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Guerra da Ucrânia: o fracasso não deve desaguar em mais militarização

Virgílio Caixeta Arraes

Prestes a completar o primeiro ano de enfrentamento entre Rússia e Ucrânia, o mundo assiste à discórdia entre ambos sem possibilidade de entendimento à vista. O Kremlin iniciou o conflito com a expectativa de êxito imediato, ao confiar durante o envio de tropas na deposição do presidente Volodymyr Zelensky e na sua subsequente substituição por mandatário russófilo e, ao mesmo tempo, na incorporação de cerca de um quinto do território do país invadido e na ulterior ‘russificação’ das duas regiões almejadas desde a fragmentação da União Soviética (URSS): Donetsk e Lugansk.

No final de 2022, a movimentação dos contingentes das duas potências se reduziu, ao ter como causa principal a condição climática desfavorável nos campos de batalha: o inverno, o mais afamado ‘combatente’ do leste da Europa, ao contribuir ao longo de inúmeras gerações com a derrota de modo decisivo dos efetivos franceses no início do século dezenove e dos germânicos na década de quarenta do vinte.

No último quarto daquele período, tropas russas ou melhor soviéticas embaraçaram-se em solo afegão, ao desejar auxiliar o agrupamento comunista local — Partido Democrático do Povo do Afeganistão — a fixar-se no poder após golpe de Estado (Revolução de Saur) em abril de 1978 e, destarte, alargar a aliança de esquerda na Ásia Central.

Em decênio de constante remessa de combatentes, a sustentação do moral das forças armadas moscovitas diante das incisivas ações da guerrilha afegane havia-se tornado bastante difícil, malgrado o motivo apresentado aos meios de comunicação:

Se a tenacidade dos batalhadores fundamentalistas, muitos dos quais de procedência estrangeira, ou se o financiamento abundante de potências afluentes como a norte-americana ou a saudita, em nome da defesa da democracia ou da religião.

Sem perspectiva de êxito na Ásia, o desgaste político reverberava de maneira incessante na Europa. Depois de hesitação sobre o destino da guerra, o Kremlin, em fase de transição da velha para a nova guarda, decidir-se-ia retirar já com corrosão similar à da Casa Branca na década anterior com a investida no Vietnã, objeto de filmes memoráveis sobre a ineficiência da decisão de erradicar o comunismo por coerção, não por persuasão.

Ainda que com poderio bélico inquestionável, a recuperação do status dos Estados Unidos (EUA) perante a sociedade internacional ocorreria com o assalto a Granada em outubro de 1983 ao passo que o da Rússia com a Chechênia entre 1999 e 2009.

Nas duas contendas, os adversários escolhidos de Washington e de Moscou não estavam à sua altura quanto à constituição militar em decorrência da reduzida extensão territorial e da diminuta composição das forças armadas.

A maior superpotência se aventuraria mais tarde no Oriente Médio e adjacências três vezes entre 1991 e 2003; de início, sucesso, contudo nas duas investidas posteriores fracassos, a despeito da permanência longa em solo afegão e de novo iraquiano;

A segunda incursionaria na área ucraniana e também na médio-oriental com desempenho avaliado como satisfatório por Moscou. Em função disso, arriscar-se-ia em fevereiro de 2022 a conquistar parte da nação fronteiriça sem até o momento obter o resultado esperado.

Consequência dos ataques fracassados tem sido o maciço apoio do arco otaniano ou antes do amero-britânico. Na prática, a intenção do Kremlin com a agressão teria sido a de interromper a aproximação avaliada como excessiva de Mariyinsky ao Ocidente, ainda que de maneira pública a invocação da justificativa tenha sido a contenção da extrema direita.

No entanto, o resultado do acometimento seria o inverso dos desejos aspirados do governo de Vladimir Putin. Assim, Kiev ambiciona na Europa apresentar-se como o contraponto de Moscou, ou seja, a visualização da democracia na parte leste do continente ao contrário da autocracia.

Por outro lado, o malogro, ao menos temporário, das três forças russas desencadeará outrossim a intensificação de medidas com o propósito de revigorar seu segmento militar e, por conseguinte, ampliar a tensão.

Apesar de não depender de auxílio externo para operar diante de ameaças, a não ser em caso específico como com as aquisições de drones do Irã, o Kremlin poderá ampliar a parcela castrense do orçamento nacional em detrimento das necessidades sociais de sua própria população.

Afinal de contas, o simbolismo das forças armadas é significativo no país, em especial desde a adoção do comunismo em novembro de 1917 — denominado a datar daquela fase de ‘exército do povo’ em oposição à configuração prévia do oficialato de extração aristocrática, bem mais valorizado no Antigo Regime.

Anos antes, assinala-se o impacto dos efeitos adversos da derrota para o Japão em 1905, em face da concorrência por influência na China e na Coreia. Os Estados Unidos iriam mediar a desinteligência entre as duas potências e concertá-las pelo Tratado de Portsmouth em setembro de 1905. O labor diplomático valeria ao presidente Theodore Roosevelt o galardão do Nobel em 1906.

O incremento de gastos diretos — recomposição natural do exército e da marinha — e indiretos — siderurgia, por exemplo — nos anos vindouros teria muita influência no posicionamento bélico da decadente monarquia Romanov no desenlace do alvorecer da I Guerra Mundial de novembro de 1914 por ser a representação do olhar pan-eslavo.

O desentendimento prévio entre Áustria-Hungria e Sérvia ante a disputa de ascendência política da região dos Balcãs, de aproximação com maior comodidade com Moscou ao invés de Viena, Istambul ou Sarajevo, desacorrentaria funestos desdobramentos posteriores na Alemanha e na própria Rússia e depois espraiados no globo.

Embora a medida não fosse original, haja vista a postura da Prússia desde o século dezoito de proceder com o Estado como indutor do desenvolvimento industrial, ao privilegiar o segmento militar e após determinado tempo compartilhar de maneira adaptada a tecnologia ao setor civil, o Kremlin chamaria a atenção de outros países naquela época por causa da ampliação da receita castrense como o destinado à Armada, graças também ao apoio britânico — Vickers, por exemplo.

Pelos modos, não se vislumbra, conforme mencionado nas primeiras linhas, desfecho imediato da grave confrontação desencadeada pela Rússia. Resultado desvantajoso ao governo moscovita proporcionaria condições para nova organização do ministério da Defesa, porém de forma provável para seu robustecimento, e desenlace contrário à administração ucraniana facultaria comportamento similar à de sua inimiga fronteiriça, ao contar com o auxílio otaniano para se estruturar.

Em decorrência do impasse, aguarda o planeta qual lado contendor terá a gentil-homeria de propor e encarar com serenidade firmes negociações de paz.

Sobre o autor

Virgílio Caixeta Arraes: graduado, mestre e doutor em história pela Universidade de Brasília e pós-doutor em história pela Université de Montréal (Canadá). Professor Associado da Universidade de Brasília.

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Mundorama é uma publicação do Centro de Estudos Globais da Universidade de Brasília

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