Os antecedentes normativos da ONU para os direitos das mulheres

Editoria Mundorama
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9 min readSep 2, 2024

Júlia Gomes Lopes Gonçalves e Maria de Lourdes Salles Monteiro de Paiva dos Santos

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Resumo: Os direitos das mulheres têm sido uma preocupação crescente no cenário global, refletindo a busca pela igualdade de gênero e a garantia de condições justas para todas as pessoas. O objetivo deste artigo é ressaltar os esforços da ONU que antecederam a aprovação da Resolução 1325 pelo CSNU.

Introdução

Desde sua criação, em 1945, a Organização das Nações Unidas, por meio de sua Carta constitutiva, já instituía a igualdade entre homens e mulheres como um ideal a ser buscado, atingido e praticado pelos Estados-membros e pela própria organização por meio do “respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos”, sem qualquer tipo de distinção (Carta da ONU, 1945, art. 1). Entretanto, apesar dessa preocupação expressa, os progressos rumo à igualdade acontecem paulatinamente, principalmente devido aos diversos obstáculos estruturais e sociais que dificultam o atingimento desse ideal. Mesmo após décadas, os desafios ainda perduram, impactando o avanço gradual das mudanças e ressaltando a necessidade contínua de busca pela plena igualdade e respeito às mulheres.

Nesse sentido, diversos foram os esforços da organização em promover comissões, declarações e conferências que possuíam a temática das mulheres como central. Embora ainda com caráter recomendatório e promovendo instrumentos não vinculantes, esses fóruns e espaços possibilitaram o debate e a visibilidade necessária para que, em 2000, um novo passo fosse dado em prol da busca pelos direitos das mulheres. Assim, o objetivo desse artigo é identificar os antecedentes normativos da ONU para avançar na busca pela igualdade e representação de gênero em sua estrutura até 2000, com a aprovação da Resolução 1325 pelo Conselho de Segurança.

Os antecedentes normativos da ONU para os direitos das mulheres

Na Conferência de São Francisco, em 1945, apenas quatro mulheres assinaram a Carta das Nações Unidas representando seus Estados, sendo elas Bertha Lutz (Brasil), Wu Yi-fang (China), Minerva Bernardino (República Dominicana) e Virginia Gildersleeve (EUA). Por meio das diplomatas Bertha Lutz e Minerva Bernardino, o primeiro esforço em busca da igualdade de gênero esteve nas discussões que antecederam o documento final e contou com o apoio das delegadas e assessoras latino-americanas (ONU, 2016). Apesar do descontentamento de algumas delegadas do norte-global, tal reivindicação tornou-se concreta com a inclusão da igualdade entre homens e mulheres.

No ano seguinte, em 1946, o ECOSOC (Conselho Econômico e Social das Nações Unidas) estabeleceu a Comissão sobre o Status das Mulheres (CSW — Commission on the Status of Women), cujo objetivo principal era promover os direitos das mulheres, documentar sua condição global e contribuir para padrões que visavam alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento feminino (UN Women, c.2021). Assim, a Comissão incentivou na conscientização acerca da temática e participou, posteriormente, na elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em que buscava acessar no âmbito do discurso, demonstrando preocupação com a utilização de uma linguagem convergente à igualdade de gênero proposta (Guarnieri, 2010, p. 5).

Vinte anos depois, em 1967, foi aprovada pela Assembleia Geral a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Resolução 2263(XXII)) que definia áreas em que a igualdade deveria ser buscada, embora apenas com caráter recomendatório. Até então, embora houvesse uma preocupação com o bem-estar das mulheres e o asseguramento de seus direitos, ainda não havia nenhum documento que tratasse de sua participação nos processos de resolução de conflitos e construção da paz, tampouco acerca da transversalização de gênero na organização. O caráter recomendatório da Declaração seria aprofundado em 1979 com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que entrou em vigor no ano de 1981 e foi o primeiro tratado internacional voltado amplamente para os direitos das mulheres (CEDAW, 1979, p. 14). Dessa forma, a discussão que teve início com uma Declaração de caráter recomendatório culminou no primeiro tratado internacional sobre o assunto, de forma obrigatória para as Partes.

O ano de 1975 foi escolhido como o Ano Internacional da Mulher pela CSW, Assembleia Geral e ECOSOC com o principal intuito de chamar atenção da comunidade internacional para as discriminações sofridas pelas mulheres, que ainda não possuíam pleno acesso a seus direitos em diversos países. Sob o lema “Igualdade, Desenvolvimento e Paz”, foi lançada, pela primeira vez, uma campanha preocupada em avançar a “maior contribuição das mulheres para a paz mundial”, o que seria um prenúncio das resoluções e conquistas posteriores na área de paz e resolução de conflitos. Esta campanha ficou conhecida como Conferência Mundial da Mulher, a primeira de várias que buscavam diversas conquistas no tocante aos direitos para as mulheres (ONU Mulheres, s.d.). Dentre os objetivos tratados, temos o de ampliar a representação de mulheres em áreas sociais e políticas e em questões relacionadas ao desenvolvimento (United Nations, 1975).

Um ano depois, os ecos da I Conferência Mundial da Mulher já seriam concretizados quando a ONU estabeleceu a próxima década como “a Década da Mulher”, demonstrando a maior consciência acerca da necessidade de sua inclusão e promovendo e legitimando o movimento internacional de mulheres (Guarnieri, 2010, p. 9). A II Conferência Mundial da Mulher, em 1980, buscou o comprometimento da comunidade internacional em temas-chave ressaltados sob o lema “Educação, Emprego e Saúde”, e adotou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (ONU Mulheres, s.d.). Nesse momento, foi realizado um balanço acerca dos objetivos assumidos na conferência anterior, quando se constatou que a participação de mulheres ainda estava abaixo do ideal. O evento ressaltou a importância da participação de mulheres para o desenvolvimento nacional e internacional e reforçou sua inclusão em agências da ONU, o que mais tarde seria um ponto a ser tratado na Agenda MPS (United Nations, 1980).

A III Conferência Mundial da Mulher, com o tema central “Estratégias Orientadas ao Futuro, para o Desenvolvimento da Mulher até o Ano 2000”, aconteceu em 1985 em Nairobi e foi um marco extremamente relevante no tratamento normativo da ONU sobre as mulheres. Seu objetivo era analisar os avanços conquistados desde a primeira Conferência Mundial e ao longo da Década da Mulher (United Nations, 1985). A conferência de Nairóbi ressaltou a importância de se traçar medidas concretas, assim como estratégias de ação que deveriam ser implementadas até o ano de 2000 a fim de aumentar a participação de mulheres nos processos de tomada de decisão. O evento tinha como foco tanto o cenário internacional quanto o regional e nacional, demandando comprometimento por parte dos Estados-membros da Organização que aceitaram o plano de ação elaborado ao longo da Conferência.

Mesmo com três conferências realizadas e inúmeros objetivos acordados, pouco havia sido cumprido e implementado na prática e, por isso, a Assembleia Geral, por recomendação do ECOSOC, realizou a IV Conferência Mundial sobre a Mulher: ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz, no ano de 1995, em Pequim (ONU Mulheres, s.d.). Também chamada de Conferência de Pequim, foi um marco na discussão sobre mulheres e sua participação nos processos de desenvolvimento e de paz, reafirmando os compromissos assumidos até então e promovendo a continuidade do debate acerca do fortalecimento dos direitos das mulheres ao redor do mundo.

Portanto, a Conferência definiu o conceito de gênero para a agenda internacional, assim como o empoderamento das mulheres e a transversalização das políticas públicas que tivessem a questão de gênero como objetivo. Essa transformação foi fruto do reconhecimento da necessidade de mudança de foco da mulher para o conceito de gênero por parte da própria Organização, reconhecendo, assim, a estrutura da sociedade e a necessidade de esta ser reavaliada (Guarnieri, 2010, P. 21). A partir de então, a Conferência representou a reafirmação de que a igualdade de gênero é uma questão de interesse universal, de acordo com a ONU, beneficiando todos os processos envolvidos, como a guerra e a própria paz (ONU Mulheres, s.d.). A Declaração e Plataforma de Ação da Conferência é o documento que resume os pontos abordados durante todas as reuniões e encontros e explicita de forma bem detalhada o que deveria ser feito para que a igualdade de gênero fosse atingida. Foi criado justamente porque os avanços desde a Conferência de Nairóbi não foram considerados suficientes.

Doze foram os eixos temáticos abordados na Plataforma de Ação de Pequim, entretanto, para o objetivo deste trabalho, iremos nos ater ao eixo temático que versa sobre “a mulher e os conflitos armados” (ONU, 1995). Ao longo de toda a trajetória histórica abordada até então, o tema paz e desenvolvimento esteve presente em diversos momentos, entretanto, a guerra só apareceu na agenda de gênero neste momento. A organização passa, então, a reconhecer que “a paz está indissoluvelmente vinculada à igualdade entre homens e mulheres e ao desenvolvimento” (ONU, 1995, p. 195), sendo também necessária para evitar conflitos e solucionar guerras que estejam em curso. A organização reconheceu ainda que as consequências desses conflitos armados não atingem mulheres e meninas da mesma forma que os homens, já que a ocorrência de violência de gênero, como abuso e exploração sexual, é uma realidade que as afeta de maneira desproporcional.

Considerações Finais

O percurso histórico das normativas da ONU relacionadas aos direitos das mulheres revela uma evolução significativa ao longo do tempo. Desde a fundação da ONU, a igualdade de gênero enfrentou desafios persistentes, entretanto, foi a Conferência de Pequim que consagrou o conceito de gênero na agenda internacional e reconheceu a conexão intrínseca entre paz e igualdade de gênero. Assim, a evolução da abordagem da ONU é evidenciada pela transição de recomendações iniciais para tratados vinculantes e resoluções específicas, que preparou o terreno e possibilitou a aprovação da Resolução 1325 em 2000.

A resolução é um marco no que tange a busca pelos direitos das mulheres e a transversalização de gênero na organização, e inaugurou a Agenda Mulheres, Paz e Segurança. Destacou, principalmente, o impacto desproporcional dos conflitos armados nas mulheres e sublinhou a importância de sua participação nas decisões relacionadas à paz e segurança. Ao longo dos anos, a Agenda MPS e seu escopo foram ampliados com a aprovação de novas resoluções e, atualmente, conta com dez resoluções, sendo as duas últimas aprovadas no ano de 2019. Para fins temáticos, as resoluções são, normalmente, divididas em dois grupos, em que o primeiro versa sobre a promoção da participação ativa de mulheres nos processos de paz e o segundo tem como objetivo central a prevenção da violência sexual baseada em conflito (conflict-related sexual violence — CRSV, nome e sigla em inglês).

Desta forma, apesar dos desafios persistentes, verifica-se que a ONU desempenhou um papel fundamental na criação de normativas e plