O Quarto da Torre, por E. F. Benson — Tradução

Paulo Moreira
Escritos Fantásticos
21 min readNov 24, 2019

PREFÁCIO

ESSAS histórias foram escritas na esperança de dar algumas náuseas agradáveis aos seus leitores, de modo que, por sorte, alguém que possa estar ocupado com a sua leitura atenta durante a meia-hora de lazer antes de ir para a cama quando a noite e a casa estiverem quietas, possa porventura lançar um olhar casual para os cantos e lugares escuros do quarto onde está sentado, para ter certeza que nada incomum espreita nas sombras. Pois esse é o objeto confesso das histórias de fantasmas e de contos que lidam com forças obscuras e ocultas as quais, às vezes, se fazem manifestar de forma perturbadora. Por isso, o autor deseja fervorosamente alguns momentos desconfortáveis em seus leitores.

Alguns desses contos apareceram antes em várias revistas; o restante é novo. Um deles, a história do “Homem que foi longe Demais” é o embrião do que posteriormente se desenvolveu em um livro chamado “O Anjo da Dor”.

E. F. BENSON.

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O QUARTO DA TORRE

É PROVÁVEL que todos aqueles que sejam constantes sonhadores tenham experimentado no mínimo um caso ou uma sequência de acontecimentos, os quais vieram à sua mente durante o sono e, posteriormente, se realizaram no mundo material. Mas, em minha opinião, longe disso ser uma coisa estranha, seria muito mais curioso se essa realização não acontecesse ocasionalmente, já que os nossos sonhos estão, em regra, preocupados com pessoas que conhecemos e lugares que nos são familiares, como pode ocorrer no mundo acordado e iluminado pelo dia. É verdade, esses sonhos são frequentemente assaltados por incidentes fantásticos e absurdos, que fazem com que sejam desconsiderados em relação à sua posterior realização, mas, através de um mero cálculo de probabilidades, não parece nem um pouco improvável que um sonho imaginado por alguém que sonha tantas vezes venha ocasionalmente se tornar realidade. Não muito tempo atrás, por exemplo, eu presenciei uma realização parecida de um sonho, o qual não aparentava para mim nada de extraordinário nem qualquer tipo de significância psicológica. Eis a seguir o modo como isso aconteceu.

Um certo amigo meu, que mora no exterior, é amável o suficiente para me escrever ao menos uma vez a cada quinzena. Por isso, quando se passam mais ou menos quatorze dias desde a última vez que ouço falar dele, minha mente, provavelmente consciente ou subconscientemente, fica na expectativa de uma carta sua. Uma noite na semana passada, sonhei que, quando ia subindo para me vestir para um jantar, eu ouvi, como ouço muitas vezes, o som do porteiro batendo na porta da frente, e desviei minha direção para baixo. Ali, no meio de outras correspondências, havia uma carta dele. Depois disso, o fantástico aconteceu, pois ao abri-la, encontrei lá dentro um ás de ouros e, rabiscado de um lado a outro em sua bem conhecida caligrafia, “Estou lhe escrevendo sob custódia, como você bem sabe, essa carta está correndo um risco exorbitante para manter ases na Itália”. Na semana seguinte, eu já estava me preparando para subir e me vestir quando ouvi a batida do carteiro, e fiz exatamente como no meu sonho. Ali, no meio de outras cartas, havia uma do meu amigo. Só não continha o ás de ouros. Se isso houvesse ocorrido, eu atribuiria mais peso à questão, a qual, da forma que aconteceu, parece para mim uma coincidência perfeitamente comum. Sem dúvidas eu, consciente ou subconscientemente, esperava uma carta dele, e isso inspirou o meu sonho. De igual modo, o fato que meu amigo não me escrevera por uma quinzena o inspirava a fazê-lo. Mas às vezes não é tão fácil assim encontrar uma explicação e, para a história a seguir, eu não consigo encontrar nenhuma explicação. Ela veio do escuro e no escuro ela sumiu novamente.

Durante toda a minha vida eu fui um sonhador habitual: isto é, são poucas as noites que não descubro ao acordar de manhã que algumas experiências mentais eram minhas, e algumas vezes, a noite inteira, aparentemente, uma série de aventuras deslumbrantes acontecem comigo. Quase sem exceção, essas aventuras são agradáveis, embora muitas vezes meramente triviais. É sobre uma dessas exceções que eu vou falar.

Quando eu tinha cerca de dezesseis anos, um certo sonho veio para mim pela primeira vez, e foi assim que aconteceu. Começava comigo na porta de uma grande casa de tijolos vermelhos, onde, eu percebi, ia me hospedar. O empregado que abriu a porta me disse que o chá seria servido no jardim e me conduziu por um saguão baixo de painéis escuros, com uma lareira enorme, para um gramado verde e animado rodeado de canteiros de flores. Havia em torno da mesa de chá um pequeno grupo de pessoas, mas todos eram estranhos para mim, exceto um, que era um colega de escola chamado Jack Stone, claramente o filho da casa, e ele me apresentou à sua mãe, a seu pai e às suas duas irmãs. Lembro-me de estar um tanto surpreso por me encontrar ali, pois eu mal conhecia o garoto em questão, e detestava bastante o que eu sabia dele; além disso, ele havia deixado a escola quase um ano antes. A tarde estava muito quente e uma opressão intolerável reinou. Do outro lado do gramado corria um muro de tijolos vermelhos, com um portão de ferro no meio, lá fora havia uma nogueira. Sentamo-nos na sombra da casa diante de uma fileira de janelas compridas, lá dentro eu podia ver uma mesa coberta, brilhando com vidro e prata. Esse jardim em frente da casa era muito comprido, e em uma das suas extremidades, erguia-se uma torre de três andares, que me aparentava ser muito mais velha que o resto da casa.

Pouco tempo depois, a Sra. Stone, que, como o resto do grupo, havia sentado em absoluto silêncio, disse para mim:

– Jack lhe mostrará o seu quarto: eu lhe reservei o quarto da torre.

Inexplicavelmente, meu coração afundou com suas palavras. Sentia como se soubesse que eu devia ter o quarto da torre, e que ele continha alguma coisa espantosa e importante. Jack levantou-se em um instante, e eu percebi que tinha que segui-lo. Passamos em silêncio pelo saguão e subimos uma grande escadaria de carvalho com várias voltas, e chegamos a um pequeno patamar com duas portas. Ele empurrou uma das destrancadas para que eu entrasse, e sem vir, fechou-a atrás de mim. Então eu soube que minha suposição estava certa: havia alguma coisa horrível no quarto, e com o terror do pesadelo a crescer repentinamente e a me envolver, eu acordei num espasmo de terror.

Ora, aquele sonho ou variações dele me ocorreram intermitentemente durante quinze anos. Muitas vezes, ele vinha exatamente com essa forma, a visita, o chá disposto sobre o gramado, o silêncio mortal sucedido por aquela sentença mortal, a subida com Jack Stone ao quarto da torre onde residia o horror, e sempre chegava ao fim no pesadelo de terror, naquilo que estava no quarto, apesar de eu nunca ver o que era. Noutras vezes, presenciava variações do mesmo tema. Por exemplo, nós ficávamos sentados para um jantar na sala de jantar, dentro das janelas para as quais eu havia olhado na primeira noite quando o sonho dessa casa me visitara, mas onde quer que estivéssemos, havia o mesmo silêncio, a mesma sensação de opressão e pressentimento apavorantes. E eu sabia que o silêncio seria quebrado pela Sra. Stone a me dizer: “Jack lhe mostrará o seu quarto: eu lhe reservei o quarto da torre.” Após o qual (isso era invariável), eu tinha que segui-lo subindo a escadaria de carvalho com várias voltas, e entrar no lugar que eu temia cada vez mais conforme o visitava durante o sono. Ou, outra vez, eu me encontrava jogando cartas ainda em silêncio numa sala de estar iluminada por lustres imensos, que forneciam uma luz ofuscante. De qual era o jogo, eu não fazia ideia; o que eu lembro, com um sentimento de infeliz antecipação, era que logo a Sra. Stone levantava e dizia para mim: “Jack lhe mostrará o seu quarto: eu lhe reservei o quarto da torre.” Essa sala de estar onde jogávamos cartas ficava junto à sala de jantar, e como acabei de dizer, estava brilhantemente iluminada, enquanto o resto da casa estava cheio de escuridão e de sombras. E, no entanto, quantas vezes, apesar desses arranjos de luzes, eu não tinha me debruçado sobre as cartas que me foram repartidas, incapaz por alguma razão de vê-las. Seus desenhos eram, também, estranhos: não havia nenhum naipe vermelho, mas todos eram pretos, e entre eles haviam certas cartas que eram completamente pretas. Eu odiava e temia essas.

