Brasil-ASEAN: a estratégia do Sudeste Asiático na emergência da Ásia-Oriental
Paulo Antônio Pereira Pinto
Rio de Janeiro, em 12/12/2022
O Brasil adquiriu o status de Parceiro de Diálogo Setorial da ASEAN em agosto deste ano, conforme revelado, em dezembro corrente, no Seminário “O Brasil e a ASEAN”, que contou, no Itamaraty, segundo noticiado, com diversas autoridades, “incluindo delegação de alto nível do Camboja, presidente pro tempore da ASEAN, e embaixadores dos países da Associação”.
No momento, contudo, os países do Sudeste Asiático parecem se identificar mais com um novo conceito: o de Ásia Oriental. As preocupações regionais, então, estariam voltadas para a formação de um megabloco, com a criação do maior tratado comercial do mundo, que envolve a China e outros 14 países da região Ásia-Pacífico, deixa de fora os Estados Unidos e abarca uma área onde vivem mais de 2,2 bilhões de pessoas.
O tratado RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente, em sua sigla em inglês) abrangerá um terço da atividade comercial do planeta, e os signatários esperam que sua criação ajude os países a saírem mais rápido da turbulência imposta pela pandemia da corona vírus. Além dos dez membros da Asean, o tratado inclui China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
“O peso econômico e a centralidade geopolítica do sudeste asiático não escapam à nossa política externa. O Brasil deseja aproximar-se ainda mais da ASEAN e compreende os benefícios que esse processo pode proporcionar a ambos os lados”, destacou o ministro de Relações Exteriores do Brasil.
No encontro, o Chanceler anunciou que o Brasil pretende abrir uma representação diplomática permanente em Jacarta, na Indonésia, onde se encontra a sede da ASEAN, para facilitar a interlocução junto ao bloco asiático.
Assuntos relativos à China e ao papel do Sudeste Asiático, na emergência da Ásia Oriental, têm sido analisados, em sucessivos artigos, neste espaço, a partir de meados de 2020. A proposta destes exercícios de reflexão obedeceu mais à vivência do autor nas áreas de influência chinesa, do que em pesquisas acadêmicas, também citadas.
Registro, a propósito, que servi na Embaixada do Brasil em Pequim, entre 1982 e 85. Após breve exercício da subchefia da Divisão de Ásia do Itamaraty (DAOC-I), como responsável por assuntos políticos com a RPC, iniciei périplo por Embaixadas no Sudeste Asiático, entre 1986 e 1995, sucessivamente na Malásia, Singapura e Filipinas. Durante estes anos, mantive contatos com centros de estudos estratégicos em Manila, Kuala Lumpur, Singapura, Jacarta, Pequim e Hong Kong, na preparação de missão acadêmica, que coordenei, em 1994, e visitou Singapura, Pequim e Hong Kong. Efetuei missões transitórias de quatro meses em Pequim, em 1993; em Xangai, por quatro meses, em 1994; e em Jacarta, pelo mesmo período, em 1995. Entre 1995 e 1998, servi na Secretaria de Assuntos Estratégicos, da Presidência da República, participando de equipe que se dedicava à formulação de “cenários futuros” para a política externa brasileira. Chefiei o Escritório Comercial em Taipé, entre 1998 e 2006.
Entre primeiro e 25 de março de 1994, autorizado pelo então Chanceler Celso Amorim realizei périplo por capitais do Sudeste Asiático, Pequim e Hong Kong, por proposta minha e patrocínio do Itamaraty. Durante este percurso, efetuei visitas precursoras de missão acadêmica brasileira -também proposta e coordenada por mim — que foi realizada ainda naquele ano, e mantive contatos, com: o “Institute of Strategic and Development Studies”, das Filipinas (país onde servia naquele momento); o “Institute for Security and International Studies”, da Tailândia; o “Institute of Strategic and International Studies”, da Malásia; o “Singapore Institute of International Affairs”; e o “Center for Strategic and International Studies” , da Indonésia. Desloquei-me, também, a Pequim, para diálogo com o “China Institute for Contemporary International Relations”, e a Hong Kong, para interlocução com Universidade daquela ilha, que ainda era de ocupação britânica.
O objetivo do esforço de estabelecimento de vínculos com estas instituições visava a criar mecanismos de articulação, entre centros de estudos estratégicos no Brasil e os situados naquela parte do mundo.
As origens e o propósito inicial da ASEAN
O presente artigo pretende, inicialmente, reiterar o papel da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) na emergência da Ásia-Oriental. Ressalto que, desde sua fundação, o agrupamento de países ao Sul da RPC serviu, como foro para a acomodação de problemas entre seus integrantes.
Em seguida, legitimou-se como patamar superior para a articulação de posições regionais no relacionamento com a China.
Em textos anteriores publicados em Mundorama, efetuei reflexões quanto à evolução histórica que permitiu à China prevalecer em sua inserção internacional no entorno que lhe é mais próximo. As áreas analisadas foram o Sudeste Asiático e a Ásia Central.
Isto porque a maior parte da China é desprovida de litoral, o que levou o país, a partir dos anos de 1500, a voltar-se muito mais para a terra do que ao oceano. O Século XXI está sendo direcionado, por Pequim, para os oceanos.
Assim, iniciou-se série de análises com menções à criação de vínculos culturais entre a China e o Sudeste Asiático, no século XV. Em seguida, foram feitas referências à expansão comercial europeia e suas consequências políticas na Ásia. Lembrou-se a influência dos ideais revolucionários da RPC, a partir de 1949, ao Sul de suas fronteiras. Foram analisadas as origens da ASEAN e, posteriormente, sua interação com a diplomacia chinesa.
Finalmente, chegou-se ao momento presente, quando a China tem alardeado — mesmo diante de dúvidas expressas por alguns observadores e vizinhos — que sua condição atual de potência emergente deve ser entendida como uma nova fase histórica, marcada por “ascensão pacífica” do país, destinada a beneficiar seu entorno imediato e relações com o exterior.
Nesse contexto, pretendeu-se, por um lado, examinar o crescente compromisso de Pequim com as nações ao Sul de suas fronteiras, que representariam o agrupamento regional onde aconteceu, prioritariamente, esta “ascensão chinesa”.
Por outro, foi analisado o papel de força motora e de fonte de inspiração que a ASEAN[1] vem desempenhando nesse processo que, na prática, representaria o ressurgimento da cooperação, entre o antigo “Império Chinês” e o Sudeste Asiático, de forma a proporcionar a “ascensão pacífica” não apenas chinesa, mas da Ásia Oriental.
Na década de 1960, consolidou-se a ASEAN, que permitia aos países de economia de mercado no Sudeste Asiático identificarem-se politicamente como a “vitrine do capitalismo” naquela parte do mundo.
Nesse contexto, foi fundada em 8 de agosto de 1967, através da Declaração de Bangkok, a Associação das Nações do Sudeste Asiático. Este foi o terceiro agrupamento a ser formado no Sudeste Asiático, após a Segunda Guerra Mundial, sem ter caráter de aliança militar. Teve como predecessora a Associação do Sudeste Asiático, constituída em 31 e julho de 1961, pela Tailândia, Malaya e Filipinas, que não sobreviveu mais do que três anos, por causa de disputa entre Kuala Lumpur e Manila, pela região de Sabah. Paralelamente, Malaya, Filipinas e Indonésia reuniram-se sob a denominação de MAPHELINDO, a partir de bases étnicas, predominantemente malaias, em detrimento dos habitantes de origem chinesa e indiana. Devido ao componente racial, que preocupava as demais nações da área, pouco igualmente durou.
Quando de sua fundação, a ASEAN (inicialmente composta por Malásia, Singapura, Filipinas, Tailândia e Indonésia) foi entendida como a expressão de países que pretendiam apresentar-se ao Ocidente industrializado como área dedicada aos propósitos de uma economia de mercado, em oposição ao que era entendido, então, como “expansionismo socialista” naquela parte do mundo. Além de não se situarem em região diretamente inserida na fronteira ideológica dos Estados Unidos da América — como acontecia com a Coréia do Sul, Taiwan e o então Vietnam do Sul — Indonésia, Malásia, Filipinas, Singapura e Tailândia não desejavam, tampouco, aparecer como promotoras de bloco militar semelhante à SEATO[2].
Tudo o que pretendiam, em nível de sua inserção nas relações internacionais, era salientar, perante o conturbado panorama político regional da época, sua vocação capitalista e reivindicar, portanto, o apoio da superpotência de igual sistema.
A reação inicial chinesa, com respeito à formação da ASEAN, foi de condenação, como aliança de “lacaios dos norte-americanos, formada a pretexto de cooperar economicamente, mas, na verdade, tratando-se de agrupamento militar dirigido especificamente contra a China”.
A explicação para tal atitude de Pequim é encontrada no fato de que, então no auge da guerra do Vietnam, os EUA utilizavam-se de bases aéreas na Tailândia e Filipinas, para atacar objetivos no território vietnamita.
O enfoque chinês começou a mudar, contudo, a partir do estabelecimento de nova linha política da ASEAN, decidida durante sua Reunião Extraordinária de Ministros dos Negócios Estrangeiros, na capital da Malásia, em novembro de 1971. A chamada “Declaração de Kuala Lumpur”, visava à criação de uma Zona de Paz, Liberdade e Neutralidade no Sudeste Asiático (em sua sigla inglesa ZOPFAN).
“Paz e Neutralidade” vinham ao encontro do interesse chinês, no sentido de constituir oposição ao aumento da presença, tanto dos EUA, quanto da URSS naquela parte do mundo. Assim, a RPC chegou a enviar mensagem congratulatória pela formação da ZOPFAN, com ênfase em sua determinação quanto ao estabelecimento de área de “neutralidade”.
Com o término da Guerra do Vietnam, em 1975, melhorou o diálogo entre a China e a Associação. Assim, dois anos após, Pequim chegou mesmo a expressar seu apoio à iniciativa que estabeleceu vínculos especiais entre a ASEAN e os EUA, Japão, CEE, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Coréia do Sul.
Existe consenso de que o processo de abertura da China para o exterior teve início em 1978, quando os dirigentes em Pequim reconheceram a falência do modelo econômico centralmente planificado que o país vinha adotando.
Com o término da Guerra Fria, na década de 1990, criaram-se condições para o ressurgimento de uma antiga moldura político-cultural, que historicamente regularam a convivência entre as nações do Sudeste Asiático com a China.
Sobre o assunto, defendi tese — transcrita no livro “A China e o Sudeste Asiático”[3]- segundo a qual haveria, durante as quatro últimas décadas, esforço de Pequim, no sentido de proporcionar nova coincidência entre a antiga interação política e econômica do Império do Centro com as nações ao Sul, com os mecanismos atuais de integração entre a RPC e os países do Sudeste Asiático.
Em 1976, as transformações revolucionárias ocorridas na Indochina levaram à Primeira Reunião de Cúpula da ASEAN, em Bali, Indonésia. Na ocasião, os Chefes de Estado e Governo consagraram a ideia de cooperação política em documento intitulado “Declaration of Concord”, que incorporava, em parte, as ideias da ZOPFAN.
Com o decorrer dos anos, o conceito da ZOPFAN evoluiu de uma “fórmula” para ação, no sentido da “descrição” de situação de equilíbrio de poder, em que, apesar da inevitável inserção do Sudeste Asiático nos objetivos estratégicos globais de Washington e Moscou, os países da área não seriam afetados pela competição por esferas de influência, então em curso entre os EUA e a URSS.
Tratava-se, portanto, mais de um ideal a ser constantemente perseguido do que de uma meta a ser conquistada em prazo definido.
Autores como Donald E. Weatherbee, em estudo intitulado “The Diplomacy of Stalemate”, afirmam que a proposta de uma Zona de Paz, Liberdade e Prosperidade teria origem direta na doutrina de “national resilience”. Isto é, derivava da necessidade dos países da ASEAN desenvolverem, tanto individual, quanto coletivamente, sua capacidade de mobilizar todos os recursos disponíveis com o objetivo de garantir sua segurança interna e externa.
Avanço foi obtido, no campo institucional, com a decisão quanto ao estabelecimento de um Secretariado Permanente, em Jacarta. Ainda como resultado deste “Summit”, foi também acordado o Tratado de Amizade e Cooperação, que pretendia servir de incentivo para trazer o Vietnã, então reunificado, para o convívio pacífico junto aos demais países do Sudeste Asiático.
Com a invasão do Camboja pelas tropas vietnamitas, em 1978, a ASEAN passou a defrontar-se com a questão que viria praticamente a justificá-la, politicamente, perante o resto do mundo. Lembra-se, a propósito, que, também neste período, a Ásia Pacífico vinha crescendo em notabilidade, em função do progresso acelerado do Japão e dos chamados Tigres Asiáticos.
A questão cambojana veio, então, a demonstrar o poder de interlocução da Associação, como um agrupamento regional em condições de apresentar posições em comum perante a comunidade internacional. Isto é, até que o Vietnam retirasse suas tropas do Camboja, em 1991, a ASEAN dedicava ênfase prioritária à pressão para que se chegasse a esta conclusão.
O principal a ser notado, de qualquer forma, é que, conforme já mencionado acima, a Associação das Nações do Sudeste Asiático, desde sua fundação, serviu muito mais como foro para a acomodação de problemas entre seus integrantes e como patamar superior para a apresentação de posições regionais — principalmente à oposição da ocupação militar do Camboja pelo Vietnam — do que como organização destinada a promover a integração e cooperação econômica.
Em muitos aspectos, as realizações da Associação na área econômica podem ser comparadas inversamente com o obtido no campo político. Por um lado, a proposta política sempre subentendida não foi sequer registrada na declaração que a fundou, mas tem sido sempre sua principal preocupação. Por outro, os reiterados anúncios referentes ao campo econômico tiveram pouca aplicação prática.
Em seu livro “ASEAN into the 1990s”, Srikanta Chatterjee[4] afirma que “the economic importance of the association could be said to derive more from the rapid growth and development performance of some of its member’s economies than the collective strength and cohesion of the association itself”.
Nesta perspectiva, verifica-se que, durante período que poderia ser considerado como a primeira fase do agrupamento regional, até 1976, os aspectos referentes à cooperação e integração foram praticamente ignorados, diante da ênfase colocada nas acomodações políticas e iniciativas diplomáticas conjuntas.
Naquele ano, com a “Declaration of ASEAN Concord”, já referida anteriormente, efetuou-se esforço significativo no sentido do incremento das relações econômicas, na medida em que, pela primeira vez, foi criada a moldura no âmbito da qual a cooperação e integração poderiam ser implementadas.
A ideia força para tal empreendimento era a mesma que permitira o bom diálogo político entre os membros, isto é, o perigo então representado pelo avanço comunista na península indochinesa. A melhor forma para os países membros da Associação protegerem-se contra a ameaça do fortalecimento dos movimentos internos de insurgência, inspirados pela vitória de Hanói, seria a promoção acelerada do desenvolvimento econômico.
A segurança regional no Sudeste Asiático na década de 1990
No que diz respeito à segurança regional na década de 1990, a extinção da União Soviética e o término da bipolaridade imposta pela Guerra Fria exerceram impacto profundo e sem precedentes no Sudeste Asiático. A região passou a experimentar dinâmica própria, com ajustamentos nas relações entre os países da área, bem como entre estes e potências externas.
No quadro mais amplo das relações entre a China e o Sudeste Asiático, notou-se que, com a falência do quadro internacional de confrontação Leste-Oeste, prevalecente desde o término da Segunda Grande Guerra, surgiram diferenças de percepções entre Pequim e as capitais aseanistas, quanto a ameaças — antigas e novas — à segurança e estabilidade regional.
Isto porque, durante a fase de bipolaridade mundial, tratava-se, principalmente, de conter o perigo do expansionismo de uma das superpotências, dependendo da opção ideológica que cada capital houvesse feito. Para tanto, criara-se, entre os aliados do Ocidente, toda uma bem-sucedida aliança contra Moscou, enquanto se fortaleceram os vínculos entre a então União Soviética e sua área de influência.
A partir do colapso da URSS, deixou de existir uma das fontes tradicionais de ameaça. O que restou do comunismo, desde então, não mais seria uma linha divisória, separando inimigos. Um pragmatismo saudável, voltado para o intercâmbio econômico e desvinculado de considerações ideológicas, passou a prevalecer nas relações internacionais. Rússia, China e Vietnã estabeleceram vínculos diplomáticos com a Coréia do Sul, enquanto a RPC e a Indonésia reestabeleceram os seus. Os EUA e o Vietnã trocaram Embaixadores.
O mesmo aparato de segurança estabelecido na Ásia-Pacífico, durante a Guerra Fria, no entanto, permanecia instalado. Este se mostrava inadequado para eliminar focos de instabilidade, que emergiam como prioritários e demandavam novas modalidades de cooperação para solucioná-los.
Os vínculos entre a China e o Sudeste Asiático, na década de 1990 — como foi analisado em artigos anteriores — tinham origens históricas, que levavam alguns países a acreditarem que Pequim julgaria ter direito a influenciar os acontecimentos em sua antiga área de hegemonia cultural e dependência política.
Este temor fora reforçado, particularmente, pelo fato de que, após a consolidação da RPC, em 1949, e com ênfase especial na década da Revolução Cultural, Pequim ter procurado exportar seu sistema ideológico, através de apoio a movimentos de insurgência de inspiração comunista e base étnica chinesa, em diferentes países do Sudeste Asiático.
Nesta perspectiva, a partir do término da Guerra Fria, o ponto de confrontação entre a China e o Sudeste Asiático passou a ser o Mar do Sul da China, onde se encontram, ainda, em disputa ilhas denominadas Paracels, Pratas, Macclesfiels Band e Spratlys. Além da RPC, reivindicam soberania sobre o arquipélago Vietnã, Malásia, Filipinas, Taiwan e Brunei.
Nas capitais aseanistas, havia intenso debate sobre as intenções chinesas quanto ao referido mar meridional. A versão histórica então corrente era a de que se tratava de determinação de Pequim no sentido de demonstrar, na questão das ilhas em disputa, a mesma intransigência exibida no que diz respeito à incorporação de Hong Kong e Taiwan. Isto é, tratar-se-ia de demarcação final do território da China, através da eliminação de qualquer vestígio da ocupação das potências ocidentais, iniciada no século passado.
Outros setores de opinião identificavam apenas o desejo da China de participar da exploração dos recursos energéticos, cuja existência vinha sendo amplamente divulgada.
Fator especial de irritação para as demais partes interessadas dizia respeito à proposta chinesa de apenas discutir a exploração conjunta da referida riqueza, sem colocar em questão a soberania sobre as ilhas.
Com o término da Guerra Fria, na década de 1990, criaram-se novas condições para o ressurgimento de uma antiga moldura político-cultural, que historicamente regularam a convivência entre as nações do Sudeste Asiático com a China.
Observadores da América do Norte, contudo, apontavam, a partir de então, a China como um fator futuro de instabilidade regional, disposta a preencher um vácuo político, resultante do término da confrontação bipolar vigente no período da Guerra Fria. O grande objetivo chinês no plano internacional, nessa perspectiva, seria o de compactuar com a disciplina que os países ocidentais vêm procurando impor ao mundo, desde a metade do século XIX.
Tratar-se-ia “apenas de manter e adquirir territórios, definir e assegurar o círculo da própria soberania e a ordem pública no interior desse círculo, se necessário pela força das armas”.
No mesmo período, no entanto, ideias geradas em centros acadêmicos chineses formulavam e divulgavam com ênfase novo discurso alternativo às teorias de “power politics”, com suas fórmulas de dominação dos fracos pelos fortes, bem como defendiam a tese de que, com sua ascensão econômica e política, a Ásia pudesse resgatar alguns dos enunciados de seus “cinco princípios de coexistência pacífica” ou dos “dez princípios de Bandung”, apresentados na década de 1950, segundo os quais é concedida ênfase à criação de “um mundo pluralístico onde todos os países seriam colocados em nível de igualdade”.
Com esse objetivo, justificavam-se os esforços feitos no sentido do estabelecimento de novas estruturas de segurança regional, que promovessem medidas de criação de confiança mútua e segurança na Ásia-Pacífico, proporcionando relaxamento de tensões e promovendo o controle de esforços armamentistas. Grande parte dessas conquistas foram obtidas, com a participação da RPC, no âmbito de reuniões pós-ministeriais da Associação das Nações do Sudeste Asiático, a partir de 1994, no que se convencionou chamar de “ASEAN Regional Forum”, que congregava, anualmente, os dirigentes das diplomacias dos dez integrantes da associação, Singapura, Malásia, Indonésia, Filipinas, Tailândia, Brunei, Laos, Camboja e Vietnã, de seus parceiros de diálogo, Estados Unidos, Canadá, União Europeia, Japão, Coréia do Sul, Austrália e Nova Zelândia e de observadores, Rússia, China, Mongólia e Papua Nova Guiné.
Em 1989, a Ásia Oriental e a América do Norte formularam o conceito de “Ásia-Pacífico”, que seria consolidado pela APEC[5], incluindo a Oceania e países da América do Sul banhados pelo mesmo oceano.
Assim, com o término da Guerra Fria, criou-se o consenso de que a Bacia do Pacífico, incluindo suas vertentes asiática e norte-americana, forneceria os mecanismos de sustentação políticos, militares e econômicos para que a Ásia pudesse competir com agrupamentos regionais em formação na América do Norte e Europa Ocidental.
Novos paradigmas de integração entre a China e o Sudeste Asiático
Na perspectiva do parágrafo acima, o novo milênio iniciou-se, na Ásia Oriental, com transformações paradigmáticas nas relações entre a China e o Sudeste Asiático. Nesse sentido, as dimensões de segurança, econômica e política foram profundamente afetadas por uma herança cultural comum, de origem chinesa.
Em parte, devido à determinação dos Estados Unidos de agir unilateralmente e pelo emprego da força militar, após os atentados de 11.09.2001, a Ásia Oriental passou a valorizar agenda de segurança própria, com ênfase em acordos intrarregionais, principalmente decorrente de entendimentos entre a China e a ASEAN.
Assim, em 19 de agosto de 2003, em Wuyishan, província chinesa de Fujian, a RPC agregou sua assinatura ao Tratado de Amizade e Cooperação, que já incluía os dez países do Sudeste Asiático, integrantes daquela Associação.
Daí resultou uma série de propostas e formações de agrupamentos regionais, que seria impossível detalhar, sem tornar ainda mais longo este artigo.
O importante é notar que durante os últimos anos, a China lançou as fundações para um novo relacionamento com as nações do Sudeste Asiático[6]. Vem sendo fortalecida, assim, a vertente da cooperação no âmbito da Ásia Oriental, na medida em que se concede menor ênfase aos vínculos entre as margens asiática e norte-americana do oceano Pacífico.
A RPC tem participado ativamente de mecanismos institucionais inovadores na Ásia oriental, bem como patrocinado novas alianças na Ásia Central, como o “ASEAN Regional Forum”, o “Shanghai Cooperation Organization”[7] e o “Boao Forum”[8] .
Pequim tem reiterado o discurso de que toda esta evolução acontecerá pacificamente e em sintonia com a maior inserção do país na Ásia Oriental, que se beneficiará, como um todo, a exemplo do acontecido, no século XIV, quando o já citado Alm. Zheng He difundia a cultura chinesa junto às nações da “Nanyang” — conforme os chineses se referiam ao Sudeste Asiático.
No momento — conforme já assinalado acima — os asiáticos parecem se identificar mais com um novo conceito de Ásia Oriental. Foi assim oficializada, por conferência virtual, em novembro de 2020, a criação do maior tratado comercial do mundo, que envolve a China e outros 14 países da região da Ásia-Pacífico, deixa de fora os Estados Unidos e abarca uma área onde vivem mais de 2,2 bilhões de pessoas.
