Mudanças na agenda da participação social nos governos Bolsonaro e Lula III: efeitos na política externa

Editoria Mundorama
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6 min readJul 1, 2024

Richarlls Martins e Thiago Gehre Galvão

Photo by Ramon Buçard on Unsplash

Resumo: O artigo analisa rupturas nas políticas de participação social no Brasil durante as presidências de Bolsonaro e Lula. O argumento central versa sobre a correlação da composição governamental vigente e a vocalidade da política externa brasileira junto ao campo da democracia participativa.

O Brasil vivenciou uma ruptura na institucionalidade da participação social com contornos regressivos na política externa advindos da ascensão de Jair Bolsonaro à presidência até o final de 2022. Os trabalhos de Guimarães e Silva (2021) e de Kyrillos e Simioni (2022) analisam elementos destas mudanças severas nas escalas de poder e como este processo afetou, com especial relevo, a promoção dos direitos humanos. A presidência de Bolsonaro produziu uma reorganização estrutural na concepção das políticas de participação social. A perspectiva política então vigente apresentou como foco central dois pilares: ampliação de pautas econômicas neoliberais (especialmente associadas a diminuição do papel do Estado e a reformas estruturais) e defesa de uma agenda conservadora no campo dos costumes, com vocalidade na política externa.

Em 1º de janeiro de 2019, a Medida Provisória (MP) 870, enviada pelo presidente ao Congresso Nacional, inaugurou as ações do governo. Esta MP apontou em seu artigo quinto como uma das prerrogativas da Secretaria de Governo “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”, Brasil (2019). A proposição apresentada pela presidência foi amplamente questionada pelo conjunto da sociedade civil do país a partir dos argumentos que tal medida apresentava elementos autoritários, produziria barreiras para as ações das organizações sociais, indicava baixa intensidade democrática e atuaria na perda de autonomia social na fiscalização do poder executivo.

Após 100 dias do governo Bolsonaro, o arcabouço institucional das políticas de participação social, com base no Sistema Nacional de Participação Social e na Política Nacional de Participação Social, foi revogado através do Decreto nº 9759/2019. Este instrumento extinguiu todos os órgãos colegiados, sobretudo os Conselhos de políticas públicas. A única exceção foram os Conselhos criados a partir de 2019 durante o seu governo e os previstos no regimento interno da Constituição Federal de 1988. O Decreto nº 9759/2019 de Bolsonaro foi alvo de críticas severas pelas organizações da sociedade civil brasileiras com base na defesa de que a existência de conselhos na administração pública era uma prática de décadas, como apontou Côrtes (2005).

Esta concepção conservadora e refratária à participação social espelhou a gestão da política externa brasileira bolsonarista. O período é marcado pela restrição de representações da sociedade civil na composição das delegações oficiais do Brasil, prática fomentada com especial relevo à partir da atuação do país no ciclo social da Organização das Nações Unidas (ONU), a exemplo das delegações durante a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento da ONU, realizada no Cairo, em 1994, a Conferência Mundial da Mulher, em Beijing, em 1995, a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e formas correlatas de Intolerância, em Durban, em 2001, entre outros processos.

Com foco na organização das políticas públicas de participação social do governo Lula III, iniciado em janeiro de 2023, o Relatório Final do Gabinete de Transição Governamental, Brasil (2022a), apontou, como principal medida nesta área para reverter o quadro de retrocessos, “resgatar a Secretaria Geral da Presidência da República (SG-PR) como órgão central da política nacional de participação social, espraiada pelos Ministérios, impulsionando processos de caráter federativo e territorial” (p. 49).

A gestão Bolsonaro reproduziu a estrutura que alocou o tema da participação social na Secretaria de Governo, herança dos últimos meses da gestão da presidenta Dilma e mantida no governo Temer. O retorno, no governo Lula III, da participação social em uma estrutura ministerial específica foi defendido como estratégia para a recuperar a coordenação política transversal do tema. A SG-PR no atual governo foi reconfigurada e possui 10 competências, de acordo com o Decreto nº 11.363, com foco na ampliação da participação social no executivo federal, Brasil (2023).