Como esse sonho continuava ocorrendo, eu conseguia conhecer a maior parte da casa. Havia uma sala para fumantes depois da sala-de-estar, no fim de um corredor com uma porta de feltro verde. Ali era sempre escuro, e toda vez que ia lá, eu passava por alguém que eu não podia ver saindo na entrada. Evoluções curiosas também aconteciam com os personagens que povoavam o sonho como ocorrem com pessoas vivas. Os cabelos da Sra. Stone, por exemplo, a qual, quando a vi pela primeira vez, eram negros, ficaram grisalhos, e, em vez de erguer-se ativamente, como fizera na primeira vez que disse, “Jack lhe mostrará seu quarto: eu lhe reservei o quarto da torre.”, ela levantava-se muito débil, como se as forças estivessem abandonando suas pernas. Jack também crescia, e tornava-se um rapaz bastante feio, com um bigode marrom, enquanto uma das irmãs parou de aparecer, e eu compreendia que ela havia se casado.

Então aconteceu que esse sonho não me visitou por seis meses ou mais, e comecei a ter esperança de que, com tanto temor inexplicável que eu mantinha, ele havia morrido para sempre. Mas numa noite após esse intervalo, eu me vi sendo acompanhado até o gramado para o chá, e a Sra. Stone não estava lá, enquanto os outros estavam todos vestidos de preto. De imediato adivinhei o motivo, e meu coração saltou ao pensar que talvez dessa vez eu não teria que dormir no quarto da torre e, embora geralmente nós todos sentássemos em silêncio, nessa ocasião o sentimento de alívio me fez tagarelar e rir como jamais havia feito. Mas, mesmo assim, a essa altura os assuntos não eram completamente confortáveis, pois ninguém mais falava, mas todos olhavam secretamente um para o outro. E logo o fluxo tolo da minha conversa secou, e uma apreensão pior do que qualquer coisa, já conhecida antes, gradualmente me alcançou quando a luz extinguiu-se lentamente.

De repente, uma voz que eu conhecia bem quebrou a quietude, a voz da Sra. Stone, dizendo: “Jack lhe mostrará seu quarto: eu lhe reservei o quarto da torre.” Parecia vir de perto do portão, no muro de tijolos vermelhos que delimitava o gramado, e a procurar, vi que a grama do lado de fora estava alta e semeada de lápides. Uma curiosa luz acinzentada brilhava nelas, e eu pude ler a inscrição sobre o túmulo mais próximo de mim, e era, “Em maldita memória de Julia Stone.” E, como sempre, Jack se levantou, e o segui outra vez pelo saguão e subi a escadaria com várias voltas. Nessa ocasião, estava mais escuro que o habitual, e quando eu entrei no quarto da torre, só pude ver os móveis, cujas posições já me eram familiares. Havia também um odor apavorante de podridão no quarto, e eu acordei gritando.

O sonho, com todas as variações e desenvolvimentos que mencionei, continuou em intervalos por quinze anos. Às vezes, eu o sonhava duas a três noites seguidas; numa vez, como disse, houve uma interrupção por seis meses, mas, considerando uma média razoável, posso dizer que o sonhei bastante, tão frequentemente quanto uma vez por mês. Ele tinha, como é óbvio, algo de pesadelo ao seu redor, já que sempre acabava no mesmo terror apavorante, o qual, longe de diminuir, parecia para mim reunir um novo medo toda vez que eu o presenciava. Havia, também, uma consistência estranha e apavorante ao seu redor. Os personagens nele, como mencionei, envelheciam regularmente, a morte e o casamento visitavam essa família silenciosa, e, no sonho, eu nunca mais, depois que a Sra. Stone morrera, voltei os olhos para ela. Mas era sempre a sua voz que me contava que o quarto na torre estava preparado para mim, e se estivéssemos tomando chá no gramado, ou se a cena acontecesse em um dos quartos com vista para ele, eu sempre podia ver a lápide dela em pé, do lado de fora do portão de ferro. Acontecia o mesmo, também, com a filha casada; em geral, ela não estava presente, mas uma ou duas vezes ela retornava, na companhia de um homem, quem eu considerava ser seu marido. Ele, também, como o resto deles, sempre estava em silêncio. Mas, tendo em vista a repetição constante do sonho, deixei de atribuir, nas minhas horas acordado, qualquer significado a ele. Eu nunca encontrei Jack Stone outra vez durante todos esses anos, nem mesmo vi uma casa que se assemelhasse a essa casa sombria do meu sonho. E então, algo aconteceu.

Eu estava em Londres nesse ano, até o fim de julho, e durante a primeira semana de agosto, desci para ficar com um amigo em uma casa que ele havia morado nos meses de verão, no distrito de Ashdown Forest, em Sussex. Saí de Londres cedo, pois John Clinton me encontraria na estação Forest Row, e íamos passar o dia jogando golfe, e ir a sua casa à noite. Ele tinha o seu automóvel consigo e partimos, por volta das cinco da tarde, após um dia perfeitamente agradável, para a viagem, a distância sendo mais ou menos de dez milhas. Como ainda era muito cedo, não tomamos chá na casa do clube, mas esperamos até que chegássemos em casa. Conforme viajávamos, o clima, que até então estivera, embora quente, deliciosamente fresco, me pareceu alterar a qualidade e tornar-se muito estagnado e opressivo, e senti aquela sensação indefinível de ominosa apreensão que eu estava acostumado a sentir diante de um trovão. John, no entanto, não compartilhava do meu modo de ver, atribuindo minha perda de clareza ao fato de eu ter perdido as duas partidas. Os eventos provaram, no entanto, que eu estava certo, embora eu não ache que a trovoada que rompeu naquela noite tenha sido a única causa da minha depressão.

Nosso trajeto se estendia por pistas profundas com ladeiras altas, e antes de irmos muito longe, eu adormeci, e só fui despertado pela parada do automóvel. E com um súbito arrepio, em parte de medo, mas principalmente de curiosidade, me vi de pé na entrada da minha casa do sonho. Fomos, eu a me perguntar se ainda estava ou não sonhando, por um saguão baixo com painéis de carvalho e saímos até o gramado, onde o chá estava disposto na sombra da casa. Fora montado entre canteiros de flores, um muro de tijolos vermelhos, com um portão, delimitava um lado e, além dele, havia um espaço de grama alta com uma nogueira. A fachada da casa era muito comprida e, em uma extremidade, erguia-se uma torre de três andares, evidentemente mais velha que o resto.

Nesse momento, todas as semelhanças com o sonho repetido cessaram. Não havia uma silenciosa e de alguma forma terrível família, mas uma grande reunião de pessoas extremamente alegres, todas elas conhecidas por mim. E, apesar do horror com o qual o próprio sonho sempre havia me preenchido, eu não senti nada agora que a cena dele era reproduzida desse jeito diante de mim. Mas eu sentia uma curiosidade fortíssima quanto ao que ia acontecer.

O chá seguiu seu curso alegre e, em pouco tempo, a sra. Clinton se levantou. E naquele momento, acho que sabia o que ela ia dizer. Ela falou comigo, e o que ela disse foi:

– Jack lhe mostrará seu quarto: eu lhe reservei o quarto da torre.

