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Infodumps sobre a construção de mundo, como deixá-los interessantes?

Paulo Moreira
Escritos Fantásticos
7 min readJan 29, 2022

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“Por que você está falando isso se o personagem já sabe disso?”

Você já deve ter ouvido esse argumento atacando os temidos — e polêmicos — infodumps, o excesso informativo que é uma armadilha para escritores, especialmente os de fantasia que lidam com mundos fictícios. Como assim eu não posso dizer que meu mundo tem três sóis? Que os rios correm para o lugar mais alto? Que a tecnologia usa cinzas de fadas queimadas em fogueiras santas?

Embora eu concorde que a grande maioria dos infodumps devam ser cortados sem piedade, preciso confessar que esse argumento não faz muito sentido. Se o personagem ou narrador apenas contar o que o personagem não sabe, não haverá nada a se descrever já que ele está acostumado ao mundo em que habita. Jamais descreveríamos o próprio personagem, porque ele já se conhece. Só descreveríamos as coisas estranhas àquele mundo, então pra que criar o mundo, afinal?

Além disso, o leitor não é o personagem. Ele precisa de algumas informações que o ambientem ao cenário, às pessoas dali, ao que está acontecendo pra entender a história e continuar lendo. Claro que o excesso é perigoso, corre o risco de o leitor abandonar a leitura se o rumo normal do enredo demorar demais para voltar. Mas não seria prepotência supor que todos os leitores farão isso por causa de algumas linhas ou um parágrafo informativo?

Entendo esse ódio por infodumps, eu tive também por muito tempo, e nas minhas histórias ainda corto sem piedade. Muitos infodumps são apresentados com um tell, um “conte”, o que é cada vez mais odiado pelos escritores. O show, ou “mostre”, seria a perfeição, mesmo que faça o texto parecer um roteiro robótico. Mas discutir estilo de escrita não é minha intenção nesse artigo, cada um tem o seu, e que bom que é assim, então continuemos falando dos infodumps.

Após ler e analisar os livros que leio, percebi que infodumps não são tão horríveis quanto aparentam, e se bem apresentados podem até exercer alguma função, saindo da área de excesso descritivo para uma de “informação interessante”, por vezes “necessária”. Eu te mostrarei exemplos, e você pode muito bem argumentar que não são infodumps, mas eu te lembro que essas versões são as versões finais do texto desses escritores, e que muito provavelmente, é um infodump modificado, afinal ninguém escreve a versão final logo do início. Seria prepotente, de novo, supor que os escritores publicados não errariam.

O primeiro exemplo está em Harry Potter e o Enigma do Príncipe. O professor Slughorn está dando uma festa para os alunos mais influentes de Hogwarts. Harry (ou o narrador com os olhos de Harry) descreve:

Todos ali pareciam ter sido convidados porque estavam ligados a alguém famoso ou influente — todos exceto Gina. Zabini interrogado depois de McLaggen, era filho de uma bruxa famosa por sua beleza (pelo que Harry pôde entender, ela casara sete vezes e o marido morrera misteriosamente, deixando-lhe montanhas de ouro). A seguir foi a vez de Neville: foram dez minutos muito desconfortáveis, porque os pais de Neville, aurores muito conhecidos, tinham sido torturados até enlouquecer por Belatriz Lestrange e seus companheiros Comensais da Morte. (Harry Potter e O Enigma do Príncipe, J. K. Rowling)

Perceba como as frases grifadas podem ser consideradas infodumps. Para que Harry está nos contando das montanhas de ouro da mãe de McLaggen? Por que nos fala que os pais de Neville enlouqueceram se ele já sabe disso, inclusive nós leitores? Por que citar os nomes dos torturadores? Perceba como o argumento “não diga o que o personagem já sabe” não se sustenta muito bem, que há uma certa intenção nessas informações contadas.

Agora vamos para Os Portões de Roma de Conn Iggulden, onde há a seguinte passagem:

Seria o maior circo já organizado em Roma, e Cornélio Sila teve sua reputação e seu status garantidos pelo feito. Chegou a haver pedidos no Senado para uma estrutura mais permanente a fim de abrigar os jogos. As arquibancadas de madeira aparafusadas e montadas para os grandes eventos eram insatisfatórias e pequenas demais para o tamanho da multidão que viria ver os leões do continente negro e desconhecido. Os planos para um vasto anfiteatro circular onde fosse possível colocar água e representar batalhas marinhas foram apresentados, mas o custo era gigantesco e foram vetados pelos tribunos do povo, como era de esperar. (O Imperador: Os Portões de Roma, Conn Iggulden)

Por que não cortar as sentenças grifadas? Nós queremos ver as batalhas do circo, bem como querem duas crianças que estão na arquibancada, e não saber do custo de alguma construção. Como essas sentenças influenciam o nosso entendimento do cenário? Se eu disser que as duas crianças são cuidadas por um senador romano, aí você percebe a importância da informação.

