A ascensão da nova direita argentina

Editoria Mundorama
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6 min readJul 11, 2024

Vitor Stuart Gabriel de Pieri e Fabiana de Oliveira

Fonte: Casa Rosada, 2024. Javier Milei, Presidente da Nação Argentina.

Resumo: Este artigo busca refletir sobre os elementos que explicam o crescimento do partido-movimento La Libertad Avanza, assim como a maneira com que Milei articulou, ao longo de sua campanha, um conjunto de identidades e imaginários políticos que exitosamente se configurou na nova direita do país.

De maneira tardia e no mesmo ano em que comemorava o 40º aniversário de sua redemocratização, a Argentina passou a figurar entre os países que optaram por propostas eleitorais que englobam o que a literatura especializada chama de nova direita global (Natanson, 2018), extrema-direita 2.0 (Forti, 2021), conservadorismo radicalizado (Strobl, 2022) ou de populismo autoritário (Hall, 1990).

Quando comparada com muitos de seus vizinhos latino-americanos, podemos dizer que a Argentina foi capaz de construir um sistema partidário bastante sólido e centrado em duas formações cujas origens remontam ao início do século XX: o Partido Justicialista (peronista) e a Unión Cívica Radical (UCR). Isto não significa, no entanto, que não tenham existido no passado esforços no sentido de reivindicar e representar outras correntes políticas, a exemplo do Unión del Centro Democrático (UCEDE), agrupação que buscava, em 1980, reivindicar o nacional-liberalismo de Juan Bautista Alberdi ao mesmo tempo em que defendiam preceitos de correntes como a da Economia Austríaca ou da Escola de Chicago.

Embora as ideias da UCEDE tenham sido fortemente ecoadas na Argentina dos anos 1990, nunca, no país, houve condições políticas e sociais adequadas para que ocorresse a ascensão de uma direita libertária, conservadora e antipolítica (Fernández, 2023). Ao menos até que, no contexto das eleições legislativas de 2021, Javier Milei dá forma a um novo espaço político, o partido La Libertad Avanza, baseado em um discurso de forte crítica à política profissional e ao Estado social.

As crises econômica, política e social e o consequente agravamento destas por razão da crise sanitária de Covid-19 levaram a que emergissem na Argentina uma série de novos atores políticos que, a partir de diferentes estratégias, buscaram articular as demandas de uma população cada vez mais descontente com a política nacional (Seco, 2021). Entre estes atores, destacavam-se figuras como Myriam Bregman, ativista de movimentos em defesa dos direitos humanos e militante do Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS), Nicolás del Caño, ex-dirigente estudantil e também pertencente ao PTS, e José Luis Espert, defensor do liberalismo econômico e membro do espaço político Avanza Libertad.

Entre estes novos atores, nenhum ganhou tanta visibilidade como Javier Milei. Desde 2017, Milei havia se convertido em uma figura midiática ao apresentar-se como um excêntrico comentarista de temas econômicos em programas de televisão e rádio. Ao mesmo tempo em que, vestido em terno e gravata, oferecia explicações técnicas sobre as reformas liberais preconizadas por autores como Murray Rothbard ou tecia duras críticas aos governos de Cristina Kirchner, de Maurício Macri e de Alberto Fernández, em outros se apresentava vestido com jaquetas de couro enquanto recordava suas experiências como professor de sexo tântrico, ex-goleiro de time de futebol ou ex-vocalista de bandas de rock (Martins, 2021). Histriônico, teatral e camaleônico, Milei rapidamente se converteu em uma figura espetacularizada e até mesmo burlesca (idem).

Do ponto de vista discursivo, Milei foi, ao longo de sua trajetória política, buscando construir uma ressignificação da ideia de casta política, utilizando o conceito como uma clara forma de estabelecer um nós, o povo ou a gente, e um outro antagônico, representado pela classe política (Seco, 2021). Neste universo discurso, a “casta”, outrora também referida por Milei como a “oligarquia” ou simplesmente como os “políticos profissionais”, é integrada por políticos de todos os partidos e que, desde seu lugar de privilégios, roubam, empobrecem e exploram o povo. Este último, por sua vez, encontra-se oprimido pelos super-poderes de que goza o Estado (idem). Nesta visão, até mesmo os salários pagos aos políticos seria uma forma de roubo, porque teria sido “tirado à força” do povo (Arandam, Neil & Santín, 2022), os honestos que, a partir do setor privado, estão criando riqueza (Fernández, 2023).

Milei passou, ainda, a descrever o que ele considera ser o “modelo da casta”. Este seria, basicamente, um programa através do qual o Estado entende que “onde há uma necessidade, nasce um direito”, frase atribuída a Eva Perón e que se converteu em um lema de justiça social. Para Milei, no entanto, este modelo seria insustentável, já que gera uma expansão do gasto público e, para fazer frente ao crescente déficit, o país deveria escolher entre três opções igualmente deletérias: aumentando os impostos, adquirindo dívida ou através da emissão monetária. Foi assim que, segundo o economista, a Argentina terminou submergindo em um cenário de descontrole, porque “se genera un modelo que asfixia el sector privado, distorsiona precios y la única consecuencia es que los argentinos somos cada vez más pobres, mientras que la casta es cada vez más rica (Milei apud Seco, 2021, p.6)”.

Segundo Svampa (2023), a ascensão de Milei e de seu liberalismo radical é o resultado da emergência de um novo ator político que, embora presente há décadas na Argentina, foi multiplicado em número e em sofrimentos: o trabalhador precário, que sobrevive em meio a enormes graus de sobre-exploração econômica e que, desde o ponto de vista político, não apenas não sente que deve qualquer coisa ao Estado como ademais rejeita intensamente a sua classe política. São os que, no momento em que se comemora quatro décadas de normalização da vida democrática, sentem que a democracia lhes falhou na promessa que ficou encarnada na famosa frase de Raúl Alfonsín: “com a democracia não apenas se vota, mas também se come, se cura e se educa”.

Mais do que isso, a ascensão de Milei representa também a vitória das tendências mais autoritárias e revisionistas da política argentina, que se caracteriza pela relativização do terror de Estado promovido pelo regime militar instaurado entre 1976 e 1983 e pela minimização dos crimes promovidos pela cúpula militar neste período. A aliança de Milei com estes setores fica evidenciada principalmente pela composição de sua chapa eleitoral, que tinha como candidata a vice a advogada Victoria Villarruel. Villarruel pertence a uma família de militares e é fundadora do Centro de Estudios Legales sobre el Terrorismo y suas Víctimas (CELTYV), instituição que busca equiparar as vítimas de terrorismo de Estado com as vítimas de grupos armados que surgiram na Argentina como forma de resistência à ditadura militar.

A vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais de 2023 representa uma inesperada reconfiguração do espaço político-eleitoral argentino, pois se trata da vitória de uma força política sem estrutura territorial, sem quadros técnicos e políticos sólidos e sem uma base no poder legislativo capaz de lhe garantir condições de governabilidade. Ademais, ela foi inesperada por representar o fim da chamada grieta, que havia caracterizado a política argentina desde a eleição de Néstor Kirchner, em 2003, quando o país passou a se dividir entre kirchneristas e antikirchneristas.

Frente a isso, fica a questão: Até quando a retirada de subsídios sociais, as privatizações e o enxugamento do Estado vão durar em uma sociedade argentina cada dia mais empobrecida?

Referências

ARANDAM Itatí; NEIL, María A.; SANTÍN, María V. Un avance voraz: el veloz posicionamiento de Javier Milei. Política y Comunicación, n.01, v.10, 2022.

FERNÁNDEZ, Claudio. ¡Viva la antipolítica, carajo!. El discurso político de Javier Milei. Monografia de Licenciatura em Ciência Política, Universidad Nacional de San Martín, Buenos Aires, 2023.

FORTI, Steven. Extrema derecha 2.0: qué es y cómo combatirla. Madrid: Siglo XXI Editores, 2021.

HALL, Stuart. The hard road to renewal: Thatcherism and the crisis of the left. London: Verso, 1990.

MARTINS, María S. Libertarios, redes y campaña electoral: el caso de Javier Milei en Instagram. Actas de Periodismo y Comunicación, v.07, n.02, nov. 2021.

NATANSON, José. ¿Por qué? La rápida agonía de la Argentina kirchnerista y la brutal eficacia de una nueva derecha. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2018.

SECO, Juan B. La casta, el point the caption primordial en la (re)significación del ellos de Javier Milei: Articulación, antagonismos y trazado de fronteras, en el debate electoral de Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Actas de Periodismo y Comunicación, v.07, n.02, nov. 2021.

STROBL, Natascha. La nueva derecha: un análisis del conservadurismo radicalizado. Madrid: Katz Editores, 2022.

SVAMPA, Maristella. Milei y la crisis argentina. Nueva Sociedad, ago.2023. Disponível em: https://nuso.org/articulo/milei-y-la-crisis-argentina/. Acesso em 20 fev.2024.

Sobre os Autores

Vitor Stuart Gabriel de Pieri: Professor Associado do Instituto de Geografia da UERJ.

Fabiana de Oliveira: Pós-doutoranda pelo PPGEO/UERJ.

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