China — Rússia: parceria em “um mundo de desordem sob os céus”

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11 min readApr 4

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Paulo Antônio Pereira Pinto

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A “parceria sem limites”, recentemente estabelecida entre Rússia e China, seguida por visita de Xi Jinping a Putin, coloca Moscou — segundo a visão de alguns — como “junior partner” de Pequim, em eventual ordenamento mundial que venha a ter as duas capitais como atores relevantes.

Este exercício de reflexão, ao reiterar argumentos já apresentados, visa a lembrar passado recente, durante o qual ocorreu cisma sino-soviético, que permite duvidar de “ausência de limites” para parceria atual.

Isto é, entre 1982 e 1985 — período em que servi na capital chinesa — o cenário internacional era bipolar, com centros de poder em Washington e Moscou. Segundo classificação adotada no Ocidente, o planeta era dividido em “Três Mundos”: os países industrializados de economia de mercado eram incluídos no Primeiro Mundo; os de sistema econômico centralmente planificado participavam do Segundo; e os em desenvolvimento eram despachados para o Terceiro.

Durante a fase maoísta, no entanto, os chineses tinham uma visão própria do globo terrestre. Este estaria dividido em duas partes antagônicas — a metade que apoiava o bloco soviético e a outra que se opunha, incluindo a China. A política externa da RPC seguia esta rigidez, baseada no pressuposto de que qualquer coisa, que pudesse prejudicar os interesses de Moscou, seria favorável a Pequim.

Sob a nova liderança de Deng Xiaoping, com a adoção de mudanças na política interna, tornou-se mais pragmática também a postura chinesa no plano externo. Este “último grande timoneiro do século XX” — como se referem a ele alguns historiadores — defendera, a respeito, teoria própria quanto à existência de “Três Mundos”[1].

Em discurso pronunciado na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10.04.1974, Deng, então Vice Primeiro-Ministro da RPC, elaborara sobre o conceito, afirmando que: “No momento, a situação internacional é mais favorável aos países em desenvolvimento e aos povos do mundo. Mais e mais, a velha ordem sustentada pelo colonialismo, imperialismo e hegemonismo está sendo destruída e abalada em suas fundações. Relações internacionais estão mudando drasticamente. O mundo todo está em estado de turbulência e inquietação. A situação é a de “grande desordem sob o céu” como a descrevemos, nós os chineses. A “desordem” é a manifestação do agravamento das contradições básicas do mundo contemporâneo. É a aceleração da desintegração, declínio e decadência de forças reacionárias e o estímulo do despertar e crescimento de novas forças populares”.

Segundo Deng, naquela situação de “grande desordem sob o céu”, todas as forças políticas do mundo sofreram divisões drásticas e realinhamento através de prolongados testes de força e conflitos. Grandes números de países asiáticos, africanos e latino-americanos conseguiram a independência, sucessivamente, e estavam desempenhando papel cada vez mais importante em assuntos internacionais. Como resultado da emergência do “sócio imperialismo” (que delícia de termo para descrever a hegemonia soviética sobre seus “satélites”), o campo socialista, que existia após a Segunda Guerra Mundial, não mais perduraria, no momento de seu discurso.

O “último grande timoneiro” afirmava, ainda, que devido à lei do “desenvolvimento desigual do capitalismo”, o bloco imperialista ocidental, também, estava se desintegrando. “A julgar pelas alterações nas relações internacionais, o mundo atual consiste em três partes, ou três mundos, que são tanto interconectados, quanto contraditórios. Os Estados Unidos e a União Soviética formam o Primeiro Mundo. Os países em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina integram o Terceiro Mundo. Os desenvolvidos — sejam os do mundo capitalista ou do socialista — formam o Segundo Mundo” esclarecia.

De acordo com seu ponto de vista “as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, procuram, em vão, conquistar a hegemonia mundial. Cada uma busca, ao seu estilo, trazer os países do Terceiro Mundo a sua esfera de influência, assim como aqueles que, mesmo desenvolvidos, não são capazes de se opor aos desígnios de Washington e Moscou”.

