A diplomacia blindada do Brasil e o golpe militar no Chile em 1973

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17 min readMar 16

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Paulo Roberto de Almeida

Roberto Simon: O Brasil contra democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul (São Paulo: Companhia das Letras, 2021, 491 p. ISBN: 978–85–359–3434–2; Coleção Arquivos da Repressão no Brasil; coord.: Heloisa M. Starling).

Em duzentos anos de diplomacia nacional, em raras ocasiões o Brasil interferiu diretamente, ou deliberadamente, nos negócios internos de outros países. Todas as nossas fronteiras foram resolvidas pela via pacífica das arbitragens ou das negociações diplomáticas, a começar, ainda na colônia, por Alexandre de Gusmão, o “avô da diplomacia brasileira”, agora contemplado por uma belíssima biografia de Synesio Sampaio Goes (que deveria ter sido publicada pela Fundação do Itamaraty que leva o seu nome, se não fosse pela sua ocupação pelos novos bárbaros da bolsodiplomacia). Quando ocorreram disputas, como no caso da Colônia de Sacramento e da Cisplatina, não era o Brasil, e sim projetos expansionistas do antigo colonizador português.

O princípio da não interferência nos assuntos domésticos dos outros Estados faz parte, atualmente, das cláusulas constitucionais inscritas no artigo 4º. da Carte de 1988, mas mesmo que não estivessem ali expressas, tal postura faz parte de princípios consagrados de Direito Internacional que existem desde longo tempo — talvez desde Vestfália — e que devem ser defendidos por todos os Estados membros da ONU, independentemente da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) ou de outros atos internacionais nessa área. Nem sempre foi assim, contudo, como os bons (e honestos) livros de história diplomática no ensinam: no século XIX, seja pela herança conflituosa entre os impérios castelhano e lusitano na América do Sul, seja em consequência das tribulações políticas na região do Prata, proprietários brasileiros nas fronteiras meridionais forçaram, de certa forma, a mão da diplomacia imperial na eleição de seus aliados políticos nos países vizinhos — geralmente contra os interesses de Buenos Aires –, o que nos levou a diversos conflitos armados na região: em território uruguaio, na derrocada do ditador argentino Rosas, até a “maldita guerra” da Tríplice Aliança contra o ditador do Paraguai. Houve, é verdade, uma “diplomacia do patacão”, operada por Mauá a serviço da chancelaria imperial, mais sutil do que imperialista.

A “guerra do Paraguai” foi a última contenda em que o Brasil se envolveu, militarmente e diplomaticamente, no continente. Depois consolidamos um padrão de cordialidade respeitosa, por vezes de distanciamento, que marcaram toda a construção da moderna diplomacia brasileira, confirmada por Rio Branco e reafirmada em todas as ocasiões e oportunidades, mesmo quando resolvemos participar da Grande Guerra — contra os Impérios centrais — e da Segunda Guerra Mundial — contra as forças do nazifascismo, ainda que sendo uma ditadura de direita –, postura reafirmada nas diversas ocasiões em que atuamos como mediadores nos conflitos regionais, em especial na guerra do Chaco (Paraguai e Bolívia) e nos litígios fronteiriços entre o Peru e o Equador. Recusamos envolvimento na Guerra da Coreia e na guerra do Vietnã, resistindo aos apelos do Grande Irmão hemisférico, já na época da Guerra Fria, mesmo quando nossa “solidariedade ocidental” na luta contra o comunismo era constantemente reafirmada. Só rompemos esse princípio quando do envolvimento na guerra civil da República Dominicana, ao participar da Força Interamericana de Paz, em 1965, um disfarce para a mobilização dos Estados Unidos contra a vitória dos movimentos de esquerda naquele país, o que constituiu uma espécie de “imposto a pagar” pelo potencial apoio americano ao golpe militar de 1964; ainda assim, exigimos um “aval” multilateral para essa operação, sob a forma de uma resolução da OEA em torno do assunto.

Mas data justamente dessa época uma conversão indesejada e infeliz de nossa diplomacia no sentido de assumir uma postura militantemente anticomunista no âmbito regional, o que tínhamos recusado, mesmo sob intensa pressão americana, quando da consideração da questão cubana no foro da mesma OEA, em 1961–62: a liderança ímpar de San Tiago Dantas naquela ocasião retomou a tradição consagrada desde Rio Branco, sustentada doutrinariamente por Rui Barbosa, reafirmada na prática por Oswaldo Aranha e seguida invariavelmente por quase todos os chanceleres da primeira metade do século XX. A caminhada do Brasil para o que foi chamado, no título desta resenha, de “diplomacia blindada” vai ocorrer nos anos 1960, quando o anticomunismo, enquanto postura oficial do Estado brasileiro, inaugurado desde a Intentona de 1935, passa a fazer parte dos princípios diretivos da diplomacia brasileira, orientando a ação regional de todos os governos do regime militar. O golpe de Pinochet no Chile é, provavelmente, a expressão maior dessa “diplomacia blindada”, a mais conspícua e a mais vergonhosa para nossas tradições diplomáticas, quase que sempre guiadas por uma observância escrupulosa dos princípios do Direito Internacional e da não interferência, justamente.

O livro de Roberto Simon é a maior, até agora a melhor, e provavelmente a mais completa história desse período de truculência ideológica carregada para dentro da Casa de Rio Branco pelos militares “prussianos” do Brasil, exatamente o estilo do uniforme de Pinochet ao desembarcar em Brasília para a posse de Geisel, dez anos depois do início da ditadura, quando ela conseguiu alcançar o máximo de crescimento do PIB: os dez anos seguintes foram de descenso, finalizando por uma crise da qual nunca nos recuperamos, passados mais de trinta anos. Que o livro seja a maior pesquisa, o provam quase cem páginas de notas (remetendo a todos os arquivos oficiais e acadêmicos, matérias da mídia, entrevistas) e mais vinte páginas de índice remissivo, remetendo à mais importante documentação e fontes primárias. O embaixador Câmara Canto, o homem que acompanhava Pinochet em cavalgadas matinais antes do golpe contra Allende, e ativo promotor deste, com pleno acordo da chancelaria em Brasília, recebe extensas notas e páginas nesse índice, mais até que o chanceler Gibson Barboza.

Os sete anos de trabalho de pesquisa e cuidadosa redação poderiam representar apenas mais uma consolidação historiográfica de uma triste época já passada e enterrada, no Chile e no Brasil, um livro de “história” e nada mais. Mas não: com a volta de um apoiador explícito das catacumbas do regime militar, que nunca escondeu sua admiração e apreço por um torturador desprezível, essa História ganhou indiscutível atualidade, também triste, pois que o autor teve de deixar no anonimato os diplomatas da ativa que colaboraram com a sua pesquisa. Golpe, tortura, repressão, violações de direitos humanos, crimes contra a humanidade voltaram à atualidade, se ainda não na prática, pelo menos em intenção. Bolsonaro já confessou mais de uma vez que a “sua” ditadura matou pouca gente, ele queria mais, talvez um cenário que o autor descreve para o Chile, em setembro de 1973: um “universo de execuções sumárias, torturas, aprisionamentos em massa, exílio e expurgos do funcionalismo público, já familiar em outros cantos do Cone Sul” (p. 13).

