Autonomia como poder político: revisitando a obra de Zairo Cheibub para analisar a diplomacia brasileira

Editoria Mundorama
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8 min readJun 5, 2024

Felipe Estre

Palácio Itamaraty, Brasília. Fonte: MRE

Resumo: O artigo revisita a obra de Zairo Cheibub para analisar a autonomia do Itamaraty na diplomacia brasileira. Argumenta-se que a autonomia não implica neutralidade política, destacando influências de atores internos na formulação da política externa, e enfatizando a distinção entre autonomia e insulamento burocrático.

Introdução

A ideia de autonomia do Itamaraty, tributária do trabalho de Zairo Cheibub (1984) é paradigmática nos estudos de política externa brasileira. Casarões argumenta que

[A]té a conclusão da nossa transição democrática, um dos consensos mais frequentemente mencionados na literatura referia-se ao controle expressivo, por parte do Itamaraty, sobre a condução e, na maioria dos casos, também sobre a formulação de nossa política externa (2012, 135).

Carlos Aurélio Pimenta de Faria (2008, 80) afirma que “a natureza isolada do processo de produção da política externa brasileira, fortemente centrada no Itamaraty, tem sido amplamente reconhecida”. Contudo, este artigo argumenta que a autonomia do Itamaraty não deve ser confundida com neutralidade política, tampouco deve ser confundida com insulamento burocrático — um conceito discutido por Edson de Oliveira Nunes em relação à administração pública como um todo (1997). Integrar a variável política às análises da diplomacia brasileira permite compreender melhor as influências internas na formulação de políticas externas. Isso enriquece a análise, promovendo transparência e accountability, além de incentivar a interdisciplinaridade nas pesquisas, conectando Relações Internacionais com Ciência Política e outras áreas.

Autonomia ou insulamento burocrático?

Na introdução de sua dissertação, Cheibub explica que desenvolveu sua pesquisa devido à sua percepção de que o Itamaraty havia assumido um papel cada vez mais importante na formulação e condução da política externa brasileira. Segundo o autor, a posição central do Itamaraty na formulação de políticas é consequência da burocratização a longo prazo do ministério. A institucionalização consolidada resultou em maior adaptabilidade, complexidade, autonomia e coesão. Cheibub conclui que esses processos fortaleceram o poder político do Itamaraty, atribuindo o fato de o ministério ter sido pouco afetado pelo golpe militar de 1964 à sua autonomia e coesão (1984).

Cheibub argumenta que o fortalecimento do Itamaraty foi gradual, o que ajudou a ampliar a capacidade do Ministério de controlar a formulação e implementação da política externa brasileira. O autor divide o desenvolvimento institucional do Itamaraty em três fases: Período Patrimonial, Momento Carismático e Período Burocrático-Racional. No Período Patrimonial, iniciado com a independência do Brasil, em 1822, houve a interpenetração de interesses públicos e privados na diplomacia estatal. O Momento Carismático, durante a chancelaria do Barão do Rio Branco (1902–1912), foi caracterizado pela liderança carismática, centralização e personalismo que ele exerceu como Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Finalmente, o Período Burocrático-Racional corresponde à modernização do Estado brasileiro, especialmente após os anos 1930. As reformas de Mello Franco e Aranha fundiram as três carreiras que, até aquele momento, constituíam os serviços exteriores: a Secretaria de Estado (responsável pelas tarefas internas e administrativas), o Serviço Diplomático e os Serviço Consular, modernizando o Itamaraty.

A criação do Instituto Rio Branco em 1945, responsável pelo recrutamento e formação de novos diplomatas, reforçou a coesão e o espírito de corpo, elementos fundamentais para a autonomia institucional do Itamaraty. Cheibub argumenta que essas mudanças aumentaram a capacidade do Ministério de formular e implementar a política externa do Brasil de maneira mais eficiente e menos suscetível a interferências políticas externas, permitindo que o Itamaraty desempenhasse um papel central na condução da política externa, especialmente durante e após o golpe militar de 1964. A institucionalização do Itamaraty, similar à das Forças Armadas, foi marcada por características como adaptabilidade, complexidade, autonomia e coesão, que não apenas garantiram a estabilidade e continuidade da política externa brasileira, mas também consolidaram o poder político do Ministério dentro do governo (Cheibub 1984).

Por outro lado, Edson Nunes (1997) aborda o insulamento burocrático no contexto da administração pública em geral, caracterizando-o como a separação das instituições governamentais da sociedade civil e do controle político. Segundo Nunes, esse insulamento cria uma barreira que impede a interação direta entre a administração pública e a população. Nunes argumenta que o insulamento burocrático, em um contexto mais amplo, resulta em uma administração pública que opera de maneira isolada das influências sociais e políticas. O conceito, portanto, não se refere a um suposto insulamento do Ministério em relação ao restante do poder executivo ou à Presidência da República. Nunes não se dedica, em sua análise, ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) especificamente.

Embora a autonomia seja vista como uma característica positiva, que reforça a capacidade do MRE de formular políticas coerentes e duradouras, o insulamento pode ser percebido como um afastamento das demandas sociais. Ainda que essas duas características possam ser atribuídas ao MRE, elas não se confundem. A autonomia permitiu ao Itamaraty desenvolver uma capacidade adaptativa e de resposta rápida às mudanças no cenário internacional. Essa capacidade é evidenciada pelo fato de que o Itamaraty conseguiu manter sua posição de destaque na formulação da política externa brasileira, mesmo durante períodos de instabilidade política. Contudo, a falta de canais regulares de transmissão das demandas sociais para as agências estatais, mencionada por Milani e Pinheiro (2013), destaca um potencial risco de insulamento, onde o Ministério pode se tornar impermeável às mudanças sociais.

Entretanto, é importante reconhecer que a centralidade do Itamaraty na formulação da política externa não significa que o Ministério seja — ou deva ser — politicamente neutro. A autonomia do Itamaraty tem como consequência o fortalecimento de sua capacidade de ação política, permitindo que o Ministério não apenas articule demandas dos diversos atores envolvidos na formulação da política externa, mas que o Itamaraty — ou grupos de interesse dentro do Ministério — busquem influenciar a própria política externa do país. Além disso, há abundante literatura que contraria a suposta neutralidade ou insulamento desse ator. Octavio Amorim Neto (2011) e Leticia Pinheiro (2013) demonstraram que uma miríade de outros atores e fatores influenciaram ativamente a formulação da política externa brasileira mesmo antes da democratização: as Forças Armadas, o Ministério da Economia, a opinião pública, o Congresso, os partidos políticos, os grupos de interesse e até o Presidente. Felipe Loureiro, Adriana Schor e Feliciano Guimarães (2015) mostraram como atores econômicos privados influenciaram a diplomacia brasileira durante o governo de João Goulart, nos anos 1960 — mesmo na chamada fase de ‘Política Externa Independente’. Paulo Roberto de Almeida (2008), Pio Penna Filho (2009), Alessandra Castilho (2014; 2021) e Roberto Simon (2021) investigaram como o Ministério das Relações Exteriores cooperou direta e ativamente com o regime militar em perseguições e violações de direitos humanos no Brasil e no exterior.

O poder político do Itamaraty pode significar tanto uma maior integração com resistência ao governo. Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim exemplificou uma integração maior entre o Itamaraty e o governo. Sob a liderança de Amorim, o MRE atuou em consonância com as diretrizes políticas do governo Lula, promovendo uma política externa ativa e diversificada que buscava fortalecer a posição do Brasil no cenário internacional (Faria and Paradis 2013; Lopes 2013).

Por outro lado, durante o governo de Jair Bolsonaro, observou-se uma certa resistência do Itamaraty às diretrizes governamentais. A condução da política externa por Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores durante grande parte do governo Bolsonaro, foi marcada por controvérsias e alinhamentos ideológicos que não necessariamente refletiam o tradicional pragmatismo do Itamaraty. Essa divergência evidenciou uma tensão entre o corpo diplomático e a liderança política, com muitos diplomatas demonstrando descontentamento com a direção tomada pelo Ministério sob a administração de Bolsonaro (Casarões 2020; Casarões and Farias 2021; Chade 2022).

Conclusão

O Itamaraty tem desempenhado um papel crucial na formulação da política externa brasileira, beneficiado por sua autonomia institucional. No entanto, é essencial distinguir essa autonomia do insulamento burocrático, a fim de evitar equívocos que podem prejudicar a compreensão das dinâmicas internas do Ministério. A autonomia do Itamaraty deve ser vista como um meio de fortalecer sua capacidade política e não como uma barreira que o separa das influências governamentais e sociais. Essa distinção é fundamental para uma análise crítica e aprofundada da política externa brasileira.

A compreensão das dinâmicas internas do Itamaraty, incluindo a distinção entre autonomia e insulamento burocrático, é crucial para avaliar o papel do Ministério na formulação da política externa brasileira. Enquanto a autonomia fortalece a capacidade do MRE de formular políticas coerentes e duradouras, o insulamento pode levar a uma desconexão com as demandas sociais e políticas. Portanto, é necessário um exame crítico dessas dinâmicas para promover uma análise mais abrangente e precisa da política externa brasileira.

Referências

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Sobre o Autor

Felipe Estre: Professor substituto, Instituto de Economia e Relações Internacionais, Universidade Federal de Uberlândia.

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