As mulheres das pétalas vermelhas
Rogai para que todo o silenciamento sofrido vire arte, que toda lágrima derramada seja água para matar a sede dos meus sonhos. Esses, que quase morreram após a tempestade, pois esqueci que era possível voltar a dançar.
Antes da chuva, eu bailava e vinha bem, mas me tiraram tudo, riram, zombaram e me despetalaram. Os ratos, aqueles mesmos, da carta do baralho, que um dia em Sevilha, a cigana me apontou, adentraram em minha casa, e as palavras, cada um deles me levou. Cada umazinha delas que levei tanto tempo tecendo. Minhas palavras queridas, em cada chá fervido e bebido, coado em minhas mãos e desenhado com a ponta da minha pena.
Levaram minhas flores, deformaram as minhas letras, trocaram as roupas da minha menina, a vestiram insanamente, lhe colocaram um rosa mal tracejado, a emudeceram e a fizeram dizer um discurso ao contrário. Ela pegou-me a mão e chorou, disse “amiga, levanta, vai pegar de volta a minha cor”.
Tentei nos defender com pontas firmes, será que foi aí o meu crime? Mas mesmo assim não teve jeito, pois meus espinhos, eles também já haviam desfeito. E eu, sensível que sou, já nem via mais cor. Meu cinco já não cheirava mais a azul e meu arco iris sumiu por falta de amor.
Então, chorei, chorei. Me debati e gritei. Me internaram no hospício enquanto me amavam, eles diziam. “Nós te amamos, venha para o nosso baile.” Eu de longe, dizia, “não se aproximem, vocês são cinzas eu não confio. Parece colorido, mas posso ver, cinza está, há algo de errado, como escapar?’’
E eles afirmaram, a todos que quisessem acreditar, “louca esta moça está. Rancorosa, vitimista, pobre menina involuída. A ela, passivamente falaremos, e enquanto a amamos nós a mataremos. Com ela ninguém mais falará, suas letras nunca mais ninguém lerá. A trancaremos em um grande castelo, no alto da torre, no vigésimo segundo andar. Lá ninguém há ouvirá e outras flores chamaremos. E enquanto ela agonizará em dor, nós dançaremos.”
E com todas me apontando, “louca”, de chorar também parei. “Engole o choro! Se apruma, mulher! Ninguém quer ouvir seus remendos, a deusa não gosta de lamentos. Sorria para a nossa violência, travestida de alegria colorida. Seja passiva, moça, nos sorria! Tudo de você já tiramos, ninguém já lembra dos seus encantos, outras flores já chamamos, de ouro e fama nós as cobrimos e elas vieram sorrindo.”
Olhei para os lados, pedi afago e socorro. De longe eu olhava o bailado estremecido e o cheiro de dardo me ferindo. Dardo venenoso florido, que acertou minha alma em cheio, despetalou-me, levou-me até meus espinhos. Farmácias, fármacos, fazendas, fitos, alopáticos de todas as formas, quem pode me ajudar? quem pode ouvir? Ninguém! Quem ouve diz “ já passou, já passou”. Ai, não passa! Quando a dor pega para cortar na gente, lá na carne da alma, não passa!
Ponto riscado? Trabalho feito, reza ao contrário? São Cipriano? Vingança? Desculpa, moço, mas já não sou mais dessas andanças! Tem pra lá de vinte vidas que com carrego já não trabalho. Dança, Yoga, acrobacia, banho gelado, ervaria, benção, chá infindável? Não, nada disso, nada limpa o coração ferido. Olha, não tem refresco!
“Então perdoa e segue em frente?” Já perdoei, mas os nardos sempre aparecem e remendam na gente outra vez! Então perdoado não foi, o que se foi de verdade não volta mais. Fala com coração, risca o seu caminho no chão e continua andando, sem olhar para trás, uma hora você verá, a amargura sumirá e o doce novamente, poderá provar. Rosas vermelhas brotarão e elas te guiarão, segue segue sem parar, a vida é samsara e a rosa te curará. Hoje você está sem chão, amanhã serás o céu e, quando lá em cima estiver lembre da lama e seja grata pelo aprendizado, honre suas dores e também as dê um pouco de afago.
