Marcas, não passem vergonha, contratem um historiador!
- As palavras em caps lock são importantes para um historiador.
- ATENÇÃO: O TEXTO CONTÊM GATILHOS.
Todo dia vemos uma marca passando vergonha na rede e, sinceramente, por algumas delas tenho profunda admiração, mas falta time ou modernização de conceitos, ideias. Outras, são sem noção mesmo, oportunistas ou, ainda, apresentam um quadro de funcionários que, provavelmente, carece de diversidade econômica, cultural e social, não se abrindo para visões e ideias diversas sobre a realidade.
Diante disso, é importante ouvir alguém que tenha essa compreensão do outro, de Eras históricas, de questões sociais e, principalmente, sobre símbolos e significados inconscientes na sociedade. E tudo isso não apenas para ficar “bem na fita”, mas para que realmente a marca crie um trabalho/ campanha/ serviço de qualidade e com valor humano, não agredindo nenhum grupo e existindo de forma harmoniosa.
Trouxe seis casos reais (sem citar os nomes das empresas) para analisarmos como falta em suas equipes um cientista das ciências humanas, lógico, com boa formação.
Primeiro caso: falta de time.
Nosso primeiro caso é de falta de time, sinceramente, o mais fácil de se converter. Uma antiga e maravilhosa Casa de perfumaria brasileira (eu sou fã de carteirinha dessa marca), criou uma campanha com figuras de animais de circo. As imagens são lindas sim, vintage e, provavelmente, apresentam referências de embalagens ou cartazes antigos da empresa. Acho bacana essa releitura e re-valorização que eles vêm fazendo da própria marca, reconhecendo a própria história e, por tabela, a MEMÓRIA do país. Mas ia dar treta, fato!
Por que deu treta?
Os tempos mudaram, hoje sabemos das condições em que os animais de circo vivem, a sociedade está mais atenta ao maus tratos com animais e temos grupos fortes que defendem a vida e bem estar dos mesmos. Ou seja, fazer campanha, mesmo que fofa, com animais, não rola mais! E de boas, que bom, né? No caso, errou por falta de ACOMPANHAR O HOMEM E SEU TEMPO.
Segundo caso: falta de conhecimento de classes, visão elitista, falta de conhecimento ou de sensibilidade com grupos do próprio país.
Não faz muito tempo, uma marca de roupas utilizou, como estampas para uma coleção, desenhos do artista Rugendas. A marca disse que foi uma forma de HOMENAGEAR e ENGRANDECER a história do país. Será?
Por que deu treta?
Os desenhos de Rugendas, assim como de muitos da época, fazem referência aos negros escravizados de uma forma ROMANTIZADA. Ver um quadro de Rugendas ou Debret, por exemplo, em um Museu é diferente, pois há uma referência histórica sim, mas levando em consideração que esses homens eram europeus, brancos, colonizadores e, era através desta visão, que os mesmos desenhavam as pessoas negras escravizadas. Ou seja, com um olhar de colonizador e, por sinal, a maioria deles não viam problema algum de uma pessoa ser escravizada pela cor de sua pele. Será que se fosse um homem negro, escravizado, desenhando os seus, as figuras seriam representadas com formas tão alegres, romantizadas e coloridas? Sempre me fiz essa pergunta! Então, não! Não pode usar sofrimento alheio como algo cool, bacana e na moda! Não mesmo! Faltou bom senso, faltou um historiador, faltou ouvir uma pessoa negra e suas MEMÓRIAS, saber como ela se SENTE! HISTÓRIA DAS SENSIBILIDADES aí, por favor! E há tanta coisa realmente linda e original nesse país que vocês nem imaginam!
Terceiro e quarto casos: falta de noção, falta de entendimento social
Outro caso parecido foi de uma outra marca que vendeu como “blusinha cool” um produto estampado com a logo da antiga FEBEM — Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor. Dessa nem precisava de um historiador para dizer que com isso não se brinca, né? Teve também uma outra marca que colocou manequins-bonecos pretos dependurados e amarrados em sua vitrine.
Por que deu treta?
A ideia era representar pessoas negras amarradas e dependuradas? Creio que não, mas pegou mal. E sabe por quê? Porque, graças, os tempos mudaram! O que chamam hoje de “geração mimimi” é, na verdade, um grupo de pessoas que está questionando situações absurdas e abusivas que, antes, passavam batido ou eram dissimuladas na sociedade. E vamos combinar: quantos bonecos-manequins de cor preta você vê em lojas? E, por que, justamente, quando colocam manequins pintados de preto na vitrine, os mesmos estão dependurados e amarrados? Sacou o problema? Faltou BOM SENSO de alguém dizer “olha, isso não me cheira bem, alguma pessoa negra pode se ver aí, se IDENTIFICAR e se sentir mal”. Aí, cidadão, você pode falar “mas, nossa, que gente chata, vê problema em tudo”. Olha, parceiro, sim! Nós vemos problemas em tudo, TODOS NÓS, pois todo ser humano se RECONHECE em algo o tempo inteiro, nossos olhinhos de humanos estão, A TODO TEMPO, inconscientemente, procurando SÍMBOLOS e REFERÊNCIAS e fazemos isso para nos sentirmos PERTENCIDOS, para AFIRMAR quem somos ou para nos DESCOBRIRMOS. O nome disso é MEMÓRIA / ANCESTRALIDADE e se todos cuidassem bem das suas e respeitassem as alheias o mundo não teria guerra, não teria tortura, escravidão, sofrimento!