O tratado RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente), conforme já mencionado, agrupará um terço da atividade comercial do planeta, e os signatários esperam que sua criação ajude os países a sair mais rapidamente da turbulência imposta pela pandemia da corona vírus.
Além dos dez membros da Asean, o tratado inclui China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Observadores especializados como o Prof. Mahbubani Kishore, de Singapura, opinam que chineses, japoneses e coreanos jamais conseguiriam aderir a um mesmo agrupamento econômico, sem a mediação dos países do Sudeste Asiático.
O mundo acostumou-se, a propósito, a que anúncios recentes relativos à formação de grandes projetos de integração, na Ásia-Pacífico e seu entorno, sejam feitos pelo e associados ao Presidente Xi Jinping, da República Popular da China.
A declaração do Primeiro-Ministro do Vietnã, Nguyen Xuan Phuc, em 15 de novembro de 2020, contraria esta rotina. Naquela data — segundo noticiado — o líder vietnamita afirmou, na condição de “país anfitrião” de cúpula online, que “Tenho o prazer de dizer que, após oito anos de trabalho duro, a partir de hoje, concluímos oficialmente as negociações da RCEP para a assinatura”.
Segundo Phuc, a conclusão das negociações da RCEP envia uma mensagem forte ao mundo, ao “reafirmar o papel de liderança da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) em defesa do multilateralismo.” “O acordo apoia o sistema comercial multilateral, criando uma nova estrutura na região, permitindo a facilitação do comércio sustentável, revitalizando as cadeias de abastecimento interrompidas pela covid-19 e ajudando na recuperação pós-pandêmica”.
A formalização do RCEP coloca o exercício de reflexão sobre o relacionamento entre a Ásia Oriental e a América do Norte. Refiro-me à realização de acordo nos moldes do “Acordo de Associação Trans Pacífico (mais conhecido pela sigla inglesa TPP), ao qual o ex-Presidente Donald Trump recusou a adesão dos EUA, logo após tomar posse.
Reforço o caráter de excepcionalidade de o anúncio da formalização da RCEP ter sido feito em capital de um membro da ASEAN e, não, em Pequim. Isto porque, conforme procurei “sumariar”, historicamente a China sempre conferiu papel de subordinação a seus vizinhos no Sudeste Asiático. É intrigante, portanto, que após sucessivos anúncios de esforços de integração entre as duas regiões asiáticas, sempre divulgadas como sendo patrocínio dos chineses, o maior dos projetos, até hoje, tenha sido noticiado como um sucesso, em capital historicamente considerada periférica ao “Império do Centro”.
Cabe especular, portanto, sobre a possibilidade de que a ASEAN seja, também, em processo a seguir, o agente facilitador no diálogo, tanto nas questões de segurança, como nas relativas à integração econômica, quando for o momento de retornar o diálogo entre as duas margens do Pacífico.
Conclusão
Neste exercício de reflexão, mencionou-se que, no século XV, a China desempenhava papel dominante no Sudeste Asiático e servia como fonte de inspiração para a organização política de nações nesta região. Tal esquema foi desestruturado a partir da chegada dos europeus ao continente asiático, no século XIX, e rompido após a Revolução de 1949 e o início da Guerra Fria.
Com o começo do processo de modernização da RPC, na década de 1970, e o término do período de bipolaridade mundial, na de 1990, criaram-se condições para o ressurgimento, no âmbito das relações entre a China e o Sudeste Asiático, de processo de cooperação, que tivesse como base de sustentação um conjunto de valores culturais chineses compartilhados. Novas modalidades regionais de integração foram criadas, em oposição às estruturas de confrontação herdadas da Guerra Fria.
