Descubra quais Arquétipos da Natureza estão presentes na sua história

Paulo Moreira
Escritos Fantásticos
12 min readAug 14, 2018
Photo by Simon Matzinger on Unsplash

Inicialmente, bom dia ou boa noite dependendo do momento no qual você está lendo esse texto que pretende ser um pouquinho denso. Eu gostaria de ter abordado aqui a criação de mitos fantásticos, ou seja, como os mitos são criados nas histórias de fantasia e que relação eles possuem com os personagens e o enredo. Contudo, nas minhas pesquisas através do conhecido dr. Google, acabei encontrando um assunto mais interessante de ser discutido: uma perspectiva da psicologia sobre o aspecto espiritual da natureza. Boa parte dos argumentos tem origem do estudo The spiritual aspect of nature: a perspective from depth psychology, de Herbert W. Schroeder. No entanto, para melhor compreensão desse estudo, me senti com a obrigação de encontrar alguns exemplos além dos citados pelo autor. Na medida do possível, tentei deixar as referências para que os curiosos deem uma olhada ligeira. Lembrando que tratar de significados de mitos é uma tarefa complicada, uma vez que cada pessoa pode interpretá-lo de maneira diferente de outra pessoa, por isso, caso você não concorde com as informações desse texto, sem problemas. A sua interpretação foi diferente da minha, pois somos pessoas diferentes com experiências de vida diferentes e conhecimentos diferentes.

Em sua pesquisa, Schroeder nos mostra que o valor espiritual da natureza tem sido celebrado com uma certa frequência nas artes, na literatura e na música. Entretanto, a falha em entender e respeitar os valores espirituais ligados aos meio ambiente ocasiona também uma falha na gestão florestal.

Mas o que significa “espiritual”?

Antes de falarmos sobre a questão espiritual da natureza, precisamos entender sobre o que estamos tratando. Em outras palavras, precisamos dar um conceito para fenômenos espirituais e, como nosso tema é a psicologia, não é necessário acreditar em entidades sobrenaturais — uma vez que isso está relacionado com a tradição e, portanto, fora do campo científico. Assim, iremos considerar a natureza psicológica desses fenômenos.

A palavra “espiritual” possui vários significados, alguns temporários e outros incompletos. Mas a maioria desses significados, quando relacionados à natureza, pode ser resumida pela frase a seguir:

“Espiritual” se refere à experiência de estar ligado ou em contato com o “outro”, o qual transcende a percepção individual de alguém sobre si e dá um sentido, a nível mais profundo que o nível intelectual, à vida desse alguém.

Dessa forma, esse “outro” encontrado por “alguém” pode ser uma divindade sobrenatural, como Deus, ou ainda uma entidade natural, como a Terra. Pode ser algo mais externo, como o processo de evolução, ou mais subjetivo, como a inspiração. Resumindo, o “outro” não é algo especifico, mas aquilo que ascende todos as coisas que existem. E esse contato entre o “outro” e o “alguém” é sentido no coração, despertando poderosas emoções. Para alguns, a natureza é o principal cenário para experiências espirituais.

Perspectiva da Psicologia Profunda

O ponto de vista que iremos abordar está relacionado com a psicologia profunda de C. G. Jung, ou seja, trataremos dos fenômenos da mente inconsciente, a qual é uma parte da psique humana que jaz fora da consciência e/ou controla o consciente ego.

Arquétipos e mitologia

Para Jung, arquétipos são padrões instintivos de comportamento, de emoções e do imaginário comuns a todos os seres humanos. Tais arquétipos guiam e dão significado a nossas interações com outras pessoas e com o mundo. São o “outro” que as pessoas encontram em suas experiências espirituais.

A partir dessa perspectiva, podemos supor que a experiência espiritual na natureza envolva a projeção de determinados arquétipos relacionados aos elementos da natureza. Qual seriam esses arquétipos? Veremos ao longo do texto.

É na mitologia e na literatura onde se encontram vários arquétipos ativos na psique coletiva dos homens. Desse modo, para identificar o significado espiritual da natureza, pode-se analisar os deuses e deusas que possuem uma relação com os seus aspectos. Isso incluiria Deméter da mitologia grega, a deusa da vegetação, da fertilidade e, consequentemente, da agricultura, assim como Pã, a divindade rural dos bosques e campos.

Gravura com uma árvore segurando os vários mundos com seus galhos. No centro há uma montanha. Um arco-íris une os mundos.
Yggdrasil: O Freixo-do-Mundo da Mitologia Nórdica (Via WikimediaCommons)

Podemos ainda examinar a maneira como esses elementos do meio ambiente foram usados nas tradições religiosas e mitológicas de diversas culturas. Por exemplo, muitas tradições mencionam uma árvore que fica no centro do universo, a simbólica Árvore do Mundo, um eixo simbólico e ponto de contato entre a existência terrena e mundana com os reinos divinos acima e abaixo da Terra. Bosques sagrados também são outros elementos comuns das tradições religiosas antigas (alguém lembrou do Bosque Sagrado de Winterfell ou eu fui o único?), preservados e dedicados geralmente a uma deusa. Para os celtas, sua função é quase a mesma da Árvore do Mundo: ligar o mundo material aos mundos sagrados. Por isso, bosques sagrados eram considerados invioláveis, protegidos por civis e por leis religiosas.

Segundo Jung, os arquétipos são encontrados não apenas na mitologia, mas também em sonhos e fantasias de pessoas individuais, sendo cruciais para a sua mudança e seu crescimento pessoal. O exemplo mais óbvio de seus arquétipos, tendo relação com a natureza, é a Grande Mãe, um poderoso complexo psicológico que pode tanto ser positiva — nutrindo o desenvolvimento psicológico — quanto negativa — destruindo-o. Projetada no meio ambiente, ela toma a forma da Mãe Natureza, a qual nutre os seres vivos com alimentos, mas também destrói regiões inteiras com catástrofes assustadoras.

Outro exemplo é o Anima, o lado feminino e inconsciente de uma personalidade masculina. Como o Anima está associado à criatividade, intuição e aspectos espirituais, na natureza ele se encontra sob a forma das ninfas e espíritos que moram em árvores e riachos em muitas tradições mitológicas. Aqui podemos relacionar o Anima com os Elfos de Tolkien, uma vez que, embora eles tenham aparência humana, são mais belos e sábios do que os homens, com maiores poderes espirituais e empatia mais próxima com a natureza. Nas palavras de Tolkien:

“Eles são todos feitos pelo homem em sua própria imagem e semelhança; mas libertos daquelas limitações que ele sente pesarem mais sobre ele. Eles são imortais, e sua vontade é diretamente efetiva para o alcance de imaginação e desejo.”

Em outras palavras, os Elfos de Tolkien se aproximam da figura do Anima por terem características em comuns, como apreço pelas artes e pela natureza.

Ainda a respeito do Anima, gostaria de fazer aqui uma relação com Iara, a rainha das águas, presente na mitologia de alguns povos indígenas. Iara (ou Uiara) era uma mulher belíssima das tribos do rio Amazonas, atraindo olhares de todos os homens das aldeias e amada por todos as plantas e animais. Mas era indiferente a seus admiradores. Uma noite, enquanto banhava-se no rio, foi surpreendida por homens estranhos e violentada, e seu corpo foi deixado no rio. Ali, o espírito das águas a transformou num ser metade peixe, metade mulher, ou seja, numa sereia. A partir de então, Iara atrai todos os homens com seu doce canto para as profundezas do rio, de onde nunca mais retornam. Em sua lenda, vemos duas características que remontam a ninfas e, consequentemente, ao Anima: o rio em que habita e seu belo canto. Mas, nesse caso, seria o Anima algo tão destrutivo para a personalidade masculina?

Por último, temos o Self, a força que guia e a última meta do processo de crescimento individual. É o equilíbrio dos diferentes lados da psique. Esse arquétipo, ao projetar-se nas florestas, faz com que a natureza seja percebida como a personificação do equilíbrio perfeito, beleza, simetria e completude. E claro, não tem como não lembrar das séries animadas Avatar, a lenda de Aang e de Korra quando falamos em equilíbrio. Quem assistiu essas animações deve lembrar bem que só o Avatar é capaz de dominar os quatro elementos e trazer equilíbrio às nações. Obviamente, seu arquétipo é o Self e, ao meu ver, essa série representa muito bem as consequências da ausência desse arquétipo. Quando o Avatar Aang some por 100 anos, o equilíbrio é perdido e a Nação do Fogo subjuga outras nações. O Avatar também pode ser comparado à Árvore do Mundo, pois os dois são a ponte para o mundo terreno e divino. (Deixo no fim dois textos muito interessantes para os curiosos que desejam saber mais a respeito dessa série.) Podemos citar vários exemplos da jornada em busca do equilíbrio, como a relação do espírito da lua e do mar, a luta incessável entre Raava e Vaatu, os dramas vividos por Zuko, Aang e Korra à procura da realização de seus objetivos… Além disso, a percepção da natureza como forma do equilíbrio perfeito e beleza está presente em quase todos os episódios.

Pássaros empoleirados formam um arranjo circular com galhos e flores, uma mandala
Mandala: símbolo do Self (Via Pixabay)

O desrespeito com a natureza e suas consequências

É interessante ressaltar que alguns mitos demonstram os problemas advindos da destruição ou manipulação incorreta do meio ambiente. Quando manipulamos o meio ambiente ao nosso redor sem entender e respeitar as suas funções físicas e ecológicas, essas funções retornam de uma maneira negativa, através da poluição e das mudanças climáticas. Isso também ocorre quando funções fisiológicas e instintivas são ignoradas ou manipuladas pelo ego racional, retornando então como sintomas neuróticos. Dois exemplos simbólicos acerca desse tema são encontrados na mitologia grega: o de Deméter e o de Pã.

Pintura de um rapaz com cifres e pernas de bode tocando flauta num bosque, ao fundo uma mulher de vestido vermelho o observa
Pã (WikimediaCommons)

Pã é uma divindade selvagem e irracional dos bosques e campos com pernas e cifres de bode. Acreditava-se que era capaz de trazer um medo súbito nos viajantes solitários — daí vem a palavra pânico, e era visto com qualidades positivas pelos gregos antigos, se tornando uma representação do paganismo e uma personificação da natureza. Até que o cristianismo alcançou as Ilhas Gregas e declarou que Pã estava morto. Essa morte pode ser vista psicologicamente como a repressão dos instintos, das partes selvagens da psique. E, como já dito anteriormente, funções instintivas quando reprimidas retornam como sintomas. No caso de Pã, ele retornou como uma forma negativa, como o grande inimigo, a fonte de todas as dores, o demônio. Sua imagem, principalmente seus cifres, foi incorporada à imagem de Satã.

Nas palavras de Silke, em Berserk, um mangá de Kentaro Miura:

“No passado, a existência de elfos era aceita com naturalidade, mas depois que os ensinos do Vaticano se espalharam… outra forma de ver o mundo foi difundida e pessoas capazes de vê-los se tornaram menos comuns. Então, a maioria dos elfos que se tornaram incapazes de compartilhar sentimentos com humanos desapareceu em algum lugar no reino dos mortos.”

E agora essas criaturas estão voltando no mangá… Não sei se eu fico feliz ou assustado com tais acontecimentos…

Dessa forma, o arquétipo da natureza de Pã foi lançado no arquétipo da Sombra, onde estão contidos todos os impulsos e atitudes julgados como inaceitáveis pela sociedade. Com isso, a natureza passou a pertencer às Trevas e devia ser conquistada, civilizada e subjugada na batalha entre Luz e Trevas.

A outra descrição do conflito entre o homem e a natureza se apresenta no mito do lenhador Erisichthon, o qual enfureceu a deusa Deméter ao derrubar um bosque sagrado. Negligenciando os apelos da deusa, Erisichthon cortou um carvalho do bosque sagrado e acabou matando a Dríade, uma ninfa dos bosques, que morava na árvore. Como punição, Deméter afligiu o lenhador com uma fome insaciável. Assim, Erisichthon perdeu toda a sua fortuna e vendeu sua filha como escrava para conseguir saciar sua fome. Mas a grande quantidade de alimentos que ele comia não lhe satisfazia de nenhum modo. Por fim, Erisichthon morreu ao tentar devorar seu próprio corpo.

Uma mulher com rosas vermelhas nos cabelos deitada no chão verde, ela usa o mato como lençol
(Via Pixabay)

Esse mito pode ser interpretado como uma descrição simbólica da desvalorização de nossa cultura e da repressão do aspecto espiritual e intuitivo da natureza e da psique e das consequências que isso produz. Ao ser desrespeitada, a Mãe Natureza, ou Deméter nesse caso, deixou a função de nutrir os seres vivos e retornou com a sua face negativa, a de destruidora, de causadora da fome e da penúria. Tal mudança não ocorreria se Erisichthon tivesse respeitado a dimensão espiritual representada pela dríade do carvalho. Assim como o ressurgimento de Pã na figura de Satã, Deméter representa a realidade psicológica na qual o arquétipo reprimido não desaparece, mas assume uma forma negativa que pode oprimir o consciente ego.

Dois mitos brasileiros também apresentam esse lado positivo-negativo em suas divindades. Seria vergonhoso discutir um texto sobre a forma espiritual da natureza sem tratarmos dos povos indígenas. Para os índios, a floresta é um mundo, o seu habitat. É dali que eles obtêm tudo o que precisam para sobreviver, desde material para construção, ferramentas, alimentos e até remédios. Por isso, é fácil notar que sua tradição está intimamente relacionada com a natureza ao seu redor.

O primeiro mito a ser analisado é o do boitatá, representado por uma cobra de fogo protetora das matas, florestas e animais. Sua história é tão antiga que relatos do boitatá foram encontrados nas cartas do Padre José de Anchieta, em 1560. Na região Nordeste, ele é conhecido como fogo-que-corre. Tal como Deméter, a serpente só ataca aqueles que desrespeitam a natureza tentando incendiar as matas, chegando a cegá-los, persegui-los e matá-los. Infelizmente, não consegui encontrar a forma positiva dessa serpente, ou seja, a forma responsável pela nutrição do indivíduo, mas apenas a forma destruidora da natureza em relação aos homens que ignoram seu lado espiritual.

Porém, consegui encontrá-la na lenda do curupira. O curupira é um ser com o tamanho de uma criança, peludo, de unhas compridas e afiadas, com o calcanhar para a frente e os dedos dos pés para trás. Algumas lendas descrevem-no com cabelos cor de fogo e olhos cor de esmeralda. Não teria como não relacionar essas características com as características selvagens do Pã da mitologia grega. O curupira é responsável por cuidar dos animais, morando no buraco das árvores da Floresta Amazônica, assim como algumas ninfas (com isso, poderíamos dizer que ele possui o arquétipo do Anima, contudo, não acho essa afirmação tão adequada, uma vez que o Anima possui características direcionadas às artes e à intuição, as quais não encontrei na personalidade do curupira).

Sua face positiva é revelada quando os caçadores e pescadores respeitam a mata, oferecendo cachaça, fósforo e fumo à criatura. Dessa forma, o curupira faz com que os caçadores tenham fartura nas caçadas e sejam protegidos. Já a face negativa de seu arquétipo surge quando há a exploração incorreta da natureza, como a caça por esporte ou maldade e destruição da floresta. O curupira, furioso, esconde a caça e deixa esses homens perdidos na mata, podendo também agredi-los até deixá-los loucos, dependendo da maldade do caçador. É nesse personagem onde vemos claramente, nos mitos indígenas, a repreensão do caráter espiritual da natureza — ou seja, o desrespeito dos caçadores em relação à floresta e ao curupira — e a formação do sintoma — a natureza deixa de possibilitar o sustento dos caçadores e o curupira passa de aliado a inimigo.

Então, é isso… Ufa! Consegui chegar ao fim desse texto e espero que as informações tenham sido passadas de modo claro e consistente. Ressaltando que mitos sobre uma mesma entidade variam de região para região. Dessa maneira, alguns arquétipos podem ser encontrados mais facilmente em certas histórias tradicionais, enquanto em outras, eles estão mais escondidos e talvez nem estejam ali. Por exemplo, alguém pode encontrar a face positiva do boitatá em alguma versão de seu mito. Além disso, talvez não seja adequado comparar mitos indígenas com mitos gregos, devido a esses povos viverem e terem uma cultura muito diferente um do outro. Ainda além disso, a interpretação de um mito mexe com a subjetividade de uma pessoa, a qual é individual. Como já disse no início desse texto, você pode muito bem discordar das argumentos utilizados aqui, uma vez que sua interpretação pode ser muito diferente da minha.

REFERÊNCIAS

Texto principal:

SCHROEDER, Herbert W. The spiritual aspect of nature: A perspective from depth psychology. In: In proceedings of Northeastern Recreation Research Symposium (p. 25–30), April 7–9, 1991, Saratoga Springs, NY. 1992.

Textos de apoio:

BETTEGA, Fábio. Elfos de Tolkien. Valinor. Disponível em: <https://www.valinor.com.br/8247>

MARTINEZ, Marina. Boitatá. Infoescola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/folclore/boitata/>

Mitos e lendas da cultura indígena. ProgDoc. 2012. Disponível em: <http://prodoc.museudoindio.gov.br/noticias/retorno-de-midia/68-mitos-e-lendas-da-cultura-indigena>

Mitos e lendas do Brasil. Sua pesquisa. Disponível em: <https://m.suapesquisa.com/mitos/>

MORAES, R. R. A. Curupira. Infoescola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/folclore/curupira/>

NEFELINO, Uor. Avatar — refletindo sobre a importância do equilíbrio. Blogmil. 2016. Disponível em: <https://www.blogmil.net/2016/09/avatar-refletindo-sobre-importancia-do.html?m=1>

YUEN, Isaac. Avatar: the last airbender — world and mythology. Ekostories. 2012. Disponível em: <https://ekostories.com/2012/08/30/avatar-airbender-world-mythology/>

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Paulo Moreira
Escritos Fantásticos

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.