A diplomacia imperial, cujo último ato foi a primeira conferência internacional americana — realizada a convite do Secretário de Estado James Blaine para propor uma união aduaneira hemisférica –, tomou nova direção na proclamação da República, pouco depois de seu início em Washington. Uma das consequências foi o estabelecimento frustrado de uma primeira “relação especial”, materializada pouco depois num acordo comercial que privilegiava os americanos, em detrimento dos argentinos, mas que seria anulada em pouco tempo pelas novas orientações da política comercial americana. A relação comercial pendular do Brasil com seus dois grandes vizinhos hemisféricos teria seus altos e baixos durante o longo século que vai do início da República até a contemporaneidade, um pouco por deficiências de visão dos diplomatas, mas bem mais pelos instintos protecionistas dos capitalistas nacionais em cada um dos três países.
A diplomacia republicana começa estrondosamente com um grande fracasso: o tratado de Montevidéu, pelo qual o inepto Quintino Bocaiuva entregou praticamente a metade de Santa Catarina aos argentinos; felizmente, ele foi prontamente recusado pelo Congresso. Como a época era a dos tratados de arbitragem, um novo processo teve início, com a participação como árbitro do mesmo presidente americano que denunciou o tratado comercial. Por artes do destino, devido à morte do primeiro árbitro do Brasil, o Barão do Rio Branco foi chamado a defender a causa brasileira, começando aí uma série de sucessos diplomáticos que o levaria à direção da chancelaria dez anos depois. Foi um período primoroso da diplomacia brasileira, com alguns pequenos desajustes.
Mas até lá, a “diplomacia de ferro” do Marechal Floriano Peixoto, a revolta da Armada, a guerra civil gaúcha, revoltas no interior, entre elas a humilhação do Exército pela “Troia de Barro” de Canudos, assim como a falência financeira do país, levariam o Brasil ao seu primeiro isolamento diplomático e a uma diminuição sensível de seu prestígio externo, a ponto de recusar participação na primeira Conferência da Paz da Haia, convidada pelo czar russo em 1899. Diplomatas e historiadores reconhecem que se tratou de um tremendo erro, o fracasso do primeiro exercício de diplomacia multilateral do Brasil, o que, felizmente, não se repetiria durante mais de um século, até o infeliz advento do governo deliberadamente antimultilateralista, ridiculamente antiglobalista.
O Barão correspondeu, inequivocamente, a um ponto alto da política externa do Brasil, mais até que da diplomacia, por razões muito simples: ele colocou a serviço de quatro presidentes sua longa experiência adquirida em mais de duas décadas de vivência na Europa, no ponto também mais alto do colonialismo europeu, e soube bem manejar entre a Cila do velho imperialismo europeu e a Caríbdis da nova hegemonia americana, equilibrando as posturas algo antagônicas de um Nabuco claramente pró-americano e de um Oliveira Lima decididamente crítico do novo imperialismo saxão. Sua decisão de encerrar a era das arbitragens na resolução dos problemas de fronteiras, e de aderir a negociações diretas com os vizinhos, foi a mais adequada ao encerramento das questões lindeiras ainda abertas, depois dos tratados inconclusos pós-Madri, Ildefonso e El Pardo.
No plano da diplomacia, porém, Rio Branco demonstrou um caráter arbitrário, recusando-se a fazer concursos abertos para admitir candidatos à carreira, confiando unicamente na sua opinião, que era misógina, racista e impressionista. Ele rompeu com uma tradição que se mantinha invariável desde 1831: o fato de se ordenar a confecção de relatórios anuais das atividades, acordos e iniciativas do ministério, que passou a ser identificado com o Palácio Itamaraty desde a sua época. Seu carisma foi construído à base de alguma propaganda em causa própria, uma hábil manipulação da imprensa, mas também justificada pela sua habilidade em resolver grandes problemas sem jamais retornar às práticas imperialistas da monarquia, quando guerras foram provocadas por intervenções deliberadas nos assuntos do Uruguai.
O ministério passou a ser conhecido como a “Casa de Rio Branco”, numa espécie de culto à personalidade poucas vezes repetido no Brasil. Em todo caso, o Barão figurou em todos os oito padrões monetários do Brasil desde o mil-réis até o real, o que, se é uma distinção absolutamente inédita nos anais da história monetária mundial, também é uma confissão de fracasso total na longa trajetória inflacionária do Brasil, atravessando três gerações; o Barão, aliás, continua a ser representado na moedinha de 50 centavos.