Com isso, por meio segundo, o horror do sonho tomou conta de mim outra vez. Mas passou rapidamente e, outra vez, não senti nada além da mais forte curiosidade. Não demorou muito tempo para ela ficar amplamente satisfeita.

John virou-se para mim.

– Bem no topo da casa, — disse ele — mas acho que você ficará confortável. Estamos lotados. Gostaria de ir vê-lo agora? Por Jove[1], acredito que você está certo, e que teremos uma tempestade. Como ficou escuro!

Levantei-me e o segui. Passamos pelo saguão e subimos a escada perfeitamente familiar. Então, ele abriu a porta, e eu entrei. E, naquele momento, o terror absoluto e irracional novamente me possuiu. Eu não sabia do que tinha medo: simplesmente tinha. Então, como uma recordação repentina, como quando alguém se lembra de um nome que há muito escapou da memória, eu soube do que eu tinha medo. Eu tinha medo da Sra. Stone, cuja sepultura com a sinistra inscrição “Em maldita memória”, tantas vezes via em meu sonho, logo depois do gramado que ficava abaixo da minha janela. E então, mais uma vez, o medo passou tão completamente que me perguntei o que havia a temer, e me vi, sóbrio, quieto e são, na sala da torre, cujo nome ouvira tantas vezes em meus sonhos, e cuja cena era tão familiar.

Olhei em volta com um certo senso de propriedade, e descobri que nada havia mudado desde as noites de sonho nas quais eu o conheci tão bem. Logo à esquerda da porta ficava a cama, ao longo da parede, com a cabeceira no canto. Na mesma direção ficava a lareira e uma pequena estante; do outro lado da porta, a parede externa era perfurada por duas janelas com grades, entre as quais ficava a penteadeira, enquanto, alinhado junto à quarta parede, ficava o lavatório e um grande armário. Minhas malas já tinham sido desfeitas, pois os utensílios de vestir e despir estavam postos em ordem no lavatório e na mesa do banheiro, enquanto minhas roupas de jantar estavam espalhadas no cobertor da cama. E então, com um súbito início de um receio inexplicável, vi que havia dois objetos bastante notáveis que eu não tinha visto nos meus sonhos: um, uma pintura a óleo em tamanho real da Sra. Stone, o outro um esboço em preto-e-branco de Jack Stone, representando-o como ele me aparecera apenas uma semana antes, no último da série desses sonhos repetidos, um homem bastante misterioso e malvado, com cerca de trinta anos. O retrato dele pendia entre as janelas, olhando diretamente no outro lado do quarto para o outro retrato, que pendia ao lado da cama. Naquele momento, olhei adiante e, ao olhá-lo, senti novamente o horror do pesadelo me agarrando.

Ele representava a Sra. Stone quando eu a vira pela última vez em meus sonhos: velha, murcha e de cabelos brancos. Mas, apesar da evidente debilidade do corpo, uma terrível exuberância e vitalidade brilhavam através do envoltório da carne, uma exuberância totalmente maligna, uma vitalidade que babava e espumava com o mal inimaginável. O mal irradiava dos olhos estreitos e vesgos; ria na boca demoníaca. Todo o rosto era imbuído com um júbilo secreto e apavorante; as mãos, juntas nos joelhos, pareciam tremer com um contentamento reprimido e sem nome. Vi também que estava assinado no canto inferior esquerdo e, me perguntando quem seria o artista, olhei mais de perto e li a inscrição “Julia Stone, por Julia Stone”.

Houve uma batida na porta e John Clinton entrou.

– Tem tudo o que você deseja? — perguntou ele.

– Bem mais do que eu desejo. — disse eu, apontando para o retrato.

Ele riu.

– Uma senhora velha e severa. — disse ele. — Feito por ela mesma, eu lembro. De qualquer maneira, ela não conseguiria ter se embelezado muito.

– Mas você não vê? — disse eu. — Está longe de ser um rosto humano. É o rosto de alguma bruxa, de algum demônio.

Ele olhou mais de perto.

– Sim; não é muito agradável, — disse ele. — Principalmente do lado da cama, hein? Eu posso imaginar tendo pesadelos se eu fosse dormir com isso perto da minha cama. Vou tirá-lo, se você quiser.

– Realmente, gostaria que você o tirasse. — disse eu.

Ele tocou a campainha e, com a ajuda de um serviçal, separamos o retrato e a carregamos para o patamar, colocando-a com o rosto na parede.

– Por Jove, a velha senhora é pesada. — disse John, esfregando a testa. — Eu me pergunto se ela tinha algo em mente.

O peso extraordinário do retrato também havia me impressionado. Eu estava prestes a responder quando vi minha própria mão. Havia sangue nela, em quantidade considerável, cobrindo toda a palma da mão.

– Eu me cortei de algum jeito. — disse eu.

John deu uma exclamação um pouco alarmada.

– Eu também me cortei. — disse ele.

Simultaneamente, o criado pegou seu lenço de pescoço e limpou a mão com ele. Vi que também havia sangue no lenço.

John e eu voltamos para o quarto da torre e lavamos o sangue; mas nem na mão dele nem na minha havia o menor traço de um arranhão ou corte. Pareceu-me que, ao averiguar, nós dois, por um tipo de consentimento tácito, não voltamos a atenção para isso novamente. Alguma coisa no meu caso me ocorrera vagamente, de tal maneira que eu não desejei pensar sobre aquilo. Era apenas uma conjectura, mas imaginei que eu sabia que a mesma coisa também havia lhe ocorrido.

O calor e a opressão do ar, pois a tempestade que esperávamos ainda não havia se cumprido, aumentaram muito após o jantar e, por um tempo, a maior parte dos que estavam na reunião, entre eles John Clinton e eu, ficou sentada fora, no caminho que delimitava o gramado onde havíamos tomado chá. A noite estava absolutamente escura e nenhum vislumbre de estrela ou raio de lua podia penetrar a mortalha de nuvens que alterava o céu. Pouco a pouco, nossa reunião diminuiu, as mulheres foram para a cama, os homens se dispersaram para a sala de fumantes ou de bilhar e, às onze horas, meu anfitrião e eu éramos os únicos dois a restarem. Durante toda a noite, pensei que ele tinha algo em mente e, assim que ficamos sozinhos, ele falou.

– O homem que nos ajudou com o retrato também tinha sangue em sua mão, você notou? — disse ele. — Perguntei-lhe agora mesmo se ele havia se cortado, e ele disse que supunha que sim, mas que não conseguia encontrar nenhuma marca disso. Agora, de onde veio esse sangue?

Por ter me forçado a não pensar sobre isso, eu conseguira não fazê-lo, e não queria, principalmente na hora de dormir, ser lembrado disso.

– Eu não sei, — disse eu. — e realmente não me importo, desde que o retrato da Sra. Stone não esteja ao lado da minha cama.

Ele levantou.

– Mas é estranho. — disse ele. — Haha! Agora você vai ver outra coisa estranha.

Um cachorro dele, um terrier irlandês de raça, saiu da casa enquanto conversávamos. A porta atrás de nós, no saguão, estava aberta e um retângulo brilhante de luz reluzia através do gramado até o portão de ferro que dava para a grama alta do lado de fora, onde ficava a nogueira. Vi que o cachorro estava com todas os pelos eriçados, arrepiado de raiva e medo; seus lábios estavam curvados para trás, como se estivesse pronto para saltar em algo, e estava rosnando para si mesmo. Ele não prestou a menor atenção a seu mestre ou a mim, mas caminhou firme e tenso pela grama até o portão de ferro. Ali ele ficou em pé por um momento, olhando através das barras e ainda rosnando. De repente, sua coragem pareceu abandoná-lo; deu um longo uivo e voltou apressado para a casa, estranhamente agachado.

– Ele faz isso meia dúzia de vezes por dia. — disse John. — Ele vê alguma coisa que odeia e de que tem medo.

Fui até o portão e olhei por cima dele. Alguma coisa estava se movendo na grama do lado de fora, e logo um som que eu não pude identificar instantaneamente veio aos meus ouvidos. Então me lembrei do que era: era o ronronar de um gato. Acendi um fósforo e vi o ronronador, um grande persa azul, dando voltas e voltas em um pequeno círculo do lado de fora do portão, pisando alto e em extaticamente, com a cauda levantada como uma bandeira. Seus olhos eram brilhantes e reluzentes, e de vez em quando baixava a cabeça e farejava a grama.

Eu ri.

– O fim desse mistério, receio. — disse eu. — Eis aqui um grande gato passando a noite em Walpurgis sozinho.

– Sim, aquele é Darius. — disse John. — Ele passa metade do dia e a noite toda lá. Mas esse não é o fim do mistério dos cães, pois Toby e ele são melhores amigos um do outro, mas o começo do mistério dos gatos. O que o gato está fazendo lá? E por que Darius está contente, enquanto Toby está aterrorizado?

Naquele momento, lembrei-me dos detalhes horríveis dos meus sonhos quando vi através do portão, exatamente onde o gato estava agora, a lápide branca com a sinistra inscrição. Mas antes que eu pudesse responder, a chuva começou, tão repentina e pesada como se uma torneira houvesse sido aberta, e simultaneamente o grande gato se espremeu entre as barras do portão e veio pulando pelo gramado em direção à casa, em busca de abrigo. Em seguida, sentou-se na entrada, olhando ansiosamente para a escuridão. Escarrou e golpeou John com a pata, quando ele o empurrou, a fim de fechar a porta.

De alguma forma, com o retrato de Julia Stone lá fora no corredor, o quarto da torre não me alarmava completamente e, quando fui para a cama, me sentindo muito sonolento e pesado, eu não tinha nada além de interesse pelo curioso incidente sobre nossa mãos sangrando e o comportamento do gato e do cachorro. A última coisa que olhei antes de apagar a luz foi o espaço quadrado e vazio ao lado da minha cama, onde estivera o retrato. Ali, o papel de parede tinha a sua tonalidade original de vermelho escuro: sobre o resto das paredes, ele havia enfraquecido. Então, apaguei minha vela e adormeci instantaneamente.

Meu despertar foi igualmente instantâneo e, em um disparo, me sentei na cama, com a impressão de que alguma luz brilhante lampejara em meu rosto, embora agora eu estivesse num breu completamente escuro. Eu sabia exatamente onde eu estava, no quarto que eu temia nos sonhos, mas nenhum horror que eu já senti enquanto dormia se aproximou do medo que agora invadia e gelava meu cérebro. Imediatamente após, um trovão estrondou logo acima da casa, mas a possibilidade de ter sido apenas o clarão de um relâmpago que me acordou não tranquilizou o meu coração galopante. Alguma coisa que eu conhecia estava no quarto comigo e, por instinto, estendi minha mão direita, que estava mais próxima da parede, para afastá-la. E minha mão tocou a borda de uma moldura pendurada perto de mim.

Pulei da cama, virando a mesinha que estava ao lado dela e ouvi meu relógio, vela e fósforos baterem no chão. Mas, no momento, não havia necessidade de luz, pois um clarão ofuscante saltou das nuvens e me mostrou que, junto à minha cama, pendia outra vez o retrato da Sra. Stone. E, em um instante, a sala ficou escura novamente. Mas, naquele clarão, eu vi outra coisa também, isto é, uma figura que se inclinava sobre a ponta da minha cama, me observando. Vestia algum tipo de roupa branca bem apertada, manchada e suja de mofo, e o rosto era o mesmo do retrato.