Então, um dia, permiti dona rosa branca me achar e , assim, despretensiosa, Ela me olhou e disse “moça, chora mais, chora até sangrar”. Fiz sangria de mim mesma, caiu sangue dos meus olhos, saiu sangue dos meus dentes, minhas mandíbulas eram só carne, o intestino se revirou inteiro, cada víscera foi sangrada, estripada e depois comida. Tudo devorado por mim mesma, como uma Baba Yaga enfurecida. Pensei, “morri! Sim, morri! Um mundo inteiro morreu dentro de mim.”
Fiquei sem chão, sem paraíso e sem mesmo um espinho. Não tinha mais roda, nem saias, não tinha arcano pendurado, não tinha bicho, nem totem, não tinha nada! Nada sobrou dentro do meu baú de desespero. Espera! Há algo que consigo ver! É um espelho!
Espelho! Objeto de força relutante e reluzente que nunca acredita na morte, só na nutrição e no presente. Um dia se colocou em minha frente. A moça cor de ouro sacudiu seu espelho e disse “suas lágrimas formaram um rio e assim te encontrei de novo, sorrindo. Não fuja, não fuja! Rosa branca te deixou chorar, enfiou um longo punhal em seu coração até fartar. Sangramento da alma se fez e agora, moça, precisas viver outra vez!”
Então, ao calor da voz da moça de ouro, de minhas águas uma serpente surgiu, colorida ficou e minha sinestesia novamente voltou. A cobra me disse “como a mim deves ficar, tenho muito a te ensinar e uma maçã vou te dar’’. A cobra em mim se enroscou e cinco arco íris em meu corpo desenhou.
A maçã se abriu e dela uma enorme rosa vermelha saiu. Rosa vermelha, então, falou “de suas palavras levaram só as letras, pois a alma é só sua e não há como tirar. Eles podem levar tudo mas sua alma, essa nunca faltará. Os cheiros das cores só você sente e planta sem cor não cria serpente, não faz caduceu, não tem magia, é só uma imagem de mentira que foi colorida, com lápis que se apaga no primeiro eclipse da vida. Não há mais nada a perdoar, apenas siga o seu caminho, e as flores que te chamaram de louca que se virem em seus próprios espinhos.
Loucas todas somos, vadias, putas, vitimistas. Chorosas, lunáticas, luas, cíclicas. Deixem que te chamem de louca, desvairada, descabida. Eu sou Maria Madalena, rosa vermelha apedrejada, ferida, mas não vencida.
Não há o que temer, nosso sangue é forte e honroso. E na vida, menina, você aprenderá, que arrancam nossos espinhos, mas eles logo nascem de novo.
Outras como você no caminho achará e, pétala por pétala, um rubi nascerá. Ele é meu coração e com cada uma de vocês estará.
Rubras, fortes, feiticeiras. Mulheres das pétalas vermelhas. Olhos vermelhos, sedentos, brilhosos. Perfumadas seguirão, com um olíbano nas mãos. Em qualquer lugar, mulheres das pétalas vermelhas, nós abriremos caminho e nos deixarão passar, pois somos sagradas, Camomila minha.
Protegidas da rosa vermelha. Pois que já não andamos sós, Somos as filhas esquecidas de Maria Madalena.
Em arte transformamos nossa dor e, seguindo sempre em frente, mesmo gritando contra gente, nos descobriremos, nos acharemos e nunca mais nos perderemos.
Ser rosa é nunca mais perder-se de si.
Eu sou a rosa vermelha e assim falei.
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Palmira Margarida é historiadora especialista em cheiros e emoções e ama pesquisar sobre aromas do corpo. É sinesteta e come coisas só porque são amarelas, inclusive não-comestíveis. Ama viajar e captar os aromas das trilhas e das histórias dos lugares por onde passa. Cria aromas-artísticos e provocadores e você pode encontrar em www.perfumebotanico.com.br
instagram @palmiramargaridabr