Dinâmicas de influência e conflito em tempos de instabilidade: relação França — CEDEAO e as ações no Níger

Editoria Mundorama
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8 min readJul 8, 2024

Ana Flávia Pires de Moraes e Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama

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Resumo: O estudo analisa as relações França-CEDEAO na África Ocidental, destacando o papel estratégico do Níger para a França. Ademais, examina a intervenção da CEDEAO após o golpe de 2023 e sua eficácia na promoção da segurança regional, abordando também os interesses econômicos e antiterroristas franceses.

Nos termos do pós-colonialismo e do movimento pan-africanista, as lutas africanas pela independência que ocorreram nas décadas de 1960 e 1970, deixaram um impacto duradouro nas relações contemporâneas entre os países africanos independentes e suas antigas potências colonizadoras europeias. Assim, as experiências coloniais e as trajetórias históricas particulares de cada país acabaram moldando a forma como os países africanos se envolvem com seus antigos colonizadores, variando de uma busca por parcerias construtivas a um questionamento crítico das relações históricas.

Ao analisar detalhadamente, concernente aos conflitos intraestatais, é notável que a maioria desses eventos ocorreu em ex-colônias francesas, como Mali, Burkina Faso, Níger e, mais recentemente, no Gabão. Esses acontecimentos refletem um sentimento de rejeição à postura de Paris e ao Ocidente, alimentando a discussão sobre as relações desses países com suas antigas potências coloniais (YAZBEK, 2023).

Diante do exposto, este texto avalia a presença francesa na região da África Ocidental a partir do golpe de Estado ocorrido no Níger em 2023, especificamente, visto que o caso movimentou não só a França e a União Europeia, mas também a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO).

Com o golpe de Estado no Níger em 26 de julho de 2023, uma “virada chave” na geopolítica da região ocorreu. O Níger havia se tornado um aliado crucial para as potências ocidentais, particularmente para a França, representando seu último aliado na região do Sahel. O país emergiu como epicentro das operações antijihadistas francesas na região após ser expulsa do Mali e de Burkina Faso. No entanto, os golpes de estado nas ex-colônias francesas contribuíram para uma retórica antiocidental e antifrancesa (OPEB, 2023). Com o golpe no Níger, os franceses se viram confrontados com a decadência de sua influência na região.

Ademais, o Níger é um ponto estratégico para a França devido aos recursos naturais. A região é um dos principais produtores de urânio do mundo, e esse recurso é crucial para a indústria nuclear e energética francesa. Além da França, essa riqueza mineral tem despertado o interesse de outras potências, como os Estados Unidos, que investiram cerca de 500 milhões de dólares desde 2012 para fortalecer a capacidade de segurança do Níger (FAN, 2023). Além disso, em abril do mesmo ano, a Alemanha anunciou planos para intensificar sua cooperação militar com o Níger, mantendo alguns de seus militares em Niamey, capital do Níger, como instrutores e consultores (DW, 2023). Essa participação crescente de outras potências na região está diretamente relacionada à questão energética e ao controle de recursos estratégicos como o urânio.

É relevante destacar que a influência francesa significativa no Níger acontece também no âmbito da segurança, como é evidenciado por uma presença militar substancial em Niamey e áreas afetadas pelo terrorismo jihadista, que conta com mais de mil soldados. Além do mais, a França colabora com outras ex-colônias na região, como demonstrado pelo acordo de cooperação técnica militar em vigor desde 1977 entre França e Níger (LAGNEAU, 2023). No entanto, nos últimos anos, essas cooperações não alcançaram os resultados esperados, levantando dúvidas sobre sua eficácia. O golpe de estado no Níger resultou na suspensão dessa colaboração, levando à retirada das tropas francesas de áreas estratégicas. Apesar disso, aproximadamente mil soldados franceses permanecem na África, concentrando-se no Chade, país vizinho (UOL, 2023). Essa série de eventos reflete uma mudança no alinhamento dos países da região em relação aos interesses franceses, indicando uma busca crescente por independência e autonomia em suas relações internacionais.

Por outro lado, é importante mencionar que a relação da França com a CEDEAO tem sido marcada por uma dinâmica complexa ao longo do tempo, fato que impactou no comportamento das instituições diante do golpe. Estabelecida em 1975, a CEDEAO tem o propósito de promover a autossuficiência coletiva entre os seus Estados-Membros na manutenção da paz, na estabilidade e segurança regionais, na promoção e no fortalecimento das boas relações de vizinhança. Após o Golpe do Níger, a CEDEAO, além de condenar, buscou restaurar a ordem constitucional arquitetando uma intervenção militar que contou com apoio francês e dos Estados Unidos, mas encontrou resistência por parte da União Africana (UA) bem como de alguns países membros, como o Gana e a Nigéria (KULKARNI, 2023). Como resultado, a CEDEAO optou por impor sanções, incluindo uma zona de exclusão aérea e o congelamento de bens, em uma tentativa de pressionar o Níger a retornar à normalidade política (VOA Português, 2024).

Embora a França tenha favorecido outras organizações regionais alternativas na África francófona, como a Comunidade Econômica dos Estados da África Central (CEEAC) e a União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA), isso não representa um confronto direto com a CEDEAO (MARQUES, 2024). Dessa forma, durante o golpe no Níger, a França apoiou uma intervenção da CEDEAO, demonstrando interesse na estabilidade e desenvolvimento econômico promovidos pela instituição na região. Isso reflete a disposição da França em colaborar com a CEDEAO quando necessário, mantendo seus próprios interesses e alianças com alguns países da região que estão do seu lado. Assim, mesmo com diferenças históricas, a França pode buscar formas de cooperação com a CEDEAO, reconhecendo sua importância para a estabilidade e progresso na África Ocidental.

Após tais ações, Burkina Faso, Mali e Níger declaram sua saída da CEDEAO a partir de um comunicado, assumindo completamente suas responsabilidades históricas e atendendo às expectativas, preocupações e aspirações de suas populações (DW, 2024). Ainda no comunicado, é mencionado que lamentam profundamente e com grande desapontamento perceber que a organização se distanciou dos princípios estabelecidos por seus fundadores e do espírito do pan-africanismo. No entanto, somado a isso, a organização foi considerada notavelmente incapaz de auxiliar esses Estados em sua luta fundamental contra o terrorismo e a insegurança na região (DW, 2024). Esses eventos evidenciam uma crescente instabilidade na região da África Ocidental, onde potências globais se aproveitam das condições locais para promover seus interesses. Os golpes de estado recentes mostram que, quando os países africanos não servem mais aos interesses ocidentais, tornam-se alvos potenciais. O golpe em Níger evidenciou uma mudança nas relações bilaterais com a França vendo seu último aliado na região se distanciar. Isso reflete a priorização dos interesses nacionais africanos sobre os franceses, indicando uma busca por autonomia na tomada de decisões, rompendo com o modelo neocolonial perpetrado pela França.

Além disso, é importante salientar o papel fundamental exercido pela CEDEAO, que, embora limitado no contexto da segurança regional, é uma instituição que emite recomendações e diretrizes, porém, não tem capacidade direta de implementar ações concretas. Tal fato fica evidente quando se olha a década de 1990, quando a questão da segurança ganhou maior destaque na agenda da CEDEAO (CANDÉ, 2023). Nesse sentido, a retirada do Mali, Burkina Faso e Níger levanta dúvidas sobre sua eficácia futura, especialmente após a declaração de que uma intervenção militar seria necessária para restaurar a democracia no Níger. A rápida expressão de apoio da França à CEDEAO pode ser atribuída à importância estratégica do território nigerino para os seus interesses, especialmente no que diz respeito ao urânio, uma vez que grande parte da energia produzida na França provém da exploração desse mineral no Níger pelas empresas francesas. Além disso, a restauração de um governo legitimamente eleito no Níger seria do interesse direto da França, uma vez que o governo militar, não mais representa os interesses ocidentais, mas sim uma nova roupagem pan-africanista mais radical.

