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VOCÊ É FEMININA?

Palmira Margarida
Mulheres
Published in
6 min readJul 26, 2018

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Antes da gente começar esse papo, faz só um favor? Vá ao google, digita a palavra feminina e veja o que você acha!

Se incomodou? Agora podemos ir!

Como historiadora ando perturbada com o uso da palavra “feminino” no lugar de “feminiSmo” ( o “feminino irá revolucionar”, “o feminino para o bem estar”, etc) como se ser feminiSta diminuísse algo em uma mulher. Querer sumir com o termo feminismo de nossas vidas, retóricas, encontros ou diálogos é silenciar e apagar anos de história de luta das mulheres em todo o mundo por direitos e justiças, como o de não ser estuprada, ter direito a pensão alimentícia, aborto seguro, sistemas de educação e saúde públicos e de qualidade. Logo, não me refiro a um feminismo “branco lacrador”, mas aquele que chamo de “feminismo de perifa’’.

É claro também que nenhuma mulher é obrigada a ser feminista! Uma amiga, também historiadora, já me chamou atenção sobre isso, afinal, conheço mulheres que estão na batalha e nem sabem o que é feminismo, como minha mãe, minha velha tia e a sua avó: mulheres que se viraram sozinhas ou trabalharam muito, foram tolhidas, silenciadas, não tiveram direitos básicos como saúde, educação e por aí vai. Ou seja, estou falando de feminismo para geral, de um sagrado que seja para todo mundo e isso vai muito além de brincadeiras com baralhos. O papo é reto! A gente pode ter o baralho, mas é preciso a luta real e diária pelo reconhecimento de todas, isso engloba as mulheres que não são do seu círculo social, a filha da sua faxineira e o filho do motorista que está na mesma sala universitária que seu irmão.

Afinal, homens negros são filhos assassinados das mulheres pretas. E eu quase consigo ouvir daqui a palavra vitimismo e, pela deusa, isso anda me incomodando bastante! Uma fada morre toda vez que ouço isso. Penso no tamanho da arrogância espiritual ou ignorância social de alguém que chama o outro de vitimista. Minorias são vítimas de muitas formas, mas se tem algo que essa galera não é, é vitimista! Afinal, cara pálida, quem é você para chamar alguém de vitimista?

Retornando ao fio da prosa, o ser feminino, da forma como é concebido e ostentado hoje, é opressor para as mulheres. O feminiSmo surgiu, justamente, para libertar o feminino que foi açoitado e silenciado desde antes da Idade Média e nós, mulheres contemporâneas, temos que fazer um esforço tremendo para nos entender e RESPEITAR o que seria o feminino particular de cada uma.

O feminino foi retirado de nós e transformado em um produto e tipo de comportamento esperado para as mulheres, uma cartilha de boas maneiras e beleza uniforme (aquela mesma que você achou no google). Por isso, não tenham vergonha ou problema em usar a palavra feminiSmo! Isso é a nossa luta, nossa história e tentativa de retomarmos a nós mesmas e, principalmente, sobre nossos direitos e necessidades básicas. Como uma mulher pode pensar em baralhos, ciclos e magia menstrual se nem mesmo o básico como pão na mesa ela tem para os seus filhos? E ela é menos feminina por isso? Entendem? É complicado falar em feminino e, principalmente, colocá-lo no lugar de uma luta. Outros exemplos: a mulher trans não seria feminina? E a mulher sem útero, sem ovários? E o rapaz trans ? Ele também corre risco de estupro nessa sociedade, sabia? E as moças lésbicas? Elas não têm feminino? Lembram da Miss Espanha que quase perdeu o título porque era lésbica e, por isso, não seria feminina? E a miss Brasil negra que foi ridicularizada? E a Globeleza retirada de cena porque sua pele era “negra demais” e, portanto, não muito feminina para os padrões de “ser feminina”? E avançando ainda mais, precebe como a concepção atual de “ser feminina/ feminino” é racista? Afinal, as perguntas são para gerar dúvidas mesmo e percebermos como é boçal tentar apagar a luta de décadas de mulheres engajadas. Que feminino? O que é isso? Encontro das princesas?

Quando se propaga “o feminino e a luta das mulheres” ou “o feminino vai revolucionar/ mudar”, eu só penso: não vai não! Não por agora, pois o feminino foi estuprado, jogado em uma masmorra e arrancado de si mesmo. Daí, algumas mulheres se levantaram ainda em choque e criaram o feminiSmo (não com esse nome, mas a ideia era essa) para resgatar o direito à vida e à dignidade, não só delas, mas também de seus filhos, seja lá de que sexo fossem.

