sinto menos sozinha. Ela fica ali olhando tudo, um olhar demorado na casa e na rua, nas pessoas, nos bichos. Uma escuta demorada, um constrangimento demorado. Uma crônica lotada de comentários aleatórios sobre ela mesma, do que gosta, porque gosta, como a observam. Hebe Uhart escreve assombrada e constrangida com o mundo aleatório que a cerca. Um choque com o olhar constante, talvez, não sei. Mas foi ontem também que a Ana disse: é engraçado, você é constante, mas sempre muito aleatória. Quem sabe essa é minha principal constância, ser aleatória, e então me divirto muito quando encontro alguém como eu. Hebe Uhart foi uma pessoa assombrada e aleatória. Ainda bem que foi também escritora. Lembrei da Angélica Freitas dizendo que é deliciosa a sensação de encontrar um par na literatura. Preencho mais uma janelinha da minha árvore genealógica com a Hebe Uhart. Obrigada por me conhecer tanto, Luciana.

Euzinha aos 22 anos no Parque Centenário

Na crônica, ela descreve com calma e cuidado as pessoas e os cachorros que atravessavam a Avenida Rivadavia no bairro de Almagro, Buenos Aires. Cita o cruzamento horrível de atravessar e me vi de novo naquela cidade, exatamente naquele ponto. Um pouco antes, eu estava deitada na cama ainda contrariada, porque hoje de manhã acordei contrariada. É difícil não estar contrariada em um país que ecoa a frase “Querem fuder minha família” dita assim como se nada pelo presidente. Um pouco mais cedo, hoje, abri o twitter pra ficar ainda mais contrariada — tenho esse hábito — mas, como me surpreender também é um hábito, acabei caindo em uma entrevista de uma escritora chamada Marta Sanz, não conhecia a Marta. Uma entrevista bonita, com muitas coisas bonitas, adoro ler entrevistas. Mas Marta Sanz dizia então:

“Eu me rebelo contra a nostalgia, mas está aí. É inevitável e está aí porque tenho consciência, ainda mais agora nesta época de pandemia, confinamento e na proliferação dos contatos virtuais, de que estamos vivendo no último fio de um mundo que está acabando (…). Eu não quero mitificar um passado cheio de elementos sinistros e lúgubres, mas também quero recuperar um passado que tem muitos momentos felizes, porque fui uma mulher sortuda e tive uma biografia feliz”.

Porque, é claro, eu estava me punindo todos estes dias por em alguns momentos me sentir grata e nostálgica de ter vivido tantas coisas bonitas, porque em meu país morrem mais de vinte mil* pessoas por um descaso do governo diante de uma doença devastadora, porque em minha cidade uma criança negra foi assassinada dentro de casa, pelo Estado, enquanto cumpria a quarentena. Se olharmos pra trás, penso que esse sentimento nos acompanha a todos porque estamos nesse pedaço de mundo chamado América Latina, especialmente neste momento, nesse pedaço imenso chamado Brasil. São milhares de assassinatos por ano, mulheres, negros, pessoas lgbtqi+, povos originários. Vivemos na linha do trauma coletivo há mais de quinhentos anos. Uns mais conscientes e mais afetados, outros que insistem em não ver. É sempre uma merda, não tenho outra palavra pra usar. Mas não vou me punir.

Porque ouvindo aquela crônica, enquanto lavava a louça revoltada com o governo, lembrei que é este o exato motivo da gente insistir em escrever, esticar o fio do fim do mundo até onde der, esticar nossas narrativas sempre tão ignoradas. Esticar, esticar, esticar e permanecer. Escrevemos pra sobreviver.

Há algumas semanas desisti do meu diário, mas não é por isso que vou deixar de escrever.

Memorial às vítimas e desaparecidos da ditadura na Facultad de
Arquitectura, Diseño y Urbanismo de la Universidad de Buenos Aires

* Enquanto edito este texto, o Brasil atinge a marca de 133.355 mortes causadas pela COVID-19.

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Estela Rosa
Mulheres que Escrevem

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).