Recentemente, tem-se verificado que experiência histórica regional, em termos de estender ao máximo o fator estabilizador provocado pelos interesses comerciais entre os países do Sudeste Asiático mais os do Nordeste daquele continente, contribuiu para consolidar vínculos entre os mercados dos dez países membros da ASEAN e os da China, Japão e Coréia do Sul. A estes, juntaram-se a Austrália e a Nova Zelândia, culminando na fundação da RCEP anunciada pelo Primeiro-Ministro vietnamita Nguyen Xuan Phuc, conforme mencionado acima.
Este protagonismo de um líder do Sudeste Asiático parece reforçar a noção de que a “ascensão pacífica chinesa” dependeria, também, da capacidade de a ASEAN continuar a ser um foro de agregação, para a acomodação de problemas entre seus integrantes e como patamar superior para a apresentação de posições regionais, permitindo a aproximação de interesses convergentes de mais de meio bilhão de habitantes daqueles países e de mais de 1,4 bilhões da China. Esse processo incluiria uma multiplicidade de interações de caráter político, militar, social e cultural.
Reitero que é digno de nota o fato de que, no que diz respeito ao anúncio da RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente) –citada acima — a Associação das Nações do Sudeste Asiático, desde sua fundação, serviu muito mais como foro de negociação política, do que como promotora do comércio ou integração econômica. Isto é, as recentes iniciativas de Pequim, referentes a “cinturões e rotas”, incluíram países da antiga “Nanyang” como beneficiários, mas, não, protagonistas.
Assim, o objetivo ideal a ser atingido, naquela parte do mundo, desde as “grandes navegações” do Alm. Zheng He, seria o de que todas as nações, cada uma com sua forma de governança e organização de mercado própria, possam se desenvolver, sem submissão a hegemonia política ou econômica de vizinho com poder econômico e militar superior.
A futura representação brasileira, junto à sede da ASEAN, em Jacarta, poderá desenvolver estratégia para o relacionamento com o Sudeste Asiático e o RCEP, bem como facilitar a identificação de novas oportunidades de parcerias.
Caberá, então o mapeamento das vantagens competitivas daquela vasta área geográfica, tendo em vista as facilidades de interlocução, por exemplo, em setores comerciais (Singapura), defesa de florestas tropicais (Indonésia), cooperação na área agrícola (Malásia e Tailândia), e cultural (Filipinas, tendo vista a herança cultural ibérica).
O objetivo principal poderá ser o de acompanhar tendências a serem conduzidas pela ASEAN, em direção a novo multilateralismo mundial.
Notas
[1] A Associação das Nações do Sudeste Asiático, em sua sigla inglesa ASEAN, inclui hoje Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Tailândia e Vietnam. Consta que o Timor-Leste será, em breve, admitido como membro.
[2] A “Southeast Asia Treaty Organization”(SEATO) foi fundada, em 1954, logo após a retirada da França do Sudeste Asiático. Com o objetivo de conter “a expansão comunista naquela região e foi integrada pelos Estados Unidos, Austrália, França, Grã-Bretanha, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas e Tailândia”. Com sede em Bangkok, a Organização teve como principal objetivo legitimar a presença militar dos EUA no Vietnam, apesar da oposição francesa e paquistanesa. Foi extinta em 1977.
[3] Vide “A China e o Sudeste Asiático”, por Paulo Antônio Pereira Pinto, Editora da Universidade — UFRGS. 2000.
[4] Kuala Lumpur. B.C. Institute of Writers. 1987. Pag. 5.
[5] A APEC (Foro para a Cooperação Econômica na Ásia-Pacífico) foi fundada em novembro de 1989, na Austrália, e apresentada por seus patrocinadores como um processo em direção a um consenso na Bacia do Pacífico, com vistas à edificação de política econômica que assegurasse o crescimento sustentado da região.
[6] Vide artigo de Kuik Cheng-Ghwee “Multilaralism in China’s ASEAN Policy: Its Evolution, Characteristics, and Aspirations” em “Contemporary Southeast Asia, 27, nr 1, 2005, pag. 102-
[7] A respeito da Organização para a Cooperação de Xangai, vide www.sectsco.org.
[8] A respeito do “Boao Forum for Asia”, vide www.boao.ce.cn/english.
Sobre o autor
Paulo Antônio Pereira Pinto: Embaixador aposentado.