O Brasil e a Guerra da Ucrânia

Editoria Mundorama
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6 min readMar 21

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Luciano da Rosa Muñoz

Fonte: ONU.

Resumo: O artigo defende que a posição do Brasil na guerra é correta porque segue a Constituição Federal e a tradição diplomática. É difícil, porém, que tenha um papel decisivo no cessar-fogo por meio da liderança de um clube de países amantes da paz.

Neste primeiro ano de Guerra da Ucrânia, o Brasil tem mantido uma posição de neutralidade no conflito. No momento, nada indica que irá alterá-la. Essa postura é acertada e encontra lastro na tradição diplomática e nos princípios que regem o Brasil em suas relações internacionais, conforme o artigo 4º da Constituição Federal.

Em seu inciso IV, está prevista a não-intervenção. Isso significa que o Brasil não intervém nos assuntos internos de outros Estados. No Ocidente, a guerra tem sido descrita como um conflito entre dois regimes políticos, a democracia e a autocracia. Rússia e China veem a guerra como um passo para o estabelecimento de uma nova ordem mundial em que o primado das democracias deixe de existir. De sua parte, fiel ao princípio da não-intervenção, o Brasil jamais endossou essas interpretações. Desde a década de 1960, existe a tradição diplomática de se associar a não-intervenção à autonomia e ao universalismo como diretrizes de ação na política externa brasileira. Por um lado, o Brasil considera que os demais países devem ter autonomia para definir seus próprios regimes políticos. Por outro, é parte do interesse nacional manter relações com diversos Estados independentemente de suas ideologias, seja como estratégia de acesso a mercados, seja como postura diplomática de não-alinhamento a quaisquer blocos.

Ao menos desde a Segunda Guerra Mundial, o não-alinhamento do Brasil implica uma posição de equidistância pragmática (MOURA, 1980) em relação aos polos de poder hegemônicos. É pragmática pois submete questões ideológicas a considerações em cada caso prático conforme o interesse nacional (LIMA & MOURA, 1982). Para uma potência média como o Brasil, a margem de autonomia em relação às grandes potências é maior quando se opta por uma posição equidistante, de modo a explorar a seu favor a rivalidade entre os centros hegemônicos. No momento, o pragmatismo exige que se submeta a opção pela defesa da democracia na Ucrânia ao interesse nacional brasileiro definido em termos do desenvolvimento. É sabido que o agronegócio brasileiro depende dos fertilizantes produzidos na Rússia, assim como a China é nosso maior parceiro comercial e grande compradora de alimentos. Por sua vez, a Europa e os Estados Unidos são importantes fontes de investimento para o Brasil. Isso ficou bastante claro por ocasião dos últimos encontros de cúpula do presidente Lula com o chanceler alemão Olaf Scholz e com o presidente norte-americano Joe Biden. Nos dois casos, houve promessa de liberação de recursos para ações ambientais, com destaque para a reativação do Fundo Amazônia e as perspectivas de produção de hidrogênio verde no Brasil nas próximas décadas. O agronegócio e a questão ambiental são elementos centrais para o sucesso da política externa brasileira na atualidade.

À medida que a Guerra da Ucrânia escalar, contudo, devem aumentar as pressões ao Brasil por alinhamento ao Ocidente. A lição da Segunda Guerra Mundial ensina que é preciso manter a equidistância o quanto for possível e extrair o máximo de ganhos dessa política de indefinição (MOURA, 1980). Em seus últimos encontros de cúpula, Lula reiterou que o país não pretende enviar munições para auxiliar a Ucrânia em seu esforço de guerra. Em entrevista à CNN Internacional chegou a declarar que não quer entrar na guerra, mas acabar com a guerra. Essa postura está em linha com os incisos VI e VII do artigo 4º da Constituição Federal, os quais preveem os princípios da defesa da paz e da solução pacífica de controvérsias. No momento em que o Brasil se nega a enviar armamentos à Ucrânia, é preciso oferecer uma contrapartida. Se o país não quer participar indiretamente da guerra, é porque pretende contribuir com a construção da paz. A questão é saber se o Brasil tem cacife para ter um impacto decisivo no fim do conflito. Historicamente, apenas as grandes potências tiveram a palavra final em questões de paz e segurança internacional. Em 2010, o Brasil buscou articular-se com a Turquia para encaminhar uma solução para o problema nuclear iraniano, porém foi ignorado pelas grandes potências no Conselho de Segurança da ONU. Isso ocorre porque, ao menos nos assuntos de guerra e paz global, o sistema internacional ainda é uma ordem oligárquica.

Como potência média, o Brasil é um “system-affecting state” (KEOHANE, 1969). Não poderá afetar sozinho o sistema internacional, porém poderá ter um impacto decisivo se trabalhar em pequenos grupos ou alianças através das organizações internacionais. Para ter impacto no mundo, o Brasil depende do bom funcionamento dos foros internacionais e da viabilidade de soluções multilaterais concertadas. É apenas através de coalizões que o país pode esperar alavancar sua posição e exercer algum protagonismo. No entanto, o exercício dessa autonomia periférica depende do grau de permissividade internacional a cada momento histórico (JAGUARIBE, 1979). Na década de 2000, o mundo era bastante diverso. Naquele momento, havia permissividade internacional tanto às soluções multilaterais como às coalizões Sul-Sul amparadas na ascensão dos países emergentes. Ao fim do segundo governo Lula, Celso Amorim (2010) afirmou que a ascensão dos grandes países em desenvolvimento seria o fenômeno mais importante do pós-Guerra Fria. Assim, caberia ao Brasil exercer protagonismo de modo a alterar a geografia de poder mundial e equilibrar as relações entre o Sul Global e o Norte desenvolvido. Isso, porém, não se consolidou.

Na última resolução da Assembleia-Geral da ONU, a qual novamente condenou a agressão russa ao território da Ucrânia, coube ao Brasil colaborar com a redação de um parágrafo em que se pede a cessação das hostilidades em prol de uma paz justa e duradoura. Isso indica que a política externa brasileira volta a adotar uma postura de alto perfil, o que é relevante para marcar a posição do país na Guerra da Ucrânia. O objetivo da resolução era encorajar o máximo de votos favoráveis de países neutros, entre os quais poderia surgir alguma concertação em prol da paz. O presidente Lula tem falado insistentemente na criação de um clube de países amantes da paz com vistas a encaminhar a negociação de um cessar-fogo, aparentemente sob liderança brasileira. A vontade de liderar um grupo existe, porém não há no momento grupo algum para liderar. Nos últimos anos, a previsão de Amorim não se confirmou. Os países emergentes não ascenderam em bloco. Hoje o mundo parece mais voltado para uma nova conformação do eixo Leste-Oeste em detrimento daquele eixo Norte-Sul dos anos 2000.

No momento, parece improvável a criação do propalado clube da paz sob liderança brasileira. Por um lado, tudo indica que a guerra deve escalar mais e prolongar-se no tempo. Por outro, não há agora permissividade para soluções multilaterais. Sinal forte nesse sentido foi que China, Índia e África do Sul abstiveram-se na votação da última resolução da Assembleia-Geral apoiada pelo Brasil. Cada país do BRICS tem seus próprios interesses. Apenas a China poderia funcionar realmente como fiel da balança no atual conflito. A recente visita de Wang Yi a Moscou sinaliza que o que o país prioriza é o entendimento bilateral com a Rússia, com o aprofundamento da “parceria sem limites” entre os dois países. Seu plano de paz, contudo, foi rechaçado prontamente pelo Ocidente, em função das críticas às sanções econômicas. Nada parece indicar que pretenda concertar-se com o Brasil para propor outro plano de paz, tampouco que farão isso no âmbito do BRICS. No final de março, Lula irá encontrar-se com Xi Jinping em Pequim. Veremos até que ponto vai sua capacidade de persuasão.

Referências

AMORIM, Celso. Brazilian Foreign Policy under President Lula: an overview. Rev. Bras. Polít. Int. 53 (special edition): 214–240 [2010].

JAGUARIBE, Helio. Autonomía periférica y hegemonía céntrica. Estudios Internacionales, Año 12, №46 (Abril-Junio 1979), pp. 91–130.

KEOHANE, Robert O. Lilliputians’ Dillemas: Small States in International Politics. International Organization, Vol. 23, №2 (Spring 1969), pp. 291–310.

LIMA, Maria Regina Soares de; MOURA, Gerson. A trajetória do pragmatismo — uma análise da política externa brasileira. Dados, Vol. 25, n. 3, 1982, pp. 349–363.

MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

Sobre o autor

Luciano da Rosa Muñoz: Doutor em Relações Internacionais (IREL/UnB). Professor de Relações Internacionais no Centro Universitário de Brasília (CEUB).

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