A emergência da institucionalização na OMS de uma agenda de participação social na saúde global

Editoria Mundorama
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6 min readJul 4, 2024

Richarlls Martins e Thiago Gehre Galvão

Fonte: OMS, 2024. Dr Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde, Genebra.

Resumo: O artigo subsidia análises sobre a aprovação, em 2024, da primeira Resolução da Organização Mundial da Saúde relativa à participação social e introduz argumentos para a indução de uma agenda de pesquisa que integre saúde global e direitos humanos com foco nos termos da Resolução.

O sistema ONU emergiu como um novo lócus de incidência organizada para a participação da sociedade civil a partir dos anos 1990 com a instalação do ciclo de Conferências sociais ao qual o Brasil passou a incorporar a sociedade civil nas delegações oficiais do governo, prática que configurou uma inovadora arquitetura de configuração na política externa nacional, Martins (2017) e modulou estratégias de participação internas. Esta composição mista nas delegações, com atores políticos de natureza distintas, abriu espaço para diálogos de representações da sociedade civil com a estrutura da diplomacia nacional, produzindo atritos e avanços neste campo historicamente fechado à participação social, Santoro (2012).

As formas de atuação da sociedade civil na esfera internacional são plurais e especialmente o advocacy nos fóruns intergovernamentais foi e segue sendo uma prática fomentada pelas organizações não-governamentais brasileiras, em parceria com redes regionais e globais, introduzindo uma estratégia para disputas e promoção de agendas, além de denúncias associadas às violações dos direitos humanos impetradas em âmbito nacional. Nesta composição, o campo da saúde configurou-se um exemplo de boa prática brasileira para análise dos modelos e canais de participação social na gestão das políticas públicas, com exemplos compartilhados internacionalmente.

A perspectiva democrática do movimento da Reforma Sanitária Brasileira está na base do Sistema Único de Saúde (SUS) e ancorou-se em uma proposta de mudança social, Kruger e Oliveira (2019). Como apresentam os autores, as articulações políticas que sustentaram o movimento sanitário e que deram base ao SUS se firmavam nos primados da justiça social e do direito universal à saúde. A participação social na saúde é uma diretriz que estrutura o SUS. A Lei nº 8.080 de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, garante o “direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde” e a “participação da comunidade”. A Lei nº 8.142 de 1990 organiza o tema da participação da comunidade na gestão no SUS, adotando como modelo de gestão colegiada das políticas de saúde as conferências e conselhos na administração pública tripartite, além de normatizar a competência e composição destes órgãos (1990b, art. 1).

O Conselho Nacional de Saúde (CNS), criado pela Lei nº 378 de 1937 como órgão consultivo ao governo federal, após a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, abriu-se à sociedade e induziu políticas de participação. O processo de fortalecimento da participação social na saúde no desdobramento deste período vinculou-se à emergência da sociedade civil como ator político global no marco do ciclo social da ONU. Os movimentos sociais organizados atuaram nestes dois níveis. De um lado, induziram mecanismos e canais no campo da saúde e participação nacional, de outro, incidiram nos fóruns intergovernamentais disputando temas e, por inúmeras vezes, compondo formalmente a política externa brasileira na negociação de linguagens. Os avanços obtidos na agenda da saúde sexual, saúde reprodutiva e direitos na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento no Cairo em 1994 e na Conferência Mundial dos Direitos da Mulheres, em Beijing, em 1995 evidenciaram a confluência destes processos nos dois níveis de atuação.

A pandemia da COVID-19 lançou luz sobre um conjunto de experiências territorializadas de associativismo comunitário com foco nas respostas emergenciais e humanitárias pautadas na vigilância popular em saúde e orientadas por amplo engajamento social. As tecnologias sociais participativas para enfrentar notícias falsas, os mapas de populações vulnerabilizadas sem acesso aos cuidados em saúde, as novas redes formadas de parcerias entre múltiplos atores, são exemplos de estratégias protagonizadas pela sociedade civil que auxiliaram a redimensionar a importância da participação social na saúde global. As respostas comunitárias no campo da epidemia da Aids organizaram as bases históricas para o entendimento da constituição do campo da saúde global. A pandemia da COVID-19 ampliou a referência do papel da sociedade civil como agente político para a cooperação estratégica no fortalecimento dos organismos multilaterais, num campo da diplomacia em saúde sob fortes ataques e com enorme dificuldade de produzir consensos, especialmente em temas associados aos direitos humanos.

Nesta conjuntura, a 76ª sessão da Assembleia da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2023 criou um Grupo de Trabalho, a partir de proposição apresentada pelo Brasil, para desenvolver uma proposta de resolução original sobre a participação social na saúde global e a incorporação da participação social nas deliberações da OMS. O rascunho de resolução, copatrocinado além do Brasil, pela Colômbia, Croácia, Equador, Finlândia, França, Guatemala, Noruega, Qatar, Eslováquia, Eslovênia, Sri Lanka, Tailândia, Tunísia e Estados Unidos da América, foi discutido na próxima 77º Assembleia Mundial da OMS, realizada em maio de 2024, OMS (2024a).

O SUS possui na participação social um princípio e a proposta de Resolução apresentada pelo Brasil alinhou-se aos pressupostos dos direitos humanos presentes na política pública de saúde nacional. Em termos políticos, a discussão desta resolução na OMS orientou-se com objetivo de ampliar a participação social nos processos de decisão na saúde, fortalecer os instrumentos no setor público para participação, garantir a participação de grupos populacionais em situação da maior vulnerabilização, organizar ações que promovam a regularidade e alocação de recursos para participação, fortalecer condições de participação da sociedade civil e promover projetos de pesquisas para apoiar a incidência social na saúde.

A primeira Resolução sobre participação social e saúde da história da OMS foi aprovada por consenso na 77º Assembleia Mundial deste ano, em sessão plenária presidida pelo Brasil, OMS (2024b). Como agenda de pesquisa para o campo da saúde global e dos direitos humanos abriu-se uma fecunda possibilidade de estudos que possam auxiliar o cumprimento dos acordos expressos na Resolução referentes à sistematização das experiências de participação e ao intercâmbio regular de boas práticas dos Estados-Membros em matéria de participação social. Especialmente, argumenta-se neste artigo a pertinência de que sejam fomentadas redes sociotécnicas de pesquisa que produzam estudos sobre as desigualdades internas nos países e entre os países, através de análises substanciadas sobre o progresso da implementação desta Resolução, para auxiliar com subsídios os relatórios sobre o tema que deverão ser apresentados bianualmente até 2030 nas Assembleias da OMS.

A 77º Assembleia Mundial da OMS deste ano foi alvo de forte repercussão pela ausência de consenso e consequente não aprovação do texto do tratado sobre pandemias, após 2 anos de negociação, num contexto de ampliação das crises climáticas, a exemplo do que se vivencia no estado do Rio Grande do Sul. Com menor visibilidade ocorreu a aprovação da Resolução da participação social neste fórum. O forte histórico que o Brasil possui na construção de modelos plurais de participação na saúde convocam o país a contribuir com protagonismo no fomento para a construção de uma agenda de pesquisa da institucionalidade da participação social na saúde global, que pode ser instalada com a aprovação desta inédita Resolução. A começar pela expressão diversa dos ativismos nacionais, especialmente protagonizados pelos grupos populacionais mais vulnerabilizados e pelo acúmulo do campo da saúde coletiva — a partir das formulações sobre os determinantes sociais em saúde e em interface com os direitos humanos e saúde -, incentiva-se a ampliação de investigações que associem ainda mais o campo das relações internacionais, participação e saúde.

Referências

Brasil. 1990. “Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.

Kruger, Tânia Regina, and Andreia Oliveira. 2019. “Tendências Da Participação No SUS: A Ênfase Na Instrumentalidade E Na Interface Interestatal”. Saúde Em Debate 43 (spe5): 174–89. https://doi.org/10.1590/0103-11042019S515.

Organização Mundial da Saúde (OMS). 2024a. “Draft Social participation for universal health coverage, health and well-being”. Disponível: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/EB154/B154_CONF10-en.pdf

Organização Mundial da Saúde (OMS). 2024b. “Resolution Social participation for universal health coverage, health and well-being”. Disponível: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA77/A77_ACONF3-en.pdf

Martins, Richarlls. (2017). “Participação Social, População e Desenvolvimento no Brasil (1994–2014): a emergência da internacionalização da sociedade civil e novas leituras sobre o monitoramento de políticas públicas para analítica da política externa”. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=5819132.

Santoro, Maurício. 2012. “Democracia e Política Externa no Brasil”. Revista Estudos Políticos 1 (4): 95–105, 2012. Disponível em: https://periodicos.uff.br/revista_estudos_politicos/article/view/38621

Sobre os Autores

Richarlls Martins: Doutor em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz, presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento do Brasil.

Thiago Gehre Galvão: Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília/UnB e professor adjunto do Instituto de Relações Internacionais da UnB.

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