Que a sua extraordinária história seja a melhor, até o momento, disso tampouco restam dúvidas, uma vez que ele corrige um viés propagado na historiografia até os nossos dias, que está inclusive consagrado nos relatos e na interpretação da própria esquerda sobre a vigência dos regimes militares na América do Sul: a de que o Brasil tenha representado uma espécie de “sub-imperialismo”, ou seja, apenas um aplicador local da tutela e da dominação do imperialismo americano na região. Roberto Simon prova que não: os militares e diplomatas brasileiros, ainda que partilhando com os americanos — da CIA, dos serviços de inteligência militar, do Departamento de Estado — uma coordenação sobre os “avanços do comunismo” no continente, atuavam também com autonomia e voo próprio, na busca de seus próprios objetivos nacionais e interesses muito concretos no esforço (que se estendeu a vários outros países, mas sobretudo no Cone Sul) de estender o “modelo brasileiro” (de repressão, entenda-se) a todos os países que ousassem desviar-se da linha do “Ocidente cristão e conservador”. As provas que Simon apresenta sobre essa independência de ação do “novo imperialismo brasileiro” — o do Império tinha ficado esquecido nos anais da diplomacia brasileira desde o início da República — são claras e contundentes. O Brasil dos generais vigiava estreitamente os países democráticos do continente desde o início: Chile e Uruguai, por exemplo, tinham partidos comunistas historicamente fortes e bastante atuantes desde décadas, com forte penetração nos meios sindicais, da imprensa e nos grêmios estudantis.

Quando eu escrevi, mais acima, que o livro de Simon é “provavelmente a mais completa história desse período de truculência ideológica carregada para dentro da Casa de Rio Branco”, foi porque detectei uma “inadequação cronológica” não intencional em seu relato. Ele diz, por exemplo, que nos meses seguintes à vitória de Salvador Allende nas eleições de 1970, o ditador brasileiro Médici “passara a se referir ao presidente de saída, o democrata-cristão Eduardo Frei, como o ‘Kerenski chileno’ — em alusão ao primeiro-ministro russo que, ao ajudar a implodir o império czarista, abrira caminho ao bolchevique” (p. 17; menção reafirmada na p. 58 e em nota da p. 373). Aparentemente, pois, a caracterização do democrata Frei (pai do presidente do mesmo nome na fase pós-Pinochet) teria vindo apenas com a vitória de Allende em eleições altamente disputadas e que terminaram apenas no Congresso, com uma parte dos centristas apoiando o eleito da Unidade Popular. Ora, esse paralelo — que Simon reconhece como uma “aberração” — tinha sido feita com pelo menos quatro anos de antecedência, comunicado diretamente a interlocutores do Departamento de Estado, na embaixada dos EUA em Brasília, pelo então Secretário Geral do Itamaraty, Manoel Pio Corrêa, em 1966.

Ele não consta das memórias bastante sinceras e elucidativas de um dos mais antigos (desde o Estado Novo) e mais efetivos anticomunistas do Itamaraty — O mundo em que vivi (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1996, 2 v.) –, mas está em um dos despachos feitos da embaixada americana em Brasília, dirigidos ao então subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental, ninguém menos que o “embaixador do golpe”, Lincoln Gordon, já de volta a Washington, depois de exercer o cargo de representante do império no Rio de Janeiro, de 1961 a 1966, justamente. Depois de colaborar com os “serviços secretos” da ditadura brasileira durante seu período como embaixador no Uruguai — justamente onde estavam Jango Goulart, o presidente deposto, Leonel Brizola, o mais incendiário dos opositores do novo regime, e muitos outros exilados –, Pio Corrêa foi alçado como Secretário Geral do Itamaraty tão pronto tomou posse, no final do mandato de Castelo Branco, o novo chanceler, militar de pijama e longevo revolucionário de 1930, Juracy Magalhães, o homem da frase tremendamente infeliz, copiada do presidente da General Motors, segundo a qual “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Faço um relato de memória, pois não consegui encontrar entre meus papéis, uma cópia de um expediente coletado nos National Archives dos EUA, em Maryland, quando eu me encontrava como ministro-conselheiro na embaixada em Washington, preparando, ao mesmo tempo, um Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil (disponível na Biblioteca Digital da Funag).