Na última roda de mulheres que facilitei uma delas interrompeu-me dizendo que eu não poderia falar feminiSmo em rodas de sagrado e, por isso, escrevo esse texto. “Você não deve dizer feminiSmo, mas feminino porque femiSnismo não é bom, a mulher é feminina e não feminiSta’’. Eu levei três meses para escrever sobre isso, não por falta de força, mas formatando o raciocínio, como historiadora, e tentando entender o tamanho do buraco para qual estamos indo. E antes que digam que a moça era evangélica, não era não. Confuso? Para mim não! Essa onda conservadora e mantenedora de privilégios travestida de espiritualidade de boutique (não importa qual roupagem/ religião use) ainda vai nos colocar em muitas furadas e quem diz isso não sou eu, o que não falta é pesquisa sobre isso!

Se você não consegue ver sagrado e causas sociais no mesmo pacote é porque temos um problema! Como já escrevi em outro artigo, o sagrado feminino come mortadela e pega trem lotado todo dia. Como esses discursos começam? Pelo medo, pelos fundamentalismos infundados, pelo preconceito e, claro, o de sempre, para o mantenimento de uma classe priviligiada que se usa de discursos espiritualistas/ religiosos. Nossa, Palmira, tá viajando? Não, não estou, pois nossa juventude está aí, de uma lado do tunel, gritando “país laico cristão” e “bíblia sim, constituição não”, e do outro lado do túnel “paz e amor, fulano tá na miséria porque vibra nisso”. Se você ainda não acredita, lembra da década de 70? Marcha da Família com Deus pela liberdade? Vixe! Não lembra? Pega aí o livro de História do Brasil e vamos conversar.

É um cripopó mesmo! No Brasil a gente sempre misturou tudo e religião/ espiritualidade servem para discursos conservadores e é muito plausível essa galera querer “baixar o fogo” das feministas ou retirar o protagonismo de mulheres que estão em luta porque, afinal, “a gente até gosta dessa coisa de feminino porque vende e traz fama, mas essas feministas são chatas pacas”. Quando não se usa a palavra feminismo é como se confirmassemos, por exemplo, expressões machistas como “feminista é tudo mal comida”, “esse bando de feminista chata”, “só podia ser feminista mesmo”, “merece ser estuprada porque é feminiSta”, “essa sapata merece ser estuprada porque não é femiNIna”. Entendem o desenrolar na situação?

Não é momento de termos vergonhas ou renergarmos nossas lutas, pois até moças evangélicas, que segundo pesquisas são as que mais sofrem violência doméstica, estão se tornando feministas a fim de conquistarem seus direitos e ter voz dentro de suas Igrejas. Você não irá deixar de ser religiosa ou sagrada, ou vai passar a odiar homens porque é feminista ou porque, em algum momento, se simpatizou com as causas das mulheres. Ser uma mulher que luta e exige igualdade não te faz menor, não te faz menos sagrada, pelo contrário.

Não permita que a onda de conservadorismo a qual assola o nosso país nos calem ainda mais. Em um momento que bancadas religiosas tomam o Brasil é triste ver nosso movimento sendo diminuído pelas próprias mulheres. Junto a isso, tamém não é legal se usar da pauta feminista e jogar o movimento no lixo ao mesmo tempo em que se aproveita dele. Você não precisa ser feminista, mas então, por favor, não se utilize das pautas de luta como produto ou mercadoria. O feminino nos foi surrupiado e a luta é justamente essa. Então, mais feminiSmo para que cada mulher possa descobrir, por si mesma, o seu próprio feminino. Afinal, o que é ser feminina? Tipo: “moça, você é feminina?”. Essa pergunta não é estranha? Reflitam!

Palmira Margarida é historiadora especialista em cheiros e emoções e ama pesquisar sobre aromas do corpo. É sinesteta e come coisas só porque são amarelas, inclusive não-comestíveis. Ama viajar e captar os aromas das trilhas e das histórias dos lugares por onde passa. Cria aromas-artísticos e provocadores e você pode encontrar em www.perfumebotanico.com.br

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Palmira Margarida
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Historiadora, escreve sobre erotismo, cheiros e prazer feminino - @palmiramargaridabr / instagram