Às 4:49 da madrugada, quis ser escritora

Estela Rosa
Mulheres que Escrevem
3 min readOct 17, 2016
Duane Michals: Flowers, 1984.

“My ghosts are not gone
They dance in the shade
And kiss the black core of my heart
Making words, making sounds, making songs”

- Ibeyi, Ghosts -

Sábado à noite perdemos uma hora para o horário de verão e essa noite perdi uma hora de sono pensando na tal da lua cheia, cheia promessas de conquistas e novos planos. Não sou o tipo de pessoa de ter insônia, aprendi, desde pequena, que a disciplina pro sono é ter as luzes da casa todas apagadas e dormir. Não há olhos que resistam a escuridão de uma cidade do interior, onde nem as luzes da rua alcançam as frestas da janela do quarto. Hoje em dia, vivendo em uma cidade grande, meus horários já não são tão seguidos à risca, ter autonomia para apagar as próprias luzes é desafiador com tantos postes, faróis, lanternas e luzes stand by de aparelhos de TV.

A insônia que me atingiu essa noite foi sobre os semáforos que se abrem e se fecham constantemente na esquina da minha rua. As possibilidades são infinitas, mas a materialidade me impede de seguir adiante, como se, mesmo tendo a estrada a minha frente, eu precisasse obedecer aos sinais. A vontade e a pressa se apresentam a mim como duas crianças excitadas com seus novos brinquedos, mas não posso dar ouvido a elas. Já não tenho mais a tranquilidade de poder pausar tudo o que me aguarda e mudar bruscamente de caminho. A adolescência tardia que me entregava de bandeja muitas horas para escrever já não existe mais. Os prazos, as oito horas comerciais, os três empregos, a casa, a louça, as roupas, os desinfetantes, as vassouras, tudo isso me aguarda todos os dias e as muitas horas para escrever ficam de lado.

Acordei às 4:49 pensando em como seguir adiante com tantas questões materiais em meus ombros. Conciliar o mundo real com todas as expectativas que tenho para mim mesma é tão desesperador quanto ter insônia. Mas não posso rolar na cama e desistir, porque desistir destas expectativas seria desistir de mim mesma. E por mais que os livros de autoajuda digam que podemos otimizar o tempo, aproveitar ao máximo, que existem estratégias em 10 passos para conseguir conciliar a vida profissional com o lazer, não é isso que busco. Não quero otimizar meu tempo, quero poder viver a vida desses fantasmas e expectativas que me acompanham diariamente. Às 4:49, em meio à insônia, eu quis ser escritora.

É praticamente uma dor física, um sobressalto diário, me lembrar que dedico alguns minutos entre tantas horas de trabalho à uma tentativa de ser escritora, de ser poeta, de ser lida. As revistas para mulheres insistem em me dizer que devo dedicar meu tempo a mim mesma, mas alguém espera que esse tempo seja dedicado à escrita? E como dedicar meu tempo a escrever se as toalhas estão limpas esperando dentro da máquina, se tenho quatro textos de outras pessoas para escrever, se tenho que escrever sobre o que não gosto para tantas outras pessoas que sequer sabem quem está por trás daquelas letras? E como abandonar tudo isso, se não há quem me dê suporte?

Às 4:49 da manhã, insisti em dormir porque precisava gastar aquelas exatas horas com o meu sono e não com as minhas ansiedades. Já não tenho tempo também para as dores e para as lágrimas. A materialidade se abate sobre nós como grandes rochas e as listas insistem em dizer que a culpa é minha por não saber aproveitar meu tempo ao máximo. É como não ter saídas porque a estrada na qual entrei não há retorno nem acostamento. E sigo sozinha com meu carro em chamas.

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Estela Rosa
Mulheres que Escrevem

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).