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Guerra da Ucrânia: autonomia e popularidade

Virgílio Caixeta Arraes

A datar do encerramento da I Guerra Mundial, novembro de 1918, os Estados Unidos (EUA) acostumaram-se a observar de maneira diferenciada a Rússia, em especial durante seu longevo período de revestimento soviético, por ser momento no qual o planeta depositava esperança de estabilidade e de prosperidade em Washington ou em Moscou.

Com a extinção da rivalidade bipolar, houve o desparecimento da União Soviética (URSS); nem por isso, a Casa Branca deixaria de acompanhar as peripécias do Kremlin, a despeito da redução da influência política: de planetária ao longo de quase meio centenário a bicontinental.

No transcorrer do processo de enfraquecimento do império soviético, os norte-americanos valer-se-iam da debilidade do inimigo para valorizar a obtenção da soberania de nações de distintas composições como a da ucraniana, georgiana, armênia, lituana, estoniana etc.

De início, a conjuntura era favorável à atuação de Washington porque os países nascentes desejavam aproximar-se deles de modo rápido, ao mirar variados tipos de cooperação como a econômica e a técnica para a transição do comunismo ao capitalismo — até Moscou esperava beneficiar-se, não obstante o caminho a sua frente: bilateral ou multilateralmente, por exemplo, com o Fundo Monetário Internacional ou Banco Mundial.

Com a passagem de bastão de Boris Yeltsin para Vladimir Putin em dezembro de 1999, o avizinhamento amero-russo feneceu, devido à frustração dos resultados advindos do relacionamento, uma vez que a Rússia não ia atingir o patamar de desenvolvimento aguardado, ou seja, o do antigo primeiro mundo, apesar de possuir condições apropriadas se cotejada ela com o restante da Europa quanto à capacidade de mão de obra e do estágio tecnológico.

A partir disso, o entusiasmo da conversão à democracia neoliberal seria alterado pela desconfiança em face dos efeitos frustros da adesão russa ao primado político-econômico do Ocidente no alvorecer dos anos noventa ou do ceticismo da retórica ilusória do arco euro-estadunidense quanto ao bem-estar coletivo.

Destarte, a fragmentação territorial ocorrida nos primeiros momentos de emergência da Federação Russa seria trocada pela aspiração da reconfiguração física: a principal medida seria barrar novas aspirações como a da independência da Chechênia no Cáucaso Norte.

A outra, muito mais trabalhosa, seria a incorporação de antigos rincões separados no século passado. Ao invés de iniciar a reconquista pelas soberanias recentes, oriundas da dissolução comunista na década de noventa, haveria a movimentação militar em fevereiro de 2014 com direção a uma região desconectada de Moscou ainda no período soviético pelo mandatário Nikita Kruschev, ao destiná-la à guarda de Kiev em 1954: a Crimeia.

A gentileza inaudita do dirigente concernente à modificação do status derivava de forma oficial de fatores econômicos. Todavia, esta península continuaria russófila na prática, dado que às vésperas do desligamento da Ucrânia da União Soviética em dezembro de 1991 a maioria da população era de ascendência russa.

Oito anos depois, o alvo seria de novo a Ucrânia, ao cobiçar dela por ares e ventos cerca de um quinto do território. Fracassada a investida planejada, se confirmado o intento de não só absorver nacos significativos do país agredido, mas também o de defenestrar o governo encabeçado por Volodymyr Zelensky por substituto de postura russófila.

Posto o quadro advindo da fase inicial da confrontação russo-ucraniana, inesperado pelo Kremlin, a Casa Branca teria a oportunidade de ofertar a Mariyinsky o auxílio bélico maciço para opor-se ao agressor. Em decorrência da situação, os Estados Unidos puderam imiscuir-se de maneira quase direta na fronteira da Rússia, algo inédito desde o final da década de dez do século vinte — época da guerra intestina, tempo no qual vários países mantiveram tropas em solo moscovita com o fito de conter de forma baldada o movimento comunista.

Há dias, a administração russa providenciou troca de comando da denominada operação militar especial — Valeri Gerasimov no lugar de Sergei Surovikin, agora seu adjunto. A substituição representa aposta de alto risco para o presidente Putin, uma vez que este comandante-chefe é o mais afamado general do país, em função de sua visão sobre a atividade bélica contemporânea.

Oficiais costumam desfrutar de bastante prestígio em suas nações, mesmo após a conclusão de conflitos, embora sem carisma pronunciado caso ombreados a estadistas civis. Na I Guerra, Joseph Joffre, depois elevado a marechal de França em 1916, fascinou a população local ao derrotar efetivos germânicos na batalha do Marne, em setembro de 1914.

Da II Guerra, Dwight Eisenhower, um dos cinco granjeados com cinco estrelas, seria cortejado pelos dois maiores partidos ao cabo da confrontação e obteria a presidência da República ao vencer nova disputa, a eleição de 1952. Caminho similar seria o do francês Charles de Gaulle em 1958. Ambos a trilhar a via regular da democracia, não a de aventuras tortuosas à margem da lei.

Hoje em dia, destaca-se na invasão da Rússia um civil, Zelensky, tentado pela diplomacia da Grã-Bretanha a refugiar-se lá e liderar a ocasional resistência. Recusada a oferta, animaria o povo a encarar severa e persistente adversidade de alcance superior às áreas especificas dos combates travados.

Graças ao denodo pessoal do mandatário ucraniano, nações do arco norte-atlântico passariam a conceder mais ajuda bélica aos contingentes ucranianos, de sorte que se mantenha o equilíbrio de poder do sistema internacional, ainda que de modo tênue naquela região.

Do lado oposto, Putin não tem desfrutado de simpatia parecida, nem de demais governos, nem dos meios de comunicação globais, malgrado a proximidade de potências como China e Índia, interessadas não na causa territorial do Kremlin, porém na parceria econômica por causa do abastecimento ininterrupto de petróleo e de gás a preços atrativos.

O destaque do corrente dirigente kievita seria comparado ao de outro, Leonid Kravtchuk, falecido em maio de 2022, responsável maior pelo processo de separação da Ucrânia da Rússia, por meio de referendo popular, após a aprovação do parlamento local em agosto de 1991, e de forma paralela por alcançar o êxito no primeiro pleito presidencial da recém-independente nação em dezembro daquele ano.

Mesmo assim, segmento do eleitorado o observaria como alguém disposto a providenciar concessões a Moscou, conduzida no período por Boris Yeltsin, entusiasta da adesão irrestrita a valores da faixa ocidental.

A diferença da estima pública entre o governante presente e o passado é que Kravtchuk havia cativado no eleitorado a economia como o principal tópico da autodeterminação, ao apresentar o futuro país como o de maior possibilidade de desenvolvimento e de enriquecimento da sociedade na decadente União Soviética, em época em que o número de russos era lá proporcionalmente superior à cifra dos dias atuais. Trinta anos posteriores, este argumento não desencadearia o arrebatamento necessário para a manutenção da independência.

Sobre o autor

Virgílio Caixeta Arraes: graduado, mestre e doutor em história pela Universidade de Brasília e pós-doutor em história pela Université de Montréal (Canadá). Professor Associado da Universidade de Brasília.

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Mundorama é uma publicação do Centro de Estudos Globais da Universidade de Brasília

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