Integração regional: as negociações entre Brasil e Uruguai sobre a Hidrovia da Lagoa Mirim

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8 min readSep 15, 2022

Bruno Hammes de Carvalho e Silvana Schimanski

Fonte: Ascom/ PPI / Divulgação.

Resumo: Este trabalho apresenta os principais marcos dos esforços políticos realizados entre Brasil e Uruguai, para a promoção da integração regional pela navegação na região da Lagoa Mirim, cujos recursos hídricos transfronteiriços contribuem para o desenvolvimento de ambos os países, em razão dos seus múltiplos usos.

A Lagoa Mirim é uma lagoa de águas doces de natureza binacional, cujo recorte territorial faz com que 53% de suas águas estejam em território uruguaio e 47% em território brasileiro. Situa-se na Bacia Hidrográfica Mirim-São Gonçalo, que abrange vinte e um municípios no Brasil (todos no Rio Grande do Sul) e cinco departamentos no Uruguai. Suas águas se conectam à Laguna dos Patos pelo Canal São Gonçalo, formando o Complexo Lagunar Patos-Mirim. Sua importância estratégica no território está relacionada aos múltiplos usos dos seus recursos, entre os quais, o abastecimento humano, a pesca e a irrigação agrícola.

Devido à importância da Bacia Hidrográfica Mirim-São Gonçalo para a região, desde a década de 1960 Brasil e Uruguai mantêm diálogos bilaterais em prol do melhor aproveitamento dos seus recursos. Entre 1961 e 1963 ocorreram as primeiras iniciativas para a institucionalização de sua atuação conjunta para lidar com questões de interesse mútuo, formalizadas na Ata de Conversas Uruguai-Brasil (CLM, 1961) e por Notas Reversais (CLM 1963). Em 1961 decidiu-se pela constituição de uma Comissão Mista para o estudo, entre outras questões, dos problemas relacionados à navegação na Lagoa Mirim e do sistema hídrico. As notas reversais, em 1963, confirmam o compromisso uruguaio quanto à constituição da Comissão Mista, animado com o propósito de estimular as relações econômicas através de medidas para melhorar as condições de navegação e o aproveitamento da Lagoa Mirim.

O Tratado de Cooperação para o Aproveitamento dos Recursos Naturais e para o Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim, assinado em 07 de julho de 1977, formalizou o mecanismo jurídico-institucional para a coordenação das políticas públicas com foco no desenvolvimento da região da bacia (BRASIL, 1977). Nesse contexto, a Comissão Mista para o Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim (CLM), que é composta por delegados da seção brasileira e seção uruguaia — representantes de diferentes instituições — se reúne periodicamente com a finalidade de manter os seus objetivos. Até o ano de 2021, já foram realizadas 121 reuniões e diversos projetos bilaterais resultaram desses diálogos, a exemplo da barragem do Canal de São Gonçalo, que impede que águas salinas oriundas do mar, avancem para as águas doces da Lagoa Mirim (ALM, 2022); e, recentemente, a aprovação de um projeto junto à Organização das Nações Unidas para a alimentação e Agricultura (FAO), com recursos do Fundo Global para o Meio Ambiente para promoção o uso sustentável e eficiente da água (FAO, 2021).

Em 2010, em uma das reuniões da CLM, foi assinado o Acordo entre o Brasil e o Uruguai sobre o Transporte Fluvial e Lacustre na Hidrovia Uruguai-Brasil, que entrou em vigor em 2015 (BRASIL, 2015). Entende-se que uma “[…] hidrovia é uma via navegável que, […] requer infraestrutura para sua utilização comercial, como portos, balizamentos, estaleiros, obras contínuas de dragagem […] contenção de margens, etc.” (KEEDI, 2008, p. 116). A hidrovia, nesse caso, visa possibilitar a navegação internacional de embarcações comerciais e de passageiros entre os dois países, contribuindo para a integração regional. Defende-se que servirá de rota logística de saída e entrada de cargas entre Uruguai e Brasil, bem como, importante acesso uruguaio para o Porto de Rio Grande (AHSUL, 2014).

