Cooperação regional como caminho para a memória e proteção dos direitos humanos

Editoria Mundorama
Mundorama
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5 min readSep 6, 2024

Clarissa Dri e Juliana Viggiano

Photo by Isabela Kronemberger on Unsplash

Em 11 de setembro de 2023, no dia dos 50 anos do golpe de Estado no Chile, Lula declarou: “é dia de reafirmarmos a democracia como valor essencial para os seres humanos, sem ela desaparece aquilo que nos faz humanos” (Carta Capital, 2023). Em 1 de abril de 2024, no dia dos 60 anos do golpe de Estado no Brasil, o presidente brasileiro silenciou e pediu que ministérios cancelassem atos de memória já agendados. Em agosto de 2024, em visita ao Chile, novamente o discurso de Lula traz o repúdio à ditadura: “Nossos ideais convergem na defesa intransigente da democracia. Por isso, tive a satisfação de convidar o presidente Boric para a reunião de líderes democráticos contra o extremismo que Pedro Sánchez e eu organizaremos em Nova York, no contexto da Assembleia Geral da ONU. […] Hoje, enquanto o presidente Boric me guiava pelo Salão Democracia e Memória e me apresentava a gravação do último discurso de Salvador Allende, lamentei que o Brasil tenha em sua história a triste mácula de ter apoiado a ditadura chilena. Sabemos que a arbitrariedade é inimiga do bem-estar e que a democracia não se sustenta sem um Estado que garanta direitos” (Silva, 2024).

Nessa visita, Brasil e Chile assinaram 19 atos bilaterais, entre eles o memorando de entendimento acordado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e o Ministério da Justiça e Direitos Humanos chileno, um ano antes. O documento tem a finalidade de estabelecer um mecanismo de diálogo bilateral para parceria em questões de memória e verdade, entre outros temas de direitos humanos. O memorando estabelece as seguintes áreas de cooperação mútua:

“a. Políticas, planos, programas e projetos destinados a promover os direitos das famílias de pessoas desaparecidas;

b. Intercâmbio de boas práticas na busca de vítimas de desaparecimento forçado, especialmente à luz do Plano Nacional de Busca de Verdade e Justiça do Chile;

c. Intercâmbio de documentação sobre os fatos violentos no contexto das ditaduras.” (Brasil e Chile, 2024)

O Plano Nacional de Busca de Verdade e Justiça do Chile é um marco na justiça de transição na América Latina. Assinado em 2023, estabelece recursos orçamentários e institucionais permanentes para o estabelecimento da verdade sobre os mais de mil desaparecimentos durante o governo Pinochet ainda não esclarecidos, além de reparação às famílias e responsabilidades penais de agentes do Estado (Chile, 2023).

Em todos os países da região, a transição para a democracia não é um caminho linear ou evolutivo, mas sim um percurso com altos e baixos, avanços e revezes, dependente de circunstâncias políticas e perfis democráticos nos poderes judiciários nacionais. No Brasil, pode-se identificar três fases principais:

1. 1971–2000: Anistia oficial contestada (ou o Estado contra a anistia)

2. 2001–2015: Verdade e memória nas iniciativas estatais (ou justiça afastada/resistida)

3. 2016–2022: Desestruturação dos mecanismos de transição

A primeira fase é protagonizada pelas famílias de presos políticos e pessoas exiladas, mortas ou desaparecidas. Com apoio da Igreja Católica, são reorganizadas manifestações de repúdio ao regime militar e iniciam as primeiras buscas privadas por restos mortais, bem como ações educativas em escolas. Após o fim do regime militar, é oficializada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, garantindo registros de óbito e indenizações. Essa fase é marcada pela Lei de Anistia de 1979, que perdoa agentes de Estado que cometeram crimes, como homicídio e lesões corporais, considerados crimes imprescritíveis de lesa-humanidade pelo direito internacional, quando cometidos pelo Estado contra um grupo específico. A segunda fase inicia-se ao fim do governo Fernando Henrique Cardoso, com a instalação da Comissão de Anistia, que concede reconhecimento e reparação financeira a anistiados políticos que foram impedidos de exercer suas atividades ou que perderam cargos em decorrência da edição de atos do governo. A partir de 2009, o Projeto Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, constitui uma base de dados destinada à obtenção, catalogação e disponibilização de documentos sobre a repressão. Na terceira fase, a partir de 2016, esses avanços são interrompidos pelo retorno do autoritarismo político que paralisa os trabalhos da Comissão de Anistia e modifica a política arquivística, permitindo a eliminação sumária de documentos antes de passar pelo crivo do Arquivo Nacional.

Um mês antes da visita ao Chile, e com a demora de um ano e meio após o início de seu mandato, Lula cumpriu promessa de campanha e recriou a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, instituída em 1995 e extinta em 2022. Com ela, serão retomados os trabalhos de busca e identificação das pessoas mortas e desaparecidas pelo Estado no regime militar. Recentemente, o Ministério dos Direitos Humanos também anunciou parceria com a prefeitura de Petrópolis para transformar em museu de memória a antiga Casa da Morte. Seria 2024 o marco de uma nova e promissora etapa no processo brasileiro de transição à democracia? A chancela e proteção da vizinhança latino-americana e demais órgãos internacionais comprometidos com os valores democráticos pode ser decisiva nesse processo. A democracia jamais é um bem garantido, mas um conceito em permanente disputa e construção. Os mecanismos regionais e internacionais de garantia das liberdades e direitos cívicos são fundamentais nessa trajetória.

Referências

Brasil e Chile (2024). MEMORANDO DE ENTENDIMENTO ENTRE O MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS DA REPÚBLICA DO CHILE SOBRE COOPERAÇÃO EM QUESTÕES DE MEMÓRIA E VERDADE, DIREITOS DAS PESSOAS LGBTQIA+, DAS PESSOAS IDOSAS E DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, Santiago, 5 agosto 2024.

Carta Capital (2023). ‘Dia de reafirmarmos a democracia’, diz Lula sobre os 50 anos do golpe no Chile. Carta Capital, 11 setembro 2023. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/politica/dia-de-reafirmarmos-a-democracia-diz-lula-sobre-os-50-anos-do-golpe-no-chile/

Chile (2023). Plan Nacional de Búsqueda Verdad y Justicia. Disponível em https://www.gob.cl/noticias/plan-nacional-busqueda-verdad-justicia-victimas-detenidos-desaparecidos-dictadura-decreto-presidente-boric/

Luís Inácio Lula da Silva (2024). Declaração à imprensa do presidente por ocasião da visita de Estado ao Chile, em 5 de agosto de 2024. Disponível em https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2024/declaracao-a-imprensa-do-presidente-lula-por-ocasiao-da-visita-de-estado-ao-chile

Sobre as Autoras

Clarissa Dri: Doutora em Ciência Política, professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do Instituto Memória e Direitos Humanos.

Juliana Viggiano: Doutora em Ciência Política, professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do Instituto Memória e Direitos Humanos.

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