As relações com os vizinhos do Rio da Prata sempre foram complicadas, desde Sacramento, passando pela guerra da Cisplatina, a derrocada de Rosas e as intervenções no Uruguai, até as tensões com a Argentina, finalmente constituída em Estado nacional, já no pós-guerra do Paraguai. Rio Branco soube administrar bastante bem a competição naval com os vizinhos economicamente e militarmente mais poderosos, renunciando a entreveros inúteis na esfera geopolítica.
Mas ele avaliou mal uma possível complementaridade econômica, que poderia ter resultado num processo de integração bem mais precoce do que o Mercosul dos anos 1990. O Barão se mostrou favorável a um acordo comercial com os Estados Unidos, que era discriminatório em relação à Argentina — numa época em que a cláusula de NMF raramente era incondicional e ilimitada como veio a ser sob o Gatt –, e se recusava a considerar condições vantajosas para a importação da oferta agrícola e industrial do país vizinho, a pretexto que a Argentina não adquiria o café brasileiro como o faziam os EUA desde meados do século XIX. Assim, a despeito de ter começado a montar um pacto ABC, para evitar uma corrida armamentista entre os três maiores países do Cone Sul, o Barão não conseguiu construir uma relação construtiva com nosso mais importante vizinho, o que teria evitado toda a paranoia militar que se estendeu por mais 80 anos.
Oswaldo Aranha — o maior chanceler brasileiro no século XX, depois do próprio Barão — tentou, é verdade, construir essa relação íntima com os imprevisíveis vizinhos; ele assinou, em novembro de 1941, um tratado de união aduaneira com a Argentina –aberto a outros vizinhos regionais, isto é, um pré-Mercosul –, mas sua entrada em vigor foi inviabilizada pelo ataque japonês a Pearl Harbor, em dezembro seguinte, e pelo fato de que a Argentina adotou uma postura “neutralista” (de fato simpática às potências do Eixo), ao passo que o Brasil aliou-se resolutamente aos americanos. Oswaldo Aranha, um político dotado de refinada visão diplomática, exibia uma concepção geopolítica bem superior àquela mantida pelos diplomatas profissionais.
A trajetória do Brasil, provavelmente teria sido bem diferente se ele, em algum momento dos anos 1930–50, tivesse sido alçado, pela via democrática, à suprema condução do país. Nenhum chanceler, antes ou depois dele — com a exceção de FHC, reconhecidamente um “presidente acidental” — esteve tão próximo do poder quanto Aranha, infelizmente submisso a Vargas. Vale ler seu memorando a Vargas, do final de 1942, para o encontro que mantiveram Roosevelt e Vargas em Natal, quando da rápida passagem do presidente americano pelo Brasil, de volta da conferência em Casablanca, em janeiro de 1943: tratava-se não só de um programa de aliança entre os dois países, durante a guerra, mas de um cuidadoso e bem pensado planejamento econômico para o Brasil do pós-guerra, um programa de capacitação industrial e militar infelizmente desprezado por Vargas. Um ano depois ele foi novamente sabotado pelo presidente, que o impediu de se encontrar com Roosevelt para discutir o pós-guerra; saiu logo depois.
A despeito de todas essas qualidades, Aranha, um gaúcho machista, opôs-se ao ingresso de mulheres na carreira diplomática, a despeito de algumas (poucas) terem sido admitidas na Velha República. Depois, o decreto de criação do Instituto Rio Branco, em 1945, reservou o ingresso na carreira exclusivamente para candidatos masculinos, o que só foi derrubado pelo STF em meados dos anos 1950. Ainda assim, muitos diplomatas continuaram se opondo, enquanto puderam, a essa abertura, e discriminando abertamente contra as mulheres, um comportamento execrável no caso de burocratas supostamente esclarecidos e avançados.
Continua na terceira parte:
3. A difícil construção de uma diplomacia autônoma, e consciente de sê-lo
Sobre o autor
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor universitário.
Como citar este artigo
Almeida, Paulo Roberto de. “O outro lado da glória: Os fracassos da primeira diplomacia republicana”. Revista Mundorama, Volume 14, 2020, https://medium.com/mundorama/21/10/2020-3b12a96183c6