Dois templos no meio de uma floresta.
Ruínas maias em Tikal.

Os que os atlantes nos ensinariam? Resenha de A Cidade Perdida de Jeronymo Monteiro

Paulo Moreira
Escritos Fantásticos

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Trecho

Salvio arregalou os olhos. — Céu! O símbolo, Jeremias! O símbolo!

— Sim! — consegui exclamar, fascinado também. — A “pedra”… O grande círculo sobre o triângulo… o lótus de mil pétalas… as runas… o sol e a lua!…

E ali ficamos os três, embasbacados, olhando o miraculoso símbolo que nos trouxera desde São Paulo, agora ali perfeitamente reproduzido em gravação na rocha, ao lado da monumental entrada. Era estonteante e dava vertigens. Quantos milhares de quilômetros — de intransponíveis quilômetros! — separavam aqueles dois símbolos! Um, em São Paulo, dentro da velha arca vinda das Guianas ou da Venezuela, e o outro aqui, no centro do sertão, quase na fronteira entre o Pará e o Amazonas, junto a uma porta que dava para o mistério! Tão separados, e, no entanto, tão unidos!

O atlante olhava para nós, sorridente. — Conhecem? — perguntou ele.

— Conhecemos — respondeu Salvio. — Isso é que nos trouxe até aqui. Foi a primeira revelação. Um pedaço de grade de ferro que o tio de Jeremias trouxe das Guianas, ou da Venezuela, não sabemos.

— Nem de uma, nem de outra. Do Peru. Do grande Templo do Sol no Peru. A grade do altar dos sacrifícios. Há muitos anos ela foi destruída e despedaçada.

Era um farrapo de história que fazia reviver grandes dramas sombrios.

Resenha

Civilizações desaparecidas, templos perdidos na selva, aventureiros em perigo enquanto tentam desvendar mistérios antigos, isso tudo não renderia um ótimo filme do Indiana Jones?

A Cidade Perdida é um clássico de Jeronymo Monteiro publicado em 1948. O livro se passa um pouco antes, em plena Segunda Guerra Mundial, quando o nazismo está avançando na Europa, o Império Japonês se estende pelo Pacífico, e o Brasil envia soldados para lutar na Itália contra o fascismo.

Nesse cenário, entramos na pele de Jeremias, que recebe uma grade das Guianas com estranhos símbolos. Salvio, seu amigo estudioso, ou “conspiracionista”, consegue decifrar os símbolos e fica encantado com o conteúdo. Trata-se de um mapa que mostra a localização de um possível “Templo do Sol” no interior do Brasil, que seria uma prova de que a humanidade e a civilização não surgiram na África e no Oriente Médio como nos fizeram acreditar, mas na América do Sul pelos enigmáticos atlantes.

Salvio convence Jeremias a deixarem a cidade de São Paulo em busca do templo e partem para o interior do Brasil. Até aí, quase tudo é explicado com longos diálogos, e embora Salvio cite vários autores e use da arqueologia real para expor sua crença, é realmente difícil acreditar em sua teoria. A história também segue um ritmo lento, até se unirem a Quincas, um guia conhecedor da região e dos povos indígenas que os levará ao Xingu, quando a aventura realmente começa.

Gostei como os povos indígenas são tratados como povos mesmo, e não estereotipados como “inimigos”. Alguns ajudarão os viajantes em sua empreitada, outros serão uma ameaça por se sentirem ameaçados. A própria história não segue o estilo de exploração como estamos tão acostumados a ver nos livros e no cinema. Nada de tesouros para serem roubados, ou imortalidade aos protagonistas como em Horizonte Perdido (1933) de James Hilton. Em A Cidade Perdida os personagens só querem revelar a verdade, serem livres para contar a história. Eles não pretendem pegar o que é de fora, mas apenas conhecer o que está dentro, o que os rodeia.

Mais um ponto interessante do livro é sua filosofia. Embora se passe durante a Segunda Guerra Mundial, os valores patrióticos dos personagens são questionados, a sua vontade de revelar um novo Brasil é confrontada como puro egoísmo, nos fazendo refletir sobre a banalidade de nossos desejos. Não importa se é nazismo, fascismo, e até mesmo democracia. No fim, são sempre homens matando homens, e lucrando com isso.

“A Cobiça! Ela perdeu os homens. O desejo desenfreado de lucros, cada vez maiores, cega os homens. Vocês se lançaram numa corrida desesperada para a conquista do luxo, do conforto, dos bens materiais, da riqueza, esquecidos de que a carne não vive, quem vive é o espírito. Jamais houve no seu mundo tão descontrolado desejo de dominar e gozar, como agora. E talvez, também, em época alguma, houvesse tantos milhões de criaturas sofrendo fome, miséria e frio. A guerra que vocês fazem não é como a guerra “normal”, que atira o tigre contra o leão, o lobo contra o cachorro. É, ao contrário, uma ação cuidadosamente preparada pela minoria dominante, que com ela auferirá grandes lucros e vantagens. As minorias alimentam a guerra com a carne, o sangue e os sonhos daqueles mesmos a quem exploram, prendem e atormentam durante a paz. Mas não será isto bastante claro? É durante as guerras que se acumulam grandes fortunas, mas as grandes fortunas nunca são para aqueles que se arrastam nas trincheiras, que respiram os gases deletérios e são atacados de disenteria e se abrigam, para atirar, atrás de montes de cadáveres apodrecidos. Esses, quando conseguem voltar, andarão, depois, à procura de emprego, pobres enjeitados da vida, inutilizados e tontos. Reparem que as nações mais imperialistas e cínicas procuram dar aos seus soldados de todas as categorias, na frente de batalha, o máximo conforto, o melhor alimento… É preciso iludi-los, alimentá-los e conservá-los, porque eles são “máquinas de fazer dinheiro”…”

Sobre o autor

O escritor Jeronymo Barbosa Monteiro (1908–1970) é um marco fundamental da literatura infantil e juvenil do Brasil. Foi um dos precursores do rádio-teatro, criador do primeiro detetive brasileiro e da primeira série policial. Mas, acima de tudo, é sempre lembrado como “Pai da Ficção Científica Brasileira”.

“Creio que o homem, quanto mais se preocupa com o futuro mais está subindo na escala da perfeição. (…) o homem vai se aperfeiçoando no seu juízo geral sobre o mundo, aprendendo a prever, ele acabará por profetizar com segurança.” (Jeronymo Monteiro, FONTE)

O que aprendi lendo como escritor

Como escritor, eu não vejo outra maneira de explicar o ritmo do livro além de dividi-lo em cinco partes:

A primeira seria uma introdução. É curta e sem muitos detalhes, vai do início da história até se encontrarem com Quincas, com longos diálogos expositivos.

A segunda, com mais descrições de cenários, trata da viagem rumo ao Araguaia, é uma aventura mais real, cujos conflitos se resumem aos povos indígenas, à sobrevivência, e a encontrarem o caminho certo.

Na terceira, a fantasia começa a se mesclar com a realidade da viagem, com acontecimentos e cenários aparentemente sobrenaturais perturbando o conhecimento dos personagens e do leitor. Na minha opinião, é a melhor parte do livro (eu amo fantasia).

Na quarta, os personagens são expostos a uma nova verdade, uma verdade devastadora. Essa nova verdade expande ainda mais suas crenças. O ritmo aqui é mais lento, volta-se aos diálogos longos da primeira parte, com conteúdo mais filosófico. Os conflitos são mais subjetivos. É o ponto forte do livro, a segunda melhor parte, quando percebemos a intenção do autor e a importância da viagem.

A quinta e última parte é apenas uma conclusão em relação aos personagens que acompanhamos, o que eles fazem depois de terem acesso à nova verdade. É a parte mais curta, eu achei apressada, e por isso me decepcionei um pouco.

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Paulo Moreira
Escritos Fantásticos

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.