Por fim, é crucial mencionar a percepção variável de “democracia” por parte das potências globais. A França, por exemplo, tem sido alvo de críticas por ter reconhecido o governo de Mahamat Idriss Déby Itno, no Chade, que assumiu o poder no lugar do seu pai sem seguir um processo constitucional (UOL, 2023). Esse episódio evidencia uma discrepância notável na abordagem das potências ocidentais em relação à democracia e à ditadura militar. Enquanto as ex-colônias que não mais atendem aos interesses franceses são rotuladas como golpistas, a incoerência é flagrante quando se trata do Chade, onde a manutenção do status quo é aceita quando favorece as grandes potências. Esse duplo padrão coloca em questão a sinceridade das potências globais em promover a democracia e revela uma dinâmica complexa de interesses políticos e econômicos que moldam suas políticas externas. Assim, futuramente, é imperioso reflexões que se atentam sobre a relação da democracia na África e a alimentação dos interesses das potências ocidentais.

Referências

CANDÉ, Iero. Desafios da problemática do terrorismo na África Ocidental de 2000 a 2018: uma avaliação do papel de CEDEAO. São Francisco do Conde, 2023.

CNN Brasil. Entenda o papel de França e Rússia no golpe do Níger. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-o-papel-de-franca-e-russia-no-golpe-do-niger/. Acesso em: 9 mar. 2024.

DW. Burkina Faso, Mali e Níger anunciam saída da CEDEAO. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/burkina-faso-mali-e-níger-anunciam-saída-da-cedeao/a-68107182. Acesso em: 11 mar. 2024.

DW. O que se sabe sobre o golpe militar no Níger. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-que-se-sabe-sobre-o-golpe-militar-no-níger/a-66366779. Acesso em: 11 mar. 2024.

FAN, Ricardo. UE suspende ajuda financeira ao Níger após golpe de Estado. Defesa Net, 2023. Disponível em: https://www.defesanet.com.br/geopolitica/ue-suspende-ajuda-financeira-ao-niger-apos-golpe-de-estado/. Acesso em: 9 mar. 2024.

G1 Globo. Sete golpes de estado em três anos na África: relembre. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/30/sete-golpes-de-estado-em-tres-anos-na-africa-relembre.ghtml. Acesso em: 9 mar. 2024.

G1 Globo. Países da África Ocidental podem realizar intervenção militar no Níger caso diplomacia falhe. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/19/paises-da-africa-ocidental-podem-realizar-intervencao-militar-no-niger-caso-diplomacia-falhe.ghtml. Acesso em: 20 mar. 2024.

Jacobin Brasil. A unidade africana não pode acontecer nos termos da França. Disponível em: https://jacobin.com.br/2024/02/a-unidade-africana-nao-pode-acontecer-nos-termos-da-franca/. Acesso em: 25 mar. 2024.

KULKARNI, Pavan. União Africana não apoiará intervenção da CEDEAO no Níger. Brasil de Fato, 18 ago. 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/08/18/uniao-africana-nao-apoiara-intervencao-da-cedeao-no-niger. Acesso em: 11 jun. 2024.

LAGNEAU, Laurent. Niger : La junte dénonce les accords de coopération en matière de défense et de sécurité conclus avec la France. Zone Militaire,2023. Disponível em: https://www.opex360.com/2023/08/04/niger-la-junte-denonce-les-accords-de-cooperation-en-matiere-de-defense-et-de-securite-conclus-avec-la-france/#google_vignette. Acesso em: 4 mar. 2024.

OPEB. Golpe no Níger e o declínio francês na África Ocidental. Disponível em: https://opeb.org/2023/09/05/golpe-no-niger-e-o-declinio-frances-na-africa-ocidental/. Acesso em: 12 mar. 2024.

UOL Notícias. O Exército francês sofre derrotas. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2023/12/30/exercito-frances-derrotas.htm. Acesso em: 12 mar. 2024.

UOL Notícias. França diz que apenas o governo legítimo do Níger pode romper acordos militares. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2023/08/04/franca-diz-que-apenas-o-governo-legitimo-do-niger-pode-romper-acordos-militares.htm. Acesso em: 12 mar. 2024.

Sobre os Autores

Ana Flávia Pires de Moraes: Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia.

Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama: Professor substituto na Universidade Federal de Uberlândia no curso de Relações Internacionais. Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação “San Tiago Dantas” UNESP-UNICAMP-PUC/SP (2023), Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (2017), Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Ribeirão Preto- UNAERP, (2014) e Especialista em Pedagogia Universitária pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro — UFTM — (2021).

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