Em mais um exemplo, veremos uma descrição, de um cenário de O Labirinto, de Kate Mosse, com a personagem Alaïs que percorre seu castelo no comecinho da manhã:

O avô de Raymond-Roger Trencavel havia construído o Châteuau Comtal mais de cem anos antes, uma sede de governar seus territórios cada vez mais extensos. Suas terras iam de Albi no norte e Narbonne no sul, de Béziers no leste e Carcassonne no oeste.

O Chatêau dispunha-se ao redor de um grande pátio retangular, e havia incorporado, na ala oeste, os restos de um castelo mais antigo. Estava integrado ao reforço da seção ocidental dos muros fortificados que cercavam a Cité, um anel de pedra sólida que se erguia bem alto acima do rio Aude e das terras pantanosas do norte logo abaixo. (O Labirinto, Kate Mosse)

Por que Kate Mosse descreve o castelo se Alaïs já o conhece por viver ali? Por que dizer que foi construído a cem anos e falar de suas fronteiras? A resposta é porque, mesmo que a Alaïs saiba, estamos no começo do livro e o leitor não sabe disso, ele precisa saber para entender o cenário, além de fazer-nos sugerir a força do castelo e a riqueza da família Trencavel. As informações também funcionam para desacelerar o ritmo.

Nosso último exemplo é de A Canção da Espada, de Bernard Cornwell (escritor que me inspirou a escrever esse artigo), uma descrição feita por Uhtred:

Sempre gostei de Lundene. É um lugar de ruínas, comércio e malignidade que se esparrama pela margem norte do Temes. As ruínas eram as construções que os romanos deixaram ao abandonar a Britânia, e sua antiga cidade coroava os morros na extremidade leste da cidade, rodeada por uma muralha feita de tijolos e pedras. Os saxões nunca haviam gostado das construções romanas, temendo seus fantasmas, assim haviam feito sua cidade a oeste, um lugar de palha, madeira e barro, becos estreitos e valas fedorentas que deveriam levar o esgoto para o rio, mas em geral ficavam brilhando imundas até que uma chuvarada as transbordasse. A nova cidade saxã era um lugar movimentado, fedendo com a fumaça dos fogos dos ferreiros e barulhenta com os gritos dos comerciantes. Na verdade, era movimentada demais para se incomodar em fazer uma muralha defensiva. Por que precisariam de uma, argumentavam os saxões, quando os dinamarqueses se contentavam em viver na cidade antiga e não haviam demonstrado qualquer desejo de trucidar os habitantes da nova? Havia paliçadas em alguns lugares, evidência de que alguns homens tinham tentado proteger a cidade nova que crescia rapidamente, mas o entusiasmo pelo projeto sempre morria e as paliçadas apodreciam, ou então as madeiras eram roubadas para fazer novas construções ao longo das ruas fedendo a esgoto.

O comércio de Lundene vinha do rio e das estradas que levavam a todas as partes da Britânia. As estradas, claro, eram romanas, e por elas fluíam lã e cerâmica, lingotes e peles, enquanto o rio trazia luxos de outras terras, escravos da Frankia e homens famintos procurando encrenca. Havia bastante disso, porque a cidade, construída onde três reinos se encontravam, praticamente não tinha governo naqueles anos. (Crônicas Saxônicas: A Canção da Espada, Bernard Cornwell)

As perguntas se repetem. Por que Uhtred nos dá essas informações se ele já sabe disso? Por que falar da influência romana na cidade? Por que falar das mercadorias comercializadas? Por que não cortar tudo e voltar as escrever a ação da história? Acontece que toda essa exposição que o personagem já sabe serve para nos contextualizar ao cenário, para nos sugerir e explicar os problemas que existem em Lundene, porque nós leitores não estamos na Idade Média vivendo naquela cidade. Ainda, Uhtred ama as construções romanas, seria estranho demais que não falasse sobre.

3 dicas para transformar infodumps

A análise dessas passagens expositivas, que são frequentes nos livros embora os escritores teimem em dizer que não, me fez concluir o que pode ser feito para apresentar os infodumps de maneira mais sutil, quem sabe até mesmo interessante, mas só se você precisar.

Eu deixo 3 dicas. Pegue um informação contada de seu livro, seja pelo narrador ou por algum personagem, que pareça um infodump (e se parece provavelmente é) e procure responder essas perguntas:

  1. A informação mostra ou nos faz sugerir alguma característica sobre o personagem?
  2. A informação cria ou potencializa algum conflito interno do personagem?
  3. A informação adiciona dificuldades ao personagem em alcançar seu objetivo atual?

Se a resposta for sim para todas essas perguntas, mantenha a informação. Não é um infodump. Perceba que, embora nasça do mundo fictício (worldbuilding), a informação precisa está relacionada com o personagem, porque sem personagens não existe história.

Se a resposta for não para todas, corte a informação. É um infodump.

Ou recicle-a. Como fazer isso? Reescrevendo-a para que ela nos mostre mais do personagem, potencialize algum conflito e/ou adicione dificuldades ao objetivo. Você não precisa que a informação faça exatamente essas 3 coisas, mas se conseguir, ótimo.

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Paulo Moreira
Escritos Fantásticos

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.