A colaboração internacional em ciência oceânica envolvendo pesquisadores vinculados a instituições catarinenses: perfil e questões para as políticas públicas estaduais e nacionais
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Iara Costa Leite, Carolina Veras Micheletti e Taynara da Mata Moraes
Resumo: O artigo demonstra que, assim como outras localidades do Sul Global, o estado de Santa Catarina está cada vez conectado às redes globais de pesquisa oceânica. Porém, o impacto dessas redes depende de conexões entre o conhecimento global e a resolução de problemas locais.
Introdução
Em um momento em que o governo vem demonstrando interesse crescente pela produção de dados acerca da inserção internacional da ciência brasileira (CGEE, 2021b), incluindo as redes científicas internacionais (Schleicher et al, 2022), e ao mesmo tempo em situar o conhecimento sobre inovação em âmbito subnacional (CGEE, 2021a), em consonância com o perfil e as demandas de cada estado, torna-se necessário entender como a internacionalização da ciência e a promoção do desenvolvimento regional podem se entrelaçar na prática. Nesse sentido, este artigo busca resumir parte das descobertas de um mapeamento das redes internacionais em pesquisa oceânica envolvendo instituições catarinenses.
A promoção da ciência oceânica figura entre as prioridades atuais da comunidade internacional. Cientistas e suas redes são vistos como cruciais para lidar com os impactos ambientais e sociais da competição econômica e geopolítica pelos oceanos (Marques, 2020; Soares, 2020). A Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (2021–2030) vem lançando reiterados apelos em prol de coleta, padronização e compartilhamento de dados para lidar com o fato de que os oceanos, apesar de cobrirem dois terços da Terra e serem essenciais para regulação climática, conservação da biodiversidade e subsistência humana, ainda são pouco conhecidos. Embora o aumento das publicações científicas demonstre a mobilização em torno do tema, o financiamento da pesquisa oceânica ainda é inadequado, e o acesso ao conhecimento está distribuído de forma desigual mundialmente (UNESCO-IOC, 2020) — uma das razões para a Década do Oceano promover redes envolvendo pesquisadores do Sul Global. Até que ponto essa inclusão está acontecendo e até que ponto é suficiente para lidar com as desigualdades na ciência oceânica e em suas aplicações?
Para refletir sobre essas questões a pesquisa reúne evidências sobre redes científicas internacionais envolvendo pesquisadores vinculados a instituições de Santa Catarina. O estado é conhecido por diversas atividades ligadas à economia oceânica, como aquelas relacionadas a portos, turismo e aquicultura (FIESC, 2013; SEBRAE/SC, 2018), por figurar entre os estados brasileiros com maior quantidade de empregos formais nesse setor (FIEC, 2017) e também por abrigar polos tecnológicos. Cumpre também mencionar sua localização no Atlântico Sul, um dos espaços marítimos menos conhecidos no mundo (Hatje et al, 2021), e o fato de sediar pesquisas de referência em diversas áreas relacionadas ao oceano, incluindo projetos internacionais de grande envergadura, como o Mission Atlantic, financiado pela União Europeia (UFSC, 2022), e iniciativas de cooperação com o Canadá, nos anos 1990, que contribuíram para o estado se tornar referência nacional em maricultura (Lins, 2016).
A pesquisa empírica iniciou-se com mapeamento de copublicações internacionais, cadastradas na Web of Science (WoS), envolvendo autores vinculados a instituições catarinenses. Para a sistematização dos 486 artigos selecionados utilizaram-se algoritmos de acesso livre da WoS, o VOSviewer e trabalho manual. Se o trabalho manual foi necessário, por um lado, por restrições financeiras (dado o alto valor de acesso a plataformas que realizam sistematização automática mais detalhada), por outro lado revelou-se positivo por ter possibilitado, por exemplo, ajustar resultados produzidos automaticamente por algoritmos da WoS, como aqueles referentes ao financiamento declarado nos artigos (havendo casos, por exemplo, em que agências declaradas foram omitidas pelo algoritmo) e à múltipla contagem da filiação de autores vinculados a instituições catarinenses, mantendo-se apenas esta filiação.
Análise dos dados
Há consenso, na literatura das redes científicas internacionais, sobre sua proliferação recente em diversas áreas (ver, por exemplo, Wagner, Park e Leydesdorff, 2015). Levantamentos específicos sobre ciência oceânica apontam tendência similar (UNESCO-IOC, 2020). Os dados sobre a ciência oceânica internacional envolvendo pesquisadores baseados em Santa Catarina (Gráfico 1) convergem com tais achados, apontando para aumento, ainda que irregular, das copublicações internacionais.
Gráfico 1: Número de artigos em copublicação internacional em ciência oceânica envolvendo pesquisadores baseados em Santa Catarina
Nota: Para a extração dos dados bibliométricos na WoS não foi utilizado filtro temporal. O ano de 2022 inclui copublicações registradas até 03/08/2022, quando os dados foram extraídos.
A crescente participação dos países em desenvolvimento nas redes científicas internacionais (Wagner, Park e Leydersdorff, 2015) também se confirma para o caso das redes internacionais em ciências oceânicas integradas por pesquisadores baseados em Santa Catarina. Pelos menos duas questões adicionais se colocam em relação a essa participação. Em primeiro lugar, muito vem sendo publicado sobre as desigualdades na ciência oceânica internacional, apontando-se a necessidade de acesso dos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, a recursos dos países desenvolvidos (Polejack e Barros-Platiau, 2020; Turra, de Pinho e Andrade, 2021). Será que isso vem ocorrendo no caso da ciência oceânica catarinense? Buscando respostas preliminares a essa pergunta, foram verificadas quais agências figuram como financiadoras no material analisado (Gráfico 2), desagregando-se os dados para países que encabeçam o ranking de copublicação em ciência oceânica com Santa Catarina, respectivamente, EUA, Espanha, Austrália, Portugal, França e Reino Unido (Gráfico 3). Nota-se a prevalência de instituições públicas financiadoras da ciência internacional, confirmando achados de pesquisas mais amplas (Wagner, 2008; Wang et al., 2012). Porém, constatou-se ampla liderança do financiamento declarado de instituições públicas brasileiras, à exceção das parcerias envolvendo coautores baseados em Portugal.
Gráfico 2: Agências financiadoras mais frequentes declaradas nos artigos em copublicação internacional em ciência oceânica envolvendo pesquisadores baseados em Santa Catarina
Nota: Para chegar a esses dados foi usado o algoritmo da WoS de financiamento dos artigos, ajustando-os para incluir apenas financiamento direto e agências declaradas nos artigos que não foram capturados pelo algoritmo. Cada agência declarada, em cada artigo, foi contabilizada uma vez, havendo casos de artigos que registram mais de uma agência. Procedeu-se dessa forma porque, em geral, o valor do financiamento não é informado nos artigos, em vista de resultarem de projetos de pesquisa dos quais o artigo identificado é apenas um produto.
Gráfico 3: Agências financiadoras mais frequentes declaradas nos artigos em copublicação internacional em ciência oceânica envolvendo pesquisadores baseados em Santa Catarina e pesquisadores dos países que lideram o ranking de copublicação
Em segundo lugar, a literatura aponta que a participação do Sul Global nas redes científicas internacionais pode contribuir para o desenvolvimento se estiver ancorada na solução de problemas locais (Barnard, Cowan e Müller, 2012; Wagner, 2008). Embora, em última instância, a verificação dessa conexão dependa de estudos qualitativos que permitam mapear, por exemplo, a relação dos pesquisadores globais com pesquisadores locais que estejam, por sua vez, conectados a organizações da sociedade civil, gestores públicos e/ou empresas, alguns dados estatísticos podem contribuir para informar políticas de internacionalização da ciência voltadas para a promoção do desenvolvimento regional.
Um primeiro dado levantado diz respeito às instituições catarinenses mais frequentes nas redes de colaboração científica internacional. Conforme pode ser verificado na tabela abaixo, a porcentagem de autores pertencentes a instituições que atuam diretamente em atividades relacionadas ao desenvolvimento regional é bastante baixa.
Tabela 1: Ranking das instituições catarinenses envolvidas nas redes internacionais de ciência oceânica
Nota: Há artigos com mais de uma instituição catarinense envolvida, tendo-se contatilizado cada uma delas separadamente.
Um segundo bloco de dados levantados diz respeito às áreas dos artigos. Aqui, um primeiro indicador mobilizado, que pode ser acessado livremente na WoS, diz respeito às áreas de origem dos autores (Figura 1). É possível notar a diversidade de áreas, refletindo a multidisciplinaridade característica das ciências oceânicas (UNESCO-IOC, 2020). Constata-se, porém, a presença inexpressiva de autores das Ciências Sociais, apesar de sua reconhecida relevância para propor soluções adequadas aos desafios socioambientais relacionados ao oceano (Van Putten et al., 2021), embora um mapeamento mais fidedigno de sua participação requeira acesso a outras bases. Já um segundo indicador, construído a partir da classificação dos artigos por atividade oceânica (Gráfico 4), mostra, por um lado, que setores importantes para a economia azul catarinense, como turismo e atividades portuárias, estão pouco presentes nas redes. Por outro lado, a inquestionável prevalência de estudos relacionados ao meio-ambiente é relevante em vista dos múltiplos desafios enfrentados pelo estado nessa matéria (Andrade e Scherer, 2014).
Figura 1: Áreas mais frequentes de origem dos autores dos artigos em copublicação internacional em ciência oceânica envolvendo pesquisadores baseados em Santa Catarina (classificação WoS)
Gráfico 4: Classificação dos artigos por atividade oceânica
Nota: A classificação foi realizada a partir da leitura dos resumos dos artigos, sendo que um mesmo artigo pode ter sido classificado em mais de uma área. As áreas, por seu turno, foram definidas a partir de ampla revisão da literatura que se propõe a classificar atividades oceânicas, atentando-se ainda àquelas que podem ter relação com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Por fim, buscou-se verificar se existe correlação entre o lugar ocupado pelos autores com vínculo estatutário junto à UFSC, instituição que lidera, de longe, as redes internacionais da pesquisa oceânica catarinense, e o número de depósitos de patentes junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) ou de participação na coordenação de projetos de extensão. A literatura indica que pesquisadores globais disporiam de menos tempo para se envolverem em redes locais (Barnard, Cowan e Müller, 2012), mas não foi possível identificar correlação, havendo baixo número de patentes ou coordenação de projetos de extensão tanto nos casos de alta quanto de baixa participação em redes internacionais. Isso pode, a princípio, indicar barreiras que podem vir ser superadas com mudanças recentes na estrutura de incentivos da carreira universitária no Brasil decorrentes da curricularização da extensão e da possibilidade de pesquisadores acessarem recursos semelhantes aos tradicionalmente previstos para Bolsas de Produtividade em Pesquisa por meio de Bolsas de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora.
Conclusão
Apesar de os países em desenvolvimento estarem cada vez mais conectados às redes científicas globais, inclusive no caso da pesquisa oceânica, a possibilidade de tal participação se reverter em avanços para o desenvolvimento depende da construção de conexões entre o conhecimento global e a resolução de problemas locais. No caso de Santa Catarina, foi possível verificar amplo potencial de conexão principalmente na área ambiental, sendo que as mudanças recentes da carreira universitária no Brasil, com a valorização da extensão, podem contribuir para isso. No entanto, um retrato mais fidedigno sobre os mecanismos que impulsionariam a conexão entre pesquisa global e entraves locais ao desenvolvimento sustentável demanda a realização de estudos que permitam compreender os vínculos diretos ou indiretos entre pesquisadores globais e gestores públicos, organizações não governamentais e/ou empresas. A existência desses vínculos em algumas localidades, e sua ausência em outras, pode resultar em assimetrias no impacto da colaboração internacional sobre o desenvolvimento dos países de origem dos pesquisadores.
Nota de agradecimento: Essa pesquisa não teria sido possível sem o apoio da FAPESC (Programa de Ciência, Tecnologia e Inovação aos Grupos de Pesquisa da UFSC), da Fundação Konrad Adenauer (Bolsa de Mestrado) e dos assistentes de pesquisa PIBIC (Lucas Balbinott, Mayara Marcelli de Souza Soares da Silva e Betina Holz Gorges).
Referências
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Sobre as autoras
Iara Costa Leite: Doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ; Professora Adjunta do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC; Coordenadora do RICTI — ricti.ufsc.br.
Carolina Veras Micheletti: Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI/UFSC; Assistant Operations Officer da IOC-UNESCO.
Taynara da Mata Moraes: Graduada em Relações Internacionais pela UFSC; Consultora de Dados da Semente Negócios.