Trata-se de um relato feito pelo ministro-conselheiro e Encarregado de Negócios na embaixada em Brasília ao seu antigo chefe, o embaixador Lincoln Gordon, pouco depois do golpe do general Juan Carlos Ongania contra o presidente Arturo Illia, da Argentina (em junho de 1966). Recebendo o diplomata americano em seu gabinete, o SG Pio Corrêa, ante um estupefato jovem diplomata, convidou os Estados Unidos para um golpe no Chile, mais ou menos nestes termos: “agora que já resolvemos a questão na Argentina, está na hora de nos livrarmos do Kerenski chileno”. O presidente Eduardo Frei, um cristão-democrata centrista, tinha sido eleito em 1964, na sucessão do ultraconservador Jorge Alessandri, e executava um programa moderado de reformas que estava inteiramente na linha do que preconizavam as administrações Kennedy e Lyndon Johnson para o continente: reforma agrária, educacional, administrativa e abertura ao comércio e investimentos estrangeiros (americanos de preferência). Os diplomatas americanos, certamente progressistas em sua maior parte, já preocupados com a sucessão de aventuras militares na região, certamente não esperavam receber um convite tão direto para um golpe de Estado, inclusive porque tanto a CIA quanto os serviços de inteligência militar possuíam bastante latitude de ação, com projetos e intenções nem sempre coincidentes com os da diplomacia tradicional.

Esta foi, portanto, a origem do paralelo com Kerenski, aplicado primeiramente a um presidente democrata e não ao socialista Allende. Pio Corrêa, que montou sob sua supervisão exclusiva — inclusive mais em contato com os militares brasileiros do que com os seus próprios colegas de carreira — um serviço paralelo de informações (que corria à margem das novas DSIs, as Divisões de Segurança e Informações, que o SNI instalava em todos os ministérios) e que participou intensamente de todos os golpes baixos e dos atos sórdidos perpetrados nas catacumbas do regime militar, bem antes que se generalizassem os atos horríveis de repressão e eliminação de militantes da oposição perpetrados durante os “anos de chumbo” da ditadura militar (pós-AI-5, portanto). Cabe, nesse sentido, uma correção, pelo menos conceitual, ao que escreveu Roberto Simon sobre a cooperação, ou colaboracionismo, do Itamaraty durante essa fase sombria da nossa história: nem sempre foi “o Itamaraty”, no seu conjunto, ou seus chefes, que participaram de todas as operações policialescas e repressivas contra os exilados brasileiros, no Chile ou em outros países, mas sim um grupo até reduzido de “devotos” cumpridores de tarefas dentro da carreira, uma pequena tribo de funcionários que depois seriam objeto de certo ostracismo numa fase posterior.

Alguns agiam por comprometimento com a causa, um anticomunismo entranhado e fanático — como foi o caso do próprio embaixador Câmara Canto ou o ministro Marcos Camillo Cortes, que Simon descreve como “pupilo de Pio Corrêa”, o primeiro chefe do CIEX criado por este (p. 236) –, outros por puro oportunismo carreirista: conseguiam uma promoção ou duas, mas depois estacionaram no processo de ascensão funcional e só conseguiram postos secundários até a aposentadoria. Um reduzido número até se “sacrificou” pela Casa, assumindo, por exemplo, a DSI do MRE, a pedido do chanceler, apenas para que ela não fosse dirigida por um coronel qualquer do Exército (eles, de toda forma, circulavam intensamente pelo Itamaraty, a serviço da Secretaria do Conselho de Segurança Nacional, em todas as áreas nas quais pudesse haver algum risco de “penetração comunista”). Como se vê, o “comunavirus” tem uma história bem mais antiga, o que não impediu as cifras do Itamaraty de serem penetradas pelos cubanos e soviéticos em pelo menos duas oportunidades (como relatado no segundo volume do “Mitrokhin Archive”: The World Was Going Our Way: The KGB and the Battle for the Third World; Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin; Nova York: Basic Books, 2005).

Independentemente de um ou outro ponto de detalhe, como o aqui relatado, Roberto Simon, com base em despachos de chancelarias e relatos de observadores outros que não apenas chilenos e brasileiros, efetua um relato completo, até íntimo, do bom relacionamento entre diplomatas, militares, homens de negócios e agentes da repressão dos dois países, nos meses imediatamente antecedentes ao sangrento e selvagem golpe de Pinochet, e nas semanas e meses seguintes, quando os “gorilas” e “tigres” dos dois regimes militares se empenharam na caça aos comunistas nacionais e emigrados em cada um dos países e nos países vizinhos. Ele relata, por exemplo, que o deputado Rubens Paiva desapareceu em 1973, sequestrado por oficiais da Força Aérea, pouco depois de receber cartas de parentes de exilados brasileiros no Chile, objeto de informantes da esquerda brasileira trabalhando para a ditadura brasileira no Chile (p. 101). Assim como essa, o livro é uma mina abundante de informações relevantes sobre os nossos anos de chumbo e sobre o envolvimento completo da alta cúpula da diplomacia brasileira com o golpe no Chile. Gibson Barboza sai bastante chamuscado de todo o relato, com revelações que não fazem parte, obviamente, de suas memórias politicamente corretas, recentemente republicadas pela Funag (Na diplomacia, o traço todo da vida. 4ª. edição, 2020). Gibson é por ele descrito como o “arquiteto do cerco diplomático a Allende”, o que é comprovado pela transcrição de suas conversas altamente comprometedoras com os mais diversos interlocutores chilenos, entusiasmado pelo sucesso de seu “colaboracionismo” com duas ditaduras nos anos e nas ações mais exacerbados da bárbara repressão às esquerdas nos dois países.

Uma leitura linear de todo o livro — acompanhada de uma consulta frequente, necessária, a despeito de enfadonha, às cem páginas das notas agrupadas ao final do livro — revela a mastodôntica pesquisa de Roberto Simon em praticamente todos os arquivos e fontes disponíveis aos olhos e registros de um grande jornalista investigativo doublé de historiador rigoroso. Uma simples resenha, mesmo uma resenha-artigo, não consegue dar conta dos detalhes e minúcias que ele conseguiu ordenar, apresentar e conectar praticamente todos os personagens relevantes dessa dupla história dramática de colaboração intensa entre duas das mais longevas ditaduras do Cone Sul, só superadas, na sanha selvagem, ainda mais bárbara, da eliminação generalizada de opositores (e de muitos inocentes) perpetrada pela ditadura militar argentina, entre 1976 e 1982. Roberto Simon consegue, inclusive retraçar a fileira “genealógica” de vários desses personagens: Fulano era pai (ou filho) de Sicrano, que foi comandante militar e depois embaixador no Brasil ou chanceler de Pinochet; Beltrano foi o capitalista que apoiou as operações de um quarto indivíduo na preparação do golpe, etc. Um trabalho desse tipo merece um Jabuti antecipado, ou algum prêmio da Anpuh; seu livro, requer, aliás, tradução para o inglês e espanhol e publicação por editoras de prestígio, uma vez que ele revoluciona não apenas as historiografias dos dois países — e não só sob seus dois regimes militares –, mas também boa parte da historiografia estrangeira (sobretudo a dos EUA) sobre o regime Pinochet e, em especial, sobre a nova dimensão, extranacional, da ditadura brasileira, relativamente relutante em participar da Operação Condor, mas absolutamente engajada na montagem de regimes similares na região.

Sabe-se, por exemplo, que os militares brasileiros não apreciavam seus colegas da Bolívia e do Peru, que pecavam por excesso de “nacionalismo anti-imperialista”, e preferiam que eles fossem substituídos por gorilas mais conformes à sua imagem e semelhança. Eles, com uma “pequena ajuda” de diplomatas compreensivos, conseguiram que fosse afastado o nacionalista Juan José Torres, da Bolívia, instalando em seu lugar o mais acomodado general Hugo Banzer. Da mesma forma, mantinham intensa troca de informações — e até de exilados sequestrados — com seus colegas uruguaios, sobretudo depois do sequestro de um diplomata brasileiro em Montevidéu, em 1970, que depois veio a se converter em diligente espião dos serviços de inteligência militares (um agente da CIA, Dan Mitrione, sequestrado na mesma operação, foi morto pelos Tupamaros, assim como um possível informante americano, o capitão Charles Chandler, tinha sido eliminado por guerrilheiros brasileiros, ainda numa fase anterior, em 1968, antes do recrudescimento da repressão contra os movimentos armados).

Seu livro vai inclusive mais além do que uma história das tribulações diplomáticas e golpistas das duas ditaduras do Cone Sul, pois penetra fundo, em determinadas passagens, na história política interna de cada um dos países; assim, por exemplo, Roberto Simon trata exaustivamente do caso do deputado Chico Pinto, que chamou Pinochet de “fascista” e “assassino”, que “desonrou a farda que o agasalha”, e que amargou seis meses de cadeia, antes de ser absolvido pelo STF três anos depois. Em 25 capítulos divididos em três partes — O Brasil contra Salvador Allende, O apoio ao golpe e Do entusiasmo à cautela –, o autor examina todas as peripécias e todos os personagens dessa infeliz dupla história de repressão selvagem contra movimentos de esquerda, que não necessariamente estavam a serviço da União Soviética, mas que eram considerados, pelos Estados Unidos e pelos militares da região, como peças relevantes do grande jogo da Guerra Fria que deveria favorecer o grande urso bolchevique. Alguns elementos desse jogo se reproduziram pouco depois no processo revolucionário de Portugal, cuja capital, durante algum tempo, parecia uma Leningrado sobre o Tejo. Ali também, militares brasileiros — um deles foi embaixador em Lisboa — colaboraram com seus colegas americanos — sob a batuta do Secretário de Estado Henry Kissinger e do coronel do golpe de 1964, Vernon Walters, para esfriar os ardores socialistas dos capitães de Abril de 1974.

A história que é contada em O Brasil contra a Democracia talvez não seja a definitiva, mas é a mais completa, até aqui, sobre uma das fases mais constrangedoras do itinerário do Itamaraty, e não apenas em relação à submissão dos diplomatas às obsessões anticomunistas dos seus colegas militares, mas igualmente no tocante à renúncia, que muitos fizeram, de se aterem à simples legalidade institucional, à própria dignidade do serviço público, para se entregarem de corpo e alma a práticas clandestinas de violações amplas dos direitos humanos, atos colaboracionistas ou omissões de serviços que levaram vários concidadãos a uma morte obscura ou ao sofrimento de sequer desfrutarem de algum apoio consular, como a Constituição e os estatutos obrigam esses mandarins do Estado. Simon afirma que não se pode creditar esse colaboracionismo apenas como “excessos” de “alguns radicais dentro do regime, pessoas que agiam isoladamente”. Ele considera, ao contrário, que tal tipo de “racionalização”, esconde o “papel institucional do Itamaraty no aparato de repressão da ditadura” (p. 22). Ele é bem mais contundente:

Centenas de documentos apresentados… desmentem essa versão [do papel marginal da diplomacia]. O Itamaraty era parte fundamental da repressão a brasileiros fora do território nacional, espionando e perseguindo exilados. A chancelaria tinha recursos, funcionários e órgãos especializados para fazer esse trabalho clandestino; cooperava com as agências de repressão de modo ‘constante, leal e competente’, conforme saudava um chefe da Agência Central do SNI [general Sebastião Ramos de Castro, em 1978, “o mesmo que, anos antes, ainda coronel, comandara a missão de agentes brasileiros ao Estado Nacional de Santiago.” Nota 31, p. 365]; e se ocupava da luta contra todo e qualquer movimento de denúncia à ditadura no exterior, fosse na América do Sul, na Europa ou nos Estados Unidos. (p. 23)

Alguns brasileiros, exilados ou no Brasil, “desapareceram”, como resultado dessa participação ativa no trabalho de informação, ainda que não diretamente de repressão. Existem antecedentes a esse tipo de colaboracionismo, e eles se encontram em todos os tipos de ditaduras ou de ocupações por forças estrangeiras. Um dos exemplos mais eloquentes é o do colaboracionismo francês não apenas com o regime de Vichy, mas diretamente com o ocupante nazista, como já relatado numa historiografia não exatamente francesa (penso, por exemplo, em Tony Judt, em Past Imperfect: French Intellectuals, 1944–1956). Como informado na contracapa do livro de Roberto Simon, “[b]aseado em extensa pesquisa documental e escrito com brilho, … é um livro impossível de largar e um divisor de águas na historiografia do período”. Na verdade, ele vai um pouco mais além do que simplesmente tratar de um passado hoje distante, antes do nascimento da maior parte dos historiadores agora ativos na academia brasileira; ele pode também tratar do presente, como explica o próprio Roberto Simon, ao tratar no final, do significado do seu livro:

Quando iniciei a pesquisa, em 2013, palavras como ‘golpe’. ‘ditadura’, ‘tortura’ ou ‘Pinochet’ não despertavam grande controvérsia no Brasil. Eu pensava que o livro seria, sobretudo, uma reflexão acerca de um passado relativamente protegido pelo presente democrático. Vi, porém, a evolução política brasileira conferir à pesquisa uma contemporaneidade e relevância inesperadas. Se o livro expõe a obscenidade das atuais tentativas de falsificação da história, não era esse seu objetivo inicial. Agora talvez seja sua principal contribuição. Nova York, julho de 2020 (p. 360–61)

Para um jovem estudante que saiu do Brasil no período mais duro da repressão policialesca e militar — depois que seus professores nas Ciências Sociais da Fefelech-USP foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5, e que passou boas parte dos anos de chumbo do regime militar em autoexílio na Europa, protestando contra os regimes de direita do Cone Sul, e que depois ingressou no serviço diplomático na fase final da ditadura — o livro de Roberto Simon traz lembranças amargas, não exatamente de constrangimentos físicos, mas sobretudo de ordem moral. A despeito de ter sido fichado pelo SNI como um “diplomata subversivo”, minha resistência consistiu sobretudo em ter publicado material eventualmente “subversivo” contra a ditadura, sob outros nomes, um recurso que eu imaginava, até há pouco, devidamente “enterrado”. A mensagem acima parece recomendar que precisamos estar prontos para retomar a resistência, não só intelectual, mas sobretudo ativamente preventiva, contra novas descidas nas catacumbas de “gorilas” e “tigres”. Nenhum país está ao abrigo dessas recaídas no obscurantismo torpe dos autoritários, ou nas idiotices terraplanistas e antiglobalistas de ideólogos tresloucados, como ainda provado pelas recentes surpresas “tribais” na supostamente “maior democracia do mundo”.

Alguns acham que podem provocar um “tsunami autocrático” na base da retórica ao estilo mussoliniano, o que não parece ter chance de ocorrer com as Forças Armadas da atualidade. Por uma dessas ironias do destino, mas não sem precedentes — pois temos o exemplo do cabo que ascendeu a tirano –, o golpe não seria feito por generais com seus tanques, mas por simples suboficiais e policiais dotados de armas leves, o que é mais uma demonstração de que a história pode, sim, andar para trás. Pinochet redivivo?

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3874, 22 de março de 2021

Sobre o autor

Paulo Roberto de Almeida: Diplomata; professor no Uniceub (www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

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