O texto do Acordo da Hidrovia estabeleceu a criação de uma Secretaria Técnica — integrada por funcionários das respectivas autoridades nacionais e das Chancelarias, no âmbito da Comissão Mista para o Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim — com a finalidade de garantir sua efetiva aplicação. A Secretaria passou a ser a responsável pelo projeto e a coordenar grupos que têm trabalhado em aspectos técnicos, operacionais e regulatórios para o viabilizar o funcionamento da hidrovia. Entre 2010–2021, foram realizadas quinze reuniões da Secretaria Técnica da Hidrovia Uruguai-Brasil, abordando temas chave para a sua concretização, como regulamentos de navegação, planos cartográficos, licenças ambientais, obras de infraestrutura, entre outros. Os grupos são constituídos por representantes de instituições dos dois Estados, com expertises e competências relacionadas às atividades do grupo que integram. Entre os temas mais delicados, destacam-se os aspectos ambientais e os investimentos.

Embora as negociações para a implantação da hidrovia não sejam recentes e graduais convergências tenham sido alcançadas ao longo dos anos, é possível notar relativa aceleração de tais negociações após o encontro entre os presidentes do Brasil e do Uruguai, em fevereiro de 2021, em Brasília (VERDÉLIO, 2021). A partir da visita, o Ministério de Transporte e Obras Públicas do Uruguai e o da Infraestrutura do Brasil reafirmaram compromissos acerca dos processos de obtenção de licenças ambientais e estudos de viabilidade para as obras de infraestrutura. Passaram também a discutir alternativas para o financiamento do projeto: por meio de verbas públicas ou investimentos da iniciativa privada (CLM, 2021).

Em outubro de 2021, durante a 121ª Reunião da Comissão Mista, houve o anúncio de que a empresa DTA Engenharia apresentara Proposta de Manifestação de Interesse (PMI) nas obras de dragagem da hidrovia, proposta que envolve os estudos preliminares prévios à abertura do processo de licitação da dragagem da hidrovia. A ata também menciona que, em 30 de julho de 2021 a referida empresa enviou nota ao Ministério de Infraestrutura do Brasil informando sobre a doação de estudos de viabilidade econômica para a concessão de obras ao setor privado. Naquele momento, o Programa de Parcerias e Investimentos do Ministério da Economia considerava o projeto como um dos qualificados para a concessão ao setor privado (o que seria formalizado em novembro de 2021 pelo Decreto 10.865, de 19 de novembro de 2021). Na mesma reunião, houve o informe de que o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), como instituição financeira de cooperação, também teria manifestado sua intenção de participar do processo, disposto a analisar os estudos que viriam a ser realizados e apresentados pela DTA Engenharia (CLM, 2021).

Em 13 de abril de 2022, em cerimônia realizada na embaixada uruguaia em Brasília, foi entregue pela DTA Engenharia o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) do projeto que prevê a implantação da hidrovia. Foram previstos investimentos aproximados de R$ 85 milhões, considerando viabilizar o aprofundamento e a manutenção do canal de navegação, garantindo o tráfego seguro de embarcações durante todo o ano. Os principais investimentos previstos para a concessão são a dragagem e a sinalização da hidrovia. Os estudos indicaram viabilidade do projeto por meio de uma concessão pelo prazo de 25 anos, prorrogáveis por mais 5 anos (CLM, 2022).

Atualmente, o projeto passa por análise nas instâncias domésticas — especialmente no âmbito da Agência Nacional de Transportes Aquaviários — que contam com cooperação técnica no valor de até US$ 285.800 do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). Tais recursos serão utilizados para consultorias de revisão e complementação dos estudos da concessão, acompanhamento do processo licitatório além da elaboração de estudos diagnósticos para a promoção do desenvolvimento regional (CAF, 2022).