Verificava-se, nessa perspectiva, que, enquanto a liderança chinesa alterava seu discurso para justificar as mudanças no plano interno, nova retórica era aplicada, também, no patamar externo. Pequim, explicaria, a partir de termos inovadores, sua inserção no cenário internacional.

Não caberia mais um mundo dividido em duas partes — “a URSS sócio imperialista de um lado, e o resto do mundo, incluindo a RPC, no outro”. Era mais conveniente pensar naquela outra divisão, que colocaria a China, com suas práticas modernizantes internas, liderando um Terceiro Mundo, contra a hegemonia de Washington e Moscou.

Assim, para justificar o projeto de modernização no plano interno, nova tipologia era aplicada no patamar externo. Pequim assim buscava explicar, a partir da cunhagem de novos conteúdos para os três mundos, sua inserção no cenário internacional.

Em outras palavras, não mais caberia um mundo dividido em duas partes — “a URSS sócio imperialista de um lado, e o resto do mundo, incluindo a RPC, no outro”. Era mais conveniente pensar a partir daquela outra divisão, que colocava a China, com suas práticas modernizantes internas, liderando um Terceiro Mundo em oposição à hegemonia de Washington e Moscou.

Cabe lembrar, a propósito, as razões da ruptura entre Pequim e Moscou na década de 1960. O cisma já existiria, de acordo com estudiosos do assunto, desde a década de 1930. Segundo consta, o Partido Comunista da União Soviética desejara controlar o Partido Comunista Chinês, numa variante do exercício que fazia com partidos comunistas de outros países.

Durante o período da Guerra Fria, os dirigentes soviéticos persistiram nesses esforços. Entre as preocupações russas estava o desenvolvimento da bomba atômica chinesa.

De acordo com especialistas no assunto, as relações bilaterais foram realmente prejudicadas na década de 1960, quando Nikita Khushchev iniciou o processo de “desestalinização” da URSS, bem como a aproximação da União Soviética com o Ocidente. Isso porque, segundo a visão de Pequim, avanços tecnológicos como o lançamento do primeiro “Sputnik” em 1957 indicavam o fortalecimento do mundo socialista. De acordo com o linguajar da época, “o vento que vem do Leste prevalece sobre o que vem do Oeste”. Nesse contexto, seria importante para Mao que houvesse maior militância contra a parte ocidental do planeta, não o contrário, como estariam indicando as ações de Moscou.

Pequim demonstrara paciência com Moscou, na medida em que dependia do auxílio da URSS para levar avante a transição do país para o socialismo. Entre 1958–1960, no entanto, foram desencadeadas na China as desastrosas políticas do “Grande Salto Para Adiante” e os conselheiros russos se retiraram, numa demonstração do profundo descontentamento de Moscou com as reformas propostas pelos chineses.

Em suma, o cisma sino-soviético ocorreu “em nível ideológico, militar e econômico” pelas mesmas razões: para a liderança chinesa a conquista da autossuficiência e da independência era prioritária, em comparação com os benefícios a serem recebidos dos russos, os chineses na condição de parceiros menores.

Lembra-se que Mao fizera a revolução para livrar a China de mais de um século de domínio estrangeiro. Caso aceitasse a submissão à URSS estaria negando sua própria conquista. Na década de 1960, agravaram-se as divergências. A China decidiu reabrir disputas fronteiriças, questões acertadas com a Rússia Imperial. Após malsucedidas negociações, em 1964 a União Soviética iniciou processo de fortalecimento dos exércitos nas áreas mais próximas da RPC.

As relações entre os dois países permaneceram tensas, tanto que em 1969 chegou-se a pensar que a guerra entre ambos os países seria inevitável. Pequim e Moscou passavam de estado de hostilidade à ameaça de confrontação. O “fator soviético”, portanto, passara a ocupar lugar dominante no pensamento maoísta quanto à forma de adequadamente inserir o país no sistema internacional.

No que diz respeito a sua inserção internacional, em retrospectiva, pode-se defender haver sido melhor para os chineses terem se afastado dos russos. Caso contrário, possivelmente o país teria seguido o modelo soviético, transformando-se em potência fortemente industrializada e militarizada. Tornar-se-ia, num cenário-limite, em mais um membro do Pacto de Varsóvia, condenado a seguir o caminho da falência da URSS ao término da Guerra Fria.

Possivelmente, na vigência desse cenário não teriam ocorrido na China as reformas voltadas para a construção da “economia socialista de mercado”, hoje tão bem-sucedidas.

As relações da RPC com países vizinhos ao sul

Em meados da década de 1986, Deng visitou Tailândia, Malásia e Singapura, enquanto repetia as denúncias contra os “esforços de dominação” da URSS, em direção ao Sudeste Asiático, com o auxílio de seu aliado vietnamita.

A China se esforçava para denunciar “as manobras do esforço soviético de dominação ideológica”. Daí — conforme se procurou explicar acima — Pequim reafirmava sua tese dos “Três Mundos”: o primeiro, dividido pelos EUA e URSS, que constituiriam ameaça à paz mundial; o segundo, incluindo os países industrializados do Ocidente e o Japão; e o terceiro, que seguiria a liderança da China.

Notava-se, contudo, que tal rigidez doutrinária tornava-se, gradativamente, menos convincente, na medida em que Deng passou a favorecer as relações entre Pequim e Washington. A visão chinesa da “desordem sob os céus” passava a refletir uma bipolaridade entre os Estados Unidos e a União Soviética. Isto é, ao se incluir como simpática a Washington — “nós” contra Moscou.

Os dirigentes da RPC persistiam nos jargões ideológicos, aplicando terminologias marxistas aos líderes da URSS — que passaram a ser denunciados como “revisionistas” e agentes do “imperialismo soviético”.

Aos poucos, contudo, a “retórica comunista” deixou de ser utilizada, para definir “diferenças ideológicas”. Doravante, Moscou seria a sucessora de ambições “tzaristas”, em busca da “hegemonia sobre a Ásia”. O vocabulário ideológico tornava-se irrelevante, substituído por acusações de “dominação territorial”.

A inovação da narrativa chinesa sobre o que acontecia na Ásia passou, então, a contaminar outros países da região. Como se sabe, algumas nações, que se tornaram independentes na década de 1960, adotaram “princípios socialistas”, inspiradas pela própria China.

Nessa perspectiva, países que se emanciparam de potências coloniais, no período pós-guerra mundial, haviam adotado “normas igualitárias de organização social e formas de governo centralmente planificadas”. Teorias anunciadas por Pequim ensinavam que “rebelar-se é justificável”, assim como as explicações apresentadas para a pobreza das antigas colônias, em termos de exploração de seus recursos naturais e mão de obra barata, serviam como inspiração para a luta contra as metrópoles europeias.

Daí a adoção, pelos novos países independentes, de políticas de expropriação de empresas estrangeiras, a nacionalização de setores vitais da economia e a “divisão da riqueza nacional entre a maioria da população explorada pelo Capitalismo”.

Nas décadas seguintes, contudo, essas nações testemunharam sucessivas derrotas do sistema socialista, no sentido de promover reformas para alcançar a industrialização e o desenvolvimento. Eram exemplos: a permanência da estagnação na República Popular da China; o desastre econômico provocado por políticas socialistas na Indonésia de Sukarno; na Birmânia de Ne Win; e na Coreia do Norte de Kim Il Sung. Começava-se a pensar menos em ideologia e mais em medidas pragmáticas, para alcançar o progresso e manter no poder os governos vitoriosos na luta pela independência.

Ademais, o conceito de “internacionalismo socialista” fora fatalmente atingido pelo cisma sino-soviético da década de 1960 e enterrado em fevereiro de 1979, quando a China lançou seus exércitos através das fronteiras com o Vietnam, com o objetivo de “ensinar uma lição” a seu pequeno vizinho recalcitrante.

A reivindicação chinesa de liderança pacífica sobre o “Terceiro Mundo” se diluiu, como consequência de seu ataque contra um país que, havia pouco tempo, tinha enfrentado a maior potência militar mundial e derrotado o “imperialismo norte-americano”.

Enquanto isso, a China, na década de 1980, continuava a encorajar, no Camboja as provocações de Pol Pot contra o Vietnam. Tal esforço a favor do regime cambojano monstruoso então no poder erodia ainda mais o prestígio de Pequim nas demais capitais do Sudeste Asiático, já assustadas com a guerra dos chineses contra os vietnamitas.

A propósito, lembro que — enquanto servia em Pequim, entre 1982 e 1985 –, considerava-se que a RPC nada faria para contribuir para a queda do genocida Pol Plot, com o objetivo de “bleed Vietnam white” (ensanguentar o Vietnam até sua retirada do Camboja).

Era possível concluir, nessa perspectiva, que a ruptura do “mundo socialista” na Ásia Oriental deveria ser atribuída a conflitos entre “nacionalismos”. As disputas entre ideologias políticas ou econômicas ficariam em segundo plano.

Doravante, ficava entendido, a China procuraria “abrir um novo caminho de interação entre países, ditado por diálogos em vez de confrontos, por parcerias em vez de alianças”.

O objetivo perseguido pelos chineses, naquela parte do mundo seria o de que todas as nações, cada uma com sua forma de governança e organização de mercado própria, pudessem compartilhar de progresso, sem submissão a hegemonia política ou econômica de vizinho com poder econômico e militar superior.

Atualizando a narrativa, chega-se, hoje, à nova liderança de Xi Jinping sob a qual a China evoluiria para proposta de “comunidade com um futuro compartilhado”. “Nesse cenário, todos os países e povos têm perspectivas estreitamente interligadas e interdependentes”.

“Best friends forever”

Em 4 de fevereiro de 2022, foi assinado, na capital chinesa, o “Comunicado Conjunto da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais em direção a Nova Era e da Sustentabilidade Global do Desenvolvimento”. Surgiu a esperança de que, pelo menos naquela parte do mundo, pudesse se consolidar, em favor da paz e prosperidade, a “amizade eterna entre Putin e Xi Jinping”.

Foi, então, acordado que “ambas as partes estão procurando avançar em seu trabalho de vincular os planos para o desenvolvimento da União Econômica Eurasiana, patrocinada por Moscou e a Iniciativa do Cinturão e Rota das Sedas, de Pequim, com vistas a intensificar a cooperação prática entre os projetos russos e chineses de forma a promover maior integração entre a Ásia-Pacífico e a Eurásia”.

A “operação militar especial” russa em território ucrânio, no entanto, não tem permitido a melhor definição de tais vínculos…

Ao contrário da diplomacia ocidental, contudo, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia têm condenado e punido Moscou pela invasão à Ucrânia, a China não somente reforça a retórica de apoio à Rússia, como propõe uma reformulação da ordem internacional — sem que a ONU seja considerada como o foro para tais discussões.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, já se referiu ao conflito no Leste da Europa como uma guerra entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos EUA, e a Rússia, além de exaltar o elo entre Pequim e Moscou.

“Uma importante lição do sucesso das relações entre China e Rússia é que os dois lados se mostram superiores ao modelo da aliança política e militar da era da Guerra Fria, e se comprometem a desenvolver um novo modelo de relações internacionais baseado na não-aliança, na não-confrontação e em não visar terceiros países. Isso é fundamentalmente diferente da mentalidade da Guerra Fria”, declarou Zhao.

Reitera-se que o passado recente de inimizades, conforme lembrado acima, lança dúvidas quanto à possibilidade de “parceria sem limites” entre a Rússia e a China, na medida em que um dos países seja considerado “parceiro menor”.

Cabe desejar, no entanto, que “lição de sucesso” a ser oferecida pelo eventual estreitamento das relações entre Moscou e Pequim, não venha a resultar em novos “hegemonismos”.

Isto é, que eventual ordenamento internacional, com participação decisiva de parceria sino-russa, não seja ditado por formas de governança que visem a impor que a segurança e a economia prevaleçam sobre os direitos políticos e civis.

Esta seria uma nova e indesejável “ordem sob o céu”.

Notas

[1] Chi Hsin. “Teng Hsiao-Ping, a Political Biography”. Cosmos Books. Ltd. 1978.

Sobre o autor

Paulo Antônio Pereira Pinto: Embaixador aposentado.

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