Quinto caso: oportunismo, se utilizar, indiretamente, de símbolos e significados na missão da empresa sem ter coerência com o que prega.
Outro caso que não sei se é oportunismo ou falta de noção. Uma marca que usou a imagem de uma mão fechada junto com uma palavra de ordem que não vou citar aqui. Por mais que você não tenha ideia de quem seja Angela Davis, do que foi o Partido Pantera Negra, de onde fica o ABC Paulista ou o que é sindicato, seu inconsciente (confia aqui na tia porque sei o que tô falando) sabe que mãozinha fechada com braço levantado significa enfrentamento ou luta , certo? Isso tudo seria lindo se eu não soubesse que os donos da marca odeiam a esquerda ( o ex-presidente Lula, inclusive) e que chamam a galera que vive com a mão pra cima de “geração mimimi”. Por que eles estão fazendo isso? Provavelmente para alcançar esse público, porém, sem acreditar no que pregam. Isso também é feio e se você é dono/a de uma marca e anda fazendo isso, muito cuidado para o seu público não descobrir, pois o tombo será enorme e a treta será difícil de consertar.
Por que pode dar treta?
Você pode usar sim questões sociais na sua marca e acho louvável, porque precisa ter culhão para fazer essa mistura, quando a marca assume um lugar de enfrentamento, perde uma parte de público. Eu mesma faço isso, mas assumo esse risco econômico preferindo ser condizente com minhas visões históricas. Particularmente, tenho preguiça de empresa que se coloca como APARTIDÁRIA, mesmo porque ser apartidário já é escolher um lado. Dá para pregar veganismo, amor à natureza, ciências e pesquisa em medicina alternativa quando se apoia um governo fascista que enfia mais agrotóxico em tudo e quer tratar questões mentais com eletrochoque? Dá para falar mal da Bayer e se dizer marca preocupada com o bem estar ficando em cima do muro? Isso pode, produção? Olha, falta COERÊNCIA!
Último caso: falta de noção! Novos tempos! Ouvir o outro! Uma imagem vale mais que mil palavras!
Por último, termino com o caso não de uma marca, mas de uma pessoa. A ex-diretora da Vogue Brasil, que pediu demissão após uma foto sua viralizar na internet. Vocês sabiam que existem historiadores especializados em analisar imagens? Não é o meu caso, mas analisei os fatos. Sobre as mulheres vestidas de baianas na foto, é o job delas, é trabalho! Há problemas nelas se vestirem como baianas? Sinceramente, creio que não, elas estavam felizes, as baianas são patrimônio imaterial. Mas, vamos combinar? A ex-diretora fez uma foto infeliz! Será que não tinha um amigo para dizer “olha, não faz uma foto assim porque não é bacana, você fica parecendo uma sinhazinha cercada de suas escravas te abanando”. Não, não teve um colega para dar um “toque”. A festa foi racista? As mulheres vestidas de baianas “têm tanta baixo autoestima que se colocaram nesse papel?” Essa última frase em aspas me irrita porque, mais uma vez, coloca a culpa na mulher negra!
Por que deu treta?
Eu não estava lá, não sei se a festa foi racista, creio que não, mas a foto captou uma imagem que mexe conosco, com a MEMÓRIA ESCRAVOCRATA DE NOSSO PAÍS e revira o nosso estômago. Inclusive, muitas pessoas não viram nada demais na foto, pois ainda estão ligadas, inconscientemente, com a ideia ROMANTIZADA da escravidão. Essas pessoas nunca, de fato, viram a escravidão como ela realmente foi e aqui coloco a responsabilidade também na historiografia oficial, que contribuiu para que a escravização do povo negro aparecesse nos livros de forma silenciosa e romantizada. Está na hora de mudar, certo? Eu, como historiadora, diria se estivesse na hora da foto “olha, não faz essa foto porque não é bacana, muita gente vai se sentir mal, vai ACESSAR MEMÓRIAS dolorosas, vai dar GATILHO. Vamos tentar de outra forma?”.
Qual o objetivo desse texto?
Não é para apontar o dedo para ninguém, Deus me free! Pelo contrário, tentei de forma leve mostrar que nós mudamos, nossas ideias divergem, que memórias, por mais que não estejamos conscientes do PODER delas, SÃO MUITO IMPORTANTES, que CONHECER A HISTÓRIA do outro é FUNDAMENTAL. Realmente desejo que TODOS nós possamos ser felizes, viver de forma leve e RESPEITOSA! Para isso, precisamos OUVIR, CONHECER, MAPEAR e REVERENCIAR a história, TODAS elas. Então, se você tem uma empresa, contrate um historiador, um antropólogo, um sociólogo, um filósofo. Desculpa, mas, como historiadora e filósofa, sinto informar que trabalhar só com números não cabe mais, alias, nunca coube, por isso chegamos nesse caos! As pessoas MERECEM SENSIBILIDADE e RESPEITO das marcas. Você não precisa conhecer de Debret, Rugendas, Gilberto Freyre, animais de circo, mas precisa ACEITAR que tudo é HISTÓRIA e ela está em nossas REFERÊNCIAS INCONSCIENTES e, em uma época em que historiador é sinônimo de vagabundo no país, percebemos bem porquê tantas marcas passando vergonha.