No alto, um trovão estrondou e rugiu, e quando cessou e a quietude mortal voltou a reinar, eu ouvi um ruído de movimento se aproximando de mim e, mais horrível ainda, senti um odor de decomposição e apodrecimento. E então, uma mão tocou o lado do meu pescoço, e, perto do meu ouvido, eu ouvi uma respiração rápida e ardente. No entanto, eu sabia que essa coisa, embora pudesse ser percebida pelo toque, pelo cheiro, pelos olhos e pelos ouvidos, não era mais desta terra, porém alguma coisa que havia saído do corpo e que tinha poder para se manifestar. Então uma voz, já familiar para mim, falou.

– Eu sabia que você viria para o quarto da torre. — disse. — Estou há muito tempo esperando por você. Finalmente você veio. Hoje à noite festejarei; em pouco tempo festejaremos juntos.

E a respiração acelerada chegou mais perto de mim; eu podia senti-la no meu pescoço.

Com isso, o terror, que penso ter me paralisado até o momento, deu lugar ao instinto selvagem de autopreservação. Eu bati loucamente com os dois braços, chutando no mesmo momento, e ouvi um guincho de animal, e algo macio caiu com um baque ao meu lado. Dei dois passos à frente, quase tropeçando no que quer que estivesse ali e, por mera sorte, encontrei a maçaneta da porta. No segundo depois, fugi para o patamar e bati a porta atrás de mim. Quase no mesmo momento, ouvi uma porta se abrir em algum lugar abaixo, e John Clinton, com uma vela na mão, veio subindo correndo as escadas.

– O que foi isso? — disse ele. — Eu durmo logo abaixo de você e ouvi um barulho como se… Deus do céu, há sangue no seu ombro.

Eu permaneci ali, então mais tarde ele contou os detalhes, balançando de um lado a outro, branco como um lençol, com a marca no meu ombro como se uma mão coberta de sangue tivesse sido colocada ali.

– Está lá. — disse eu, apontando. — Ela, você sabe. O retrato está lá, também, pendurado no local de onde o tiramos.

Com isso ele riu.

– Meu caro amigo, isso foi apenas um pesadelo. — disse ele.

Ele tomou o meu lugar e abriu a porta, eu permaneci ali, simplesmente inerte com o terror, incapaz de detê-lo, incapaz de me mover.

– Credo! Que cheiro horrível. — disse ele.

Então, houve silêncio; ele desaparecera da minha vista atrás da porta aberta. No momento seguinte, ele voltou de novo, branco igual a mim, e cerrou-a instantaneamente.

– Sim, o retrato está lá. — disse ele. — E há uma coisa no chão — uma coisa manchada com terra, igual à terra com a qual enterram as pessoas. Saia daqui, depressa, saia daqui.

Mal sei como desci as escadas. Um tremor horrível e náusea de espírito, e não da carne, tomou conta de mim, e, mais de uma vez, ele teve que colocar meus pés sobre os degraus, enquanto, de vez em quando, lançava olhares de terror e apreensão pelas escadas. Mas, com o tempo, chegamos ao provador, no andar de baixo, e lá contei para ele o que já descrevi até aqui.

A sequência pode ser diminuída; de fato, alguns de meus leitores talvez já tenham adivinhado o que era, se lembram do caso inexplicável do cemitério de West Fawley, há oito anos, em que foi feita três vezes uma tentativa de enterrar o corpo de uma certa mulher que havia cometido suicídio. Em cada ocasião, o caixão foi encontrado no curso de alguns dias novamente sobressaindo do chão. Após a terceira tentativa, para que não se falasse sobre o assunto, o corpo foi enterrado em outro lugar em solo não consagrado. Ele fora enterrado justamente do lado de fora do portão de ferro do jardim pertencente à casa onde essa mulher morara. Ela cometera suicídio em um quarto no topo da torre daquela casa. Seu nome era Julia Stone.

Posteriormente, o corpo foi desenterrado em segredo outra vez, e encontraram o caixão cheio de sangue.

[1] “By Jove”, na expressão original. Pode ser traduzido como “Por Júpiter!”, deus romano correspondente a Zeus na mitologia grega. Na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, era comum usar novas formas para substituir a palavra “Deus”, a fim de que seu nome não fosse utilizado em vão.

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Paulo Moreira
Escritos Fantásticos

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.