Historicamente, as águas da Bacia Hidrográfica Mirim-São Gonçalo, assim como a própria Lagoa Mirim, têm contribuído para a integração entre Brasil e Uruguai e para a convivência pacífica dos seus povos. Têm sido fonte de abastecimento urbano de água potável para ambos os países, garante economia de subsistência para comunidades de pescadores, fornece recursos para uma das maiores regiões produtoras de arroz do Brasil, para os rebanhos, além de ser espaço para atividades turísticas e esportivas. Considerando que a Secretaria Técnica para a Hidrovia Uruguai-Brasil é o ambiente institucional que propicia o diálogo entre os referidos Estados no que diz respeito à navegação na Lagoa Mirim, convém acompanhar os desdobramentos sobre as discussões dos impactos socioambientais no território.

Referências

AGÊNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DA LAGOA MIRIM — ALM. Barragem Eclusa. Disponível em:<https://wp.ufpel.edu.br/alm/?page_id=2057> . Acesso em: 26 ago. 2022.

ADMINISTRADORA DAS HIDROVIAS DO SUL — AHSUL. Estudo de Viabilidade Técnica Econômica e Ambiental — EVTEA da Hidrovia Brasil Uruguai, Folheto, Brasília, DF, nov. 2014.

BRASIL. Tratado de Cooperação para o Aproveitamento dos Recursos Naturais e o Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim. 1977. Disponível em: < https://legis.senado.leg.br/norma/568057/publicacao/15712355>. Acesso em: 27 de ago. 2022.

BRASIL. Decreto Nº 8.548, de 23 de outubro de 2015. Promulga o Acordo entre a República Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai sobre Transporte Fluvial e Lacustre na Hidrovia Uruguai-Brasil (Hidrovia Uruguai-Brasil). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/d8548.htm>. Acesso em: 01 jun. 2022.

BRASIL. Decreto nº 10.865, de 19 de novembro de 2021. Dispõe sobre a qualificação de empreendimentos públicos federais do setor aquaviário no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República e sobre a sua inclusão no Programa Nacional de Desestatização. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Decreto/D10865.htm>. Acesso em: 26 ago. 2022.

BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial Programa de Parcerias de Investimentos. Conselho do PPI qualifica 18 novos projetos com mais de R$31 bilhões em investimentos estimados. 21 fev. 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/orgaos/seppi/noticias-1/conselho-do-ppi-qualifica-18-novos-projetos-com-mais-de-r-31-bilhoes-em-investimentos-estimados>. Acesso em: 27 ago. 2022.

BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial Programa de Parcerias de Investimentos. PPI participa de entrega de estudos para a concessão da hidrovia da Lagoa Mirim na embaixada do Uruguai. 18 abr. 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/orgaos/seppi/noticias-1/ppi-participa-de-entrega-de-estudos-para-a-concessao-da-hidrovia-da-lagoa-mirim-na-embaixada-do-uruguai>. Acesso em: 01 jul. 2022.

CAF-BANCO DE DESARROLLO DE AMÉRICA LATINA. CAF apoyará la concesión de la hidrovía Brasil — Uruguay y el desarrollo fronterizo en la región. 10 mar. 2022. Disponível em: <https://www.caf.com/es/actualidad/noticias/2022/03/caf-apoyara-la-concesion-de-la-hidrovia-brasil-uruguay-y-el-desarrollo-fronterizo-en-la-region/> . Acesso em: 29 jun. 2022.

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KEEDI, Samir. Transportes, Unitização e Seguros Internacionais de Carga: prática e exercícios. 4a. Ed. São Paulo: Aduaneiras, 2008.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA — FAO BRASIL. Projeto entre Brasil e Uruguai na Lagoa Mirim beneficiará quase um milhão de pessoas. 01 Set de 2021. Disponível em: <http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1437477/>. Acesso em: 01 jun. 2022.

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Sobre os autores

Bruno Hammes de Carvalho, estudante do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista CNPq do Projeto de Pesquisa Negociações Internacionais: atores e dinâmicas.

Silvana Schimanski, Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UNB), na modalidade Doutorado Sanduíche com o Instituto de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (IHEID). Professora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Membro da Comissão Especial da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim (ALM) para temas de governança transfronteiriça.

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