O conflito Israel-Palestina e a participação da África do Sul na Corte Internacional de Justiça: apartheid?

Editoria Mundorama
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7 min readJun 13, 2024

Maria Fernanda Montandon Lemos e Laurindo Tchinhama

Photo by Swiss Educational College on Unsplash

Resumo: Este artigo visa justificar a situação da África do Sul na Corte Internacional de Justiça ao apontar a situação da guerra entre Israel e Palestina como um apartheid, cenário vivido anteriormente pelo país africano, a partir de conceitos e evidências apresentadas por Organizações Internacionais aplicáveis ao caso.

No dia 20 de fevereiro de 2024, a África do Sul acusou formalmente Israel de cometer genocídio contra o povo palestino e solicitou à Corte Internacional de Justiça (CIJ), a mais alta instância judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), que ordene o fim das operações militares israelenses em Gaza (Adamor, 2024). Essa declaração, feita no início do ano, gerou grande repercussão por duas razões principais. Primeiramente, a África do Sul utilizou abertamente o termo “genocídio”, uma postura mais assertiva que outros países estavam evitando. Em segundo lugar, há um paralelo histórico significativo: a África do Sul já sofreu da experiência de um regime opressivo perpetrado por um governo racista de minoria branca. Diante desse contexto, a comparação com o apartheid sul-africano está em constante tópico, visto que o próprio país, que sofreu com o regime opressor, fez tal comparação.

A princípio, ao se analisar o histórico da relação África do Sul-Israel, observa-se que o país africano foi uma das primeiras nações a reconhecer o Estado de Israel, em 1948, no rescaldo do Holocausto (Maia, Elsawy, Hoarau, 2024). Em compensação, durante o regime do apartheid (1948–1994), Israel manteve relações diplomáticas com o governo opressor e segregacionista sul-africano, postura que gerou desaprovação significativa tanto internacionalmente quanto entre os palestinos (Maia, Elsawy, Hoarau, 2024). Desse modo, essa aliança foi vista como controversa, pois Israel, um Estado emergido do trauma do genocídio, mantinha laços com um regime baseado na segregação racial e na opressão de uma maioria negra na África do Sul.

A África do Sul, perante todos esses acontecimentos vividos pelo povo palestino, não se deixou intimidar, uma vez que vivenciou um sistema de segregação racial institucionalizado, e reconheceu, então, as particularidades em relação à Palestina. Dessa forma, em 17 de novembro de 2023, a África do Sul, juntamente com Bangladesh, Bolívia, Comores e Djibuti, foi um dos cinco Estados membros do Tribunal Penal Internacional que denunciaram a situação na Palestina ao Procurador, além de diminuir suas relações diplomáticas com Israel (Maia, Elsawy, Hoarau, 2024).

Dessa forma, na audiência do Tribunal de Justiça, em 2024, o termo “apartheid” foi amplamente usado pelo embaixador sul-africano, apontando o sentimento negativo dos sul-africanos em face das práticas discriminatórias e desumanas do regime israelense, comparando com uma forma ainda mais extrema do apartheid, e destacando que “[o] Apartheid de Israel deve acabar” (Veja, 2024).

Tal afirmação coloca-se como pontual, uma vez que as evidências para tal violação estão cada vez mais expostas. O ex-relator especial designado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, John Dugard, afirma que: “[…] Você poderia olhar para o apartheid sul-africano, consistia em discriminação racial, opressão política e fragmentação territorial. E há todas essas características na Palestina” (Sahd, 2022, p.190). Além disso, Dugard afirma que, em suas visitas à Palestina, observava cada vez mais paralelos, como novas restrições à liberdade de movimento, discriminação no sistema de justiça penal, nos direitos sociais e econômicos, além da destruição de moradias (Sahd, 2022).

A partir desse cenário, faz-se necessária a definição do conceito de “apartheid”. Segundo a Human Rights Watch (HRW) (2021), a Convenção do Apartheid define o apartheid como um crime contra a humanidade, caracterizado como “crime desumano” e descrito como atos cometidos com o objetivo de estabelecer e manter a dominação de um grupo racial sobre outro, oprimindo sistematicamente o grupo subjugado. Ainda, segundo a HRW (2021), o Estatuto de Roma do TPI apresenta uma definição similar, referindo-se a “atos desumanos” cometidos no contexto de um regime de opressão e dominação sistemática de um grupo racial sobre outros, com a intenção de manter esse regime. O Estatuto de Roma, no entanto, não detalha o que constitui um “regime institucionalizado”. Além disso, mediante a interpretação da HRW (2021, p. 29), pode-se notar que os três pilares para a definição de apartheid estão relacionados à (1) “intenção de manter um sistema de dominação de um grupo racial sobre outro”; à (2) “opressão sistemática de um grupo racial sobre outro”; e a (3) “um ou mais atos desumanos, conforme definidos, realizados de forma generalizada ou sistemática de acordo com essas políticas.”

Ao se analisar o contexto em que os povos palestinos vivem nos dias atuais, não se pode deixar de comparar com tais definições postas pela Convenção do Apartheid. A organização israelense B’Tselem, em seu relatório de 2021 perante a questão envolvendo a Palestina, aponta uma série de evidências de um crime de apartheid. Segundo a organização, um dos fatores é o de “Dividir, Separar e Governar”. Dessa forma, é posto que, entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, o regime israelense implementou leis, práticas e violência estatal para assegurar a supremacia dos judeus sobre os palestinos. Um método essencial para alcançar esse objetivo é a organização espacial diferenciada para cada grupo. A título de exemplo, pode-se observar que os cidadãos judeus vivem como se toda a área fosse um espaço único (exceto a Faixa de Gaza) (B’Tselem, 2021). A Linha Verde é praticamente irrelevante para eles, pois viver a oeste dela, em Israel, ou a leste, em assentamentos não formalmente anexados, não afeta seus direitos ou status. Para os palestinos, no entanto, o local de residência é fundamental. O regime israelense dividiu a área em várias unidades, definindo e governando cada uma de maneira diferente, concedendo distintos direitos aos palestinos conforme a unidade (B’Tselem, 2021). Essa divisão é significativa apenas para os palestinos, transformando o espaço, que é contínuo para os judeus, em um mosaico fragmentado para os palestinos.

Outro agravante é a questão da “imigração apenas para judeus”, na qual os palestinos que vivem em outros países não têm permissão para imigrar para a área entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, mesmo que eles próprios, seus pais ou avós, tenham nascido e vivido nesta região (B’Tselem, 2021). A organização também aponta a restrição da liberdade de movimento dos palestinos, bem como a negação do direito dos palestinos à participação política. Um fator desfavorável que evidencia a separação dos povos é a lei israelense denominada “Lei Básica”, promulgada em 2018. A lei consagra o direito à autodeterminação exclusivamente para o povo judeu, estabelecendo que distinguir judeus e não-judeus em Israel (e globalmente) é essencial e legítimo (B’Tselem, 2021). Dessa forma, é nítida a discriminação institucionalizada em áreas como assentamento, habitação, desenvolvimento de terras, cidadania, língua e cultura. Embora esses princípios já fossem amplamente seguidos pelo regime israelense, agora a supremacia judaica está inscrita na lei básica, tornando-se um princípio constitucional obrigatório, ao contrário das leis ordinárias ou práticas governamentais que poderiam ser contestadas (B’Tselem, 2021). Isso indica a todas as instituições estatais que devem promover a supremacia judaica em toda a área sob controle israelense.

Diante dessas medidas postas pelo governo israelense, fica claro que os três pilares básicos do apartheid, apontados pela HRW (2021, p. 29), estão sendo postas em ação. Percebe-se, portanto, que o povo palestino sofre uma constante marginalização, perdendo o direito de ir e vir, bem como o direito à vida, uma vez que as ações israelenses violam o artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual afirma que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (Organização das Nações Unidas, 1948).

Com base em todas as evidências apresentadas, pode-se aferir que a afirmação da África do Sul de que existe um apartheid na sociedade palestina é coerente. Isso é reforçado não apenas pelos relatórios de diversas organizações, como a Human Rights Watch e a B’Tsalem, mas também pelas ações separatistas de Israel, como a promulgação da Lei Básica, que viola inúmeros direitos do povo palestino. Por fim, a frase de John Dugard sintetiza com maestria todos esses acontecimentos: “A África do Sul foi criticada e boicotada, porque foi tão aberta e tão honesta sobre sua discriminação, que o apartheid israelense está ocultado” (Sahd, 2022, p.189).

Referências

ADAMOR, Julio. África do Sul acusa Israel formalmente de genocídio e pede fim de operações militares no primeiro dia de julgamento em Haia. Brasil de Fato, 11 jan. 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/01/11/africa-do-sul-acusa-israel-formalmente-de-genocidio-e-pede-fim-de-operacoes-militares-no-primeiro-dia-de-julgamento-em-haia. Acesso em: 24 mai. 2024.

B’TSELEM. A Jewish Supremacy Regime From the River Jordan to the Mediterranean Sea: This Is Apartheid. B’Tselem website, 12 jan. 2021. Disponível em: https://www.btselem.org/publications/fulltext/202101_this_is_apartheid. Acesso em: 30 maio 2024.

HUMAN RIGHTS WATCH (HRW). A Threshold Crossed: Israeli Authorities and the Crimes of Apartheid and Persecution. HRW website, 27 Apr. 2021, p. 5–6; 8. Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/media_2021/04/israel_palestine0421_web_0.pdf. Acesso em: 30 maio 2024.

MAIA, Catherine; ELSAWY, Cherine; HOARAU, Émilie. Caso África do Sul contra Israel: o TIJ insta Israel a evitar genocídio em Gaza. Consultor Jurídico, 15 mar. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-15/caso-africa-do-sul-contra-israel-tij-insta-israel-a-evitar-genocidio-em-gaza/#:~:text=Embora%20a%20%C3%81frica%20do%20Sul,suas%20pol%C3%ADticas%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20aos. Acesso em: 24 mai. 2024.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 14. mai. 2024.

SAHD, Fábio Bacila. Apartheid na Palestina: do debate internacional ao seu reconhecimento e julgamento. Entrevista com o ex-relator especial designado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, John Dugard. Plural, v. 29, n. 02, p. 188–207, 2022.

VEJA. Apartheid israelense é pior que o vivido na África do Sul, diz embaixador. 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/apartheid-israelense-e-pior-que-o-vivido-na-africa-do-sul-diz-embaixador. Acesso em: 30 maio 2024.

Sobre os Autores

Maria Fernanda Montandon Lemos: Graduanda de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), desenvolve pesquisas sob orientação do Prof. Dr. Laurindo Tchinhama.

Laurindo Tchinhama: Professor substituto na Universidade Federal de Uberlândia no curso de Relações Internacionais. Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação “San Tiago Dantas” UNESP-UNICAMP-PUC/SP (2023), Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (2017), Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Ribeirão Preto- UNAERP, (2014) e Especialista em Pedagogia Universitária pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro — UFTM — (2021).

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