Para a composição da indução de uma agenda coordenada de participação social na gestão pública federal, o Relatório do Conselho de Participação Social da Transição Governamental, Brasil (2022b), apontou como recomendação “a existência de um órgão em cada ministério, responsável pelo recebimento de demandas de movimentos sociais, bem como pela gestão das instituições participativas relacionadas àquela pasta específica” (p. 6). O governo Lula III instituiu Assessorias de Participação Social e Diversidade, que representam a maior inovação de arquitetura das estruturas do executivo federal para ampliação das capacidades de indução das políticas neste campo nos últimos 20 anos. Contudo, é necessário apontar, como apresenta Souza (2023), que estes organismos se organizaram mais “com a centralidade da participação e o papel acessório da diversidade” (p. 13), traduzindo as disputas presentes do início do atual governo.

O quadro de retomada da participação social e a instalação de mecanismos que ampliaram as capacidades institucionais para o tratamento do tema em 2023 apresentam evidências de que o governo Lula III reorientou a agenda da democracia participativa. No primeiro ano de gestão, foram realizadas 5 conferências nacionais: a 17ª Conferência Nacional de Saúde, que mobilizou aproximadamente 2 milhões de participantes, com 245 diretrizes e 1.198 propostas deliberadas; a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingos Sávio, após 13 anos da última conferência, com aprovação de mais de 600 propostas; a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com propostas para a construção do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; a 4ª Conferência Nacional de Juventude, sendo a última realizada há 8 anos; e a 13ª Conferência Nacional de Assistência Social, que avaliou o Sistema Único de Assistência Social.

No campo das ações de participação social do atual governo em 2023, merecem destaques as seguintes ações realizadas: a construção do PPA Participativo com 34 mil pessoas envolvidas, a realização dos Fóruns Interconselhos com aproximadamente de 300 colegiados e a criação da participação digital pela plataforma Brasil Participativo com o registro de 1,5 milhão de votos. A reinstalação da Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em dezembro de 2023, foi um avanço nas ações de retomada da participação social no campo da política externa nacional ao possibilitar a transversalidade de uma das pautas de maior visibilidade da política global no executivo federal. Nesta linha, a presidência brasileira do G20 — grupo que reúne as 19 maiores economias do mundo, a União Europeia e a União Africana -, apostou em ações com objetivo de ampliar a incidência da sociedade civil na preparação deste fórum intergovernamental. A SG-PR está responsável, no marco deste processo, pela coordenação da incidência de atores não-governamentais nas reuniões do G20 e pela realização do G20 Social, uma inédita Cúpula para participação da sociedade civil prévia ao encontro dos chefes de estado em novembro de 2024, no Rio de Janeiro.

Um histórico desafio que permanece no tecido social brasileiro e demanda atenção situa-se no resgate dos debates públicos para a produção de mecanismos que auxiliem a democratização da política externa. Neste sentido, o fomento para a criação do esperado Conselho Nacional de Política Externa Brasileira representa um acúmulo conceitual e político para o fortalecimento dos princípios da participação social e dos direitos humanos nas relações internacionais.

Referências

Brasil. 2019. “Medida provisória nº 870, de 1 de janeiro de 2019”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv870.htm.

____. 2022a. “Relatório Final Gabinete de Transição Governamental”. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2022/12/Relatorio-final-da-transicao-de-Lula.pdf.

____. 2022b. “Relatório do Conselho de Participação Social”. Disponível em: https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2023/janeiro/RelatrioFinaldoConselhodeParticipaoSocial.pdf.

____. 2023. “Decreto nº 11363, de 1 de janeiro de 2023”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11363.htm.

Côrtes, Soraya M. Vargas. 2005. “Arcabouço Histórico-institucional E a Conformação De Conselhos Municipais De Políticas Públicas”. Educar Em Revista (25): 143–74. https://doi.org/10.1590/0104-4060.371.

Guimarães, Feliciano de Sá and Irma Dutra de Oliveira Silva. 2021. “Far-right populism and foreign policy identity: Jair Bolsonaro’s ultra-conservatism and the new politics of alignment. International Affairs”. International Affairs 97 (2): 345–363

Kyrillos, Gabriela M., and Fabiane Simioni. 2022. “Raça, Gênero E Direitos Humanos Na Política Externa Brasileira No Governo Bolsonaro (2019–2021)”. Revista Direito E Práxis 13 (3): 1874–96. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2022/68535.

Souza, Clovis. 2023. “Possibilities and limits of social participation and diversity advisory services in the design of the institutional architecture of the federal government”. SciELO Preprints. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.6766.

Sobre os autores

Richarlls Martins: Doutor em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz, presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento do Brasil.

Thiago Gehre Galvão: Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília/UnB e professor adjunto do Instituto de Relações Internacionais da UnB.

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