Com fontes primárias, obra de Simon sobre ação brasileira no golpe do Chile presta valiosa contribuição para teoria de promoção autoritária
Vitor Sion
Resumo: O trabalho de Roberto Simon sobre a participação brasileira no golpe que derrubou Salvador Allende da Presidência do Chile representa uma série de avanços na literatura sobre a política externa do regime militar. Nesta resenha, busca-se apresentar a contribuição do autor para o desenvolvimento da teoria de promoção autoritária.
A aguardada obra “O Brasil contra a Democracia”, de Roberto Simon, sobre a participação brasileira no golpe de setembro de 1973, no Chile, precisa ser analisada sob duas perspectivas principais: a do grande público e a acadêmica.
Ao publicar seu livro em uma das maiores editoras do país, Simon permite que sua análise chegue a um grande número de pessoas. Ainda que a quantidade de leitores não seja o melhor termômetro para avaliar um trabalho, tal fato adquire significado distinto no Brasil de 2021. Ao fomentar o debate sobre o regime militar em um país que não tem o costume de olhar o seu passado, Simon presta grande contribuição e se junta a outros autores que fizeram esforços semelhantes nos últimos anos, como Elio Gaspari (2003), Marcos Napolitano (2015), Lília Schwarcz e Heloísa Starling (2015).
Para o grande público, a obra parece ter cumprido seu papel. Ainda mais rara do que a publicação de livros sobre o regime militar brasileiro é o acesso a uma pesquisa tão extensa como a de Simon. Para o leitor comum, é um privilégio ter acesso a um esforço investigativo de sete anos, com a coleta de documentos históricos nos arquivos mais importantes de Brasil, Estados Unidos e Chile e a realização de dezenas de entrevistas de história oral com alguns dos atores políticos envolvidos neste processo. A leitura não deixa dúvidas de que o autor é um profundo conhecedor do tema estudado e que o trabalho conseguiu ser palatável para qualquer leitor, independente do seu conhecimento sobre a América do Sul nos anos 1970.
Ao escrever seu trabalho pensando no grande público, porém, Simon perde um pouco do rigor acadêmico. Um dos principais problemas é não diferenciar a origem e a precisão de cada uma das fontes primárias. Uma entrevista de história oral feita ao autor, uma notícia de jornal da época e um memorando da CIA (Central Intelligence Agency, na sigla em inglês) ou do SNI (Serviço Nacional de Informações) carregam pesos e graus de evidências diferentes para recontarmos esses episódios históricos. Em vários momentos do livro o autor não especifica tal diferenciação crucial. Com isso, para os pares que buscam no livro uma fonte confiável para citações acadêmicas, muitas vezes é decepcionante a leitura das notas de rodapé.
Ainda assim, o livro de Simon oferece contribuições relevantes para as áreas de História, Ciência Política e Relações Internacionais, uma vez que o autor se propõe a contar “uma nova história sobre a ação do Brasil na América do Sul dos anos 1970” (p.16).
Ao tentar detalhar a participação do regime militar brasileiro no processo de desestabilização de um governo estrangeiro, o autor dialoga com uma literatura em expansão nas áreas de Relações Internacionais e Ciência Política. Inspirados em estudos sobre democratização, uma nova leva de acadêmicos desenvolveu os conceitos de difusão e promoção autoritárias. A difusão é um processo em que a ocorrência de um evento político em determinado local aumenta a possibilidade que ele também ocorra em outro país (Miller et al. 2016). O aumento dessa probabilidade, porém, ocorre por meio de uma “interdependência descoordenada” (Elkins and Simmons 2005), sem o envolvimento de terceiros países. No caso da América do Sul dos anos 1960 e 1970, a difusão autoritária ocorreria com o regime militar brasileiro servindo como exemplo para os demais países.
O conceito de promoção autoritária, por sua vez, se diferencia por envolver o componente da intencionalidade de um regime exportar práticas autoritárias a outros (Tansey, 2016; Weyland, 2017; Bader et al. 2010). É exatamente este o caso do Chile de 1973, de acordo com o livro de Simon, cujo argumento é que o governo brasileiro, comandado por Emílio Garrastazu Médici, esteve “envolvido ativamente para derrubar Allende e facilitar a ascensão de um governo à semelhança da ditadura brasileira” (p.15).
O arcabouço teórico sobre o autoritarismo foi desenvolvido pensando na conjuntura atual, sendo que, visando o aperfeiçoamento dos conceitos, indicava-se a necessidade de analisar casos antigos, que dispusessem de documentação primária (Bank, 2017; Way, 2015). Ou seja, o trabalho de Simon tem os elementos necessários para contribuir com o desenvolvimento dessa literatura.
Ainda que Simon não cite os autores desse referencial teórico, ele acaba por seguir parte das diretrizes indicadas por essa bibliografia. Uma delas é a separação do processo de desestabilização em três momentos, que seriam as fases da intervenção brasileira e são as três partes do livro: 1) o regime militar brasileiro minando a presidência de Allende desde a sua vitória eleitoral até os primeiros meses de seu governo; 2) a conspiração nos momentos imediatamente anteriores ao golpe de Estado; 3) a consolidação do novo regime. Tal divisão ajuda a compreensão sobre o tipo de intervenção brasileira no episódio.
Outro aspecto fundamental do marco teórico, também analisado no livro, é a motivação de Médici para interferir na política interna de outro país. De acordo com o argumento da obra, ao ser eleito, Allende tinha o objetivo de estabelecer as melhores relações com o regime brasileiro. No entanto, a ação de dois atores centrais na relação bilateral teria fomentado a desconfiança em Brasília: o chanceler Mário Gibson Barbosa e o então embaixador em Santiago, Antonio Câmara Canto. Segundo Simon, os dois diplomatas brasileiros enviavam informes enviesados à cúpula do regime militar sobre o Chile de forma sistemática. Com isso, a suposta ameaça chilena ganhava contornos fora da realidade.
Além de Gibson Barbosa e Câmara Canto, o livro ainda cita outras fontes que também geraram desinformação sobre o governo chileno, com a origem sendo o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica) e de agentes infiltrados entre a comunidade de brasileiros exilados.
O fato de Simon referendar o seu argumento, que questiona a qualidade das informações chegadas à cúpula do regime, com fontes primárias produzidas em múltiplas origens nos leva a algumas perguntas. Pela quantidade de arquivos analisados pelo autor, não haveria documentos que indicassem uma interpretação divergente, explicitando, dentro do governo brasileiro, a suposta boa vontade de Allende na relação bilateral? Caso realmente se identificasse uma unanimidade entre as fontes primárias, isso não poderia significar a possível existência de uma ordem superior para a desinformação?
A apresentação de documentos que representassem nuances sobre essas perguntas poderia deixar o argumento do livro ainda mais refinado. Independente das respostas a esses questionamentos, porém, a motivação do governo Médici para tentar derrubar Allende ia além dos relatos colhidos pelas agências de informação. Dois outros pontos são levantados por Simon.
O primeiro deles diz respeito às preocupações geopolíticas do regime. Segundo o autor, o governo Médici teria a intenção de exportar o modelo brasileiro para outros países da região. Essa caraterística de um governo autoritário também está prevista no referencial teórico apresentado nesta resenha. O regime brasileiro, neste caso, poderia ser considerado um AGC (Authoritarian Gravity Centre, ou AGC, na sigla em inglês). Esse conceito pode ser empregado quando um regime autocrático tem a disposição e a capacidade para disseminar ideias, normas, valores e técnicas autocráticas e/ou que constituem um modelo para outros países na sua proximidade geopolítica. Tais AGCs estariam interessados em estabelecer um esquema de cooperação regional em sua estratégia de política externa, a fim de criar, primeiro, um ambiente de autocracias afins que garantam a estabilidade de seu próprio regime, e, em segundo lugar, identidade de regime regional para legitimar seu próprio regime, satisfazendo reivindicações de legitimidade doméstica, bem como aquelas em sua região (Kneuer et al. 2018).
Outra motivação abordada por Simon diz respeito à ameaça que seria representada por opositores do regime que estavam exilados no Chile. O livro, porém, questiona a veracidade do argumento de que haveria centenas de asilados brasileiros no Chile se preparando para invasão comunista contra regime militar. De acordo com Simon, os brasileiros mais extremistas eram orientados por Santiago a deixar o país. A história dos brasileiros que se exilaram durante o regime militar ainda está aberta a novas interpretações. Nos últimos anos, o Ministério das Relações Exteriores desclassificou milhares de documentos produzidos pelo CIEX (Centro de Informações do Exterior), que detalham a vida dos exilados fora do Brasil e permitem uma avaliação minuciosa da trajetória de centenas de pessoas.
Há outros aspectos abordados por Simon que representam avenidas de pesquisa futura para os pesquisadores da área. Uma delas diz respeito aos interesses da iniciativa privada em uma mudança de regime. Autores que analisam intervenções norte-americanas no contexto da Guerra Fria já se atentaram para a importância desse fato, destacando que, ao afastar supostas ameaças comunistas, Washington também garantia um ambiente favorável às empresas norte-americanas na região (Schoultz, 1998; Grandin, 2006). O próprio Simon cita a relação turbulenta do governo Allende com empresas norte-americanas, como a Kennecott e a Anaconda. No caso do regime militar brasileiro, porém, ainda há escassez de pesquisas sobre a influência do empresariado no processo de tomada de decisão em política externa. Ao argumentar que a mudança de regime no Chile também se tratava de um negócio, visando, por exemplo, a venda de armas nacionais para o país andino, Simon expõe a necessidade de se aprofundar esse tema.
Outra importante avenida de pesquisa pode ser encontrada no Capítulo 8, em que Simon menciona outros casos de mudança de regime em países sul-americanos durante o governo Médici, principalmente na Bolívia e no Uruguai. O estudo desses dois casos, fazendo uso da literatura de promoção autoritária e também do referencial teórico de O’Rourke (2018), poderá avançar ainda mais na interpretação vigente sobre a política externa do regime militar.
Por fim, vale reiterar a importância do trabalho com fontes primárias desenvolvido por Simon. Uma das grandes contribuições do seu trabalho é o uso de documentação chilena, avançando em relação à maioria da literatura, que usa apenas acervos norte-americanos, lacuna que já havia sido apontada anteriormente (Harmer, 2012).
Um aspecto fascinante do uso de fontes primárias é a possibilidade de novos documentos desclassificados enfraquecerem uma hipótese de trabalho, criando possibilidades que não haviam sido pensadas. Com isso, o autor consegue se contrapor a versões dominantes na literatura até aqui. Em seu livro, Simon descontrói ao menos duas versões comuns sobre o papel do Brasil no golpe contra Allende: de que Médici estava a serviço de Washington e que a intervenção seria fruto de excessos cometidos por radicais do regime.
Sobre a relação Brasil-Estados Unidos, o autor indica que, até o momento, “não há sinais objetivos de que tenha havido uma operação conjunta e articulada entre Estados Unidos e Brasil para derrubar Allende” (p.22). Já a tomada de decisão pela interferência no Chile teria ocorrido como política de Estado, com cadeia de comando, argumento semelhante ao relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre a violação de direitos humanos no país durante o regime militar.
Apesar de o Brasil ter retornado à democracia há mais de 35 anos, o trabalho de Simon mostra que a sociedade brasileira ainda tem muito o que aprender sobre este período. Que este livro seja seguido por muitos outros similares para que nunca nos esqueçamos da história e que ela não se repita.
Referências
Bader, Julia, Jörn Grävingholt, Antje Kästner. “Would autocracies promote autocracy? A political economy perspective on regime-type export in regional neighbourhoods”. Contemporary Politics, 2010.
Bank, André. “The study of authoritarian diffusion and cooperation: comparative lessons on interests versus ideology, nowadays and in history”. Democratization, 2017.
Elkins, Zachary, Beth Simmons. “On Waves, Clusters, and Diffusion: A Conceptual Framework”. Annals of the American of Political and Social Science. 2005.
Gaspari, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Grandin, Greg. Empire’s Workshop: Latin America, the United States, and the Rise of the New Imperialism. Nova York: Holt Paperbacks, 2006.
Harmer, Tanya. “Brazil’s Cold War in the Southern Cone, 1970–1975”, Cold War History, 2012.
Kneuer, Marianne, Thomas Demmenlhuber, Raphael Peresson, Tobias Zumbragel. “Playing the regional card: why and how authoritarian gravity centres exploit regional organisations”. Third World Quaterly, 2018.
Miller, Michael, Michael Joseph, Dorothy Ohl. “Are Coups Really Contagious? An Extreme Bounds Analysis of Political Diffusion”. Journal of Conflict Resolution. 2016.
Napolitano, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2015.
O’Rourke, Lindsey A. Covert Regime Change: America’s Secret Cold War. Nova York: Cornell University Press, 2018
Schwarcz, Lília; Heloísa Starling. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Schoultz, Lars. Beneath the United States: A History of U.S. Policy toward Latin America. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
Simon, Roberto. O Brasil contra a Democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
Tansey, Oisín. “The problem with autocracy promotion”, Democratization 23, no 1, 2016.
Way, Lucan A. “The limits of autocracy promotion: The case of Russia in the ‘near abroad’”. European Journal of Political Research. V.54, p.691–706, 2015.
Weyland, Kurt. “Autocratic diffusion and cooperation: the impact of interests vs. ideology”. Democratization, 2017.
Sobre o autor
Vitor Sion: Jornalista com MBA pela University of Liverpool. É mestre e doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP). Foi editor dos portais Opera Mundi e InfoartSP e repórter da Folha de S. Paulo. É autor de 3 livros, um sobre o regime militar e dois sobre o Santos Futebol Clube. Atuou por cinco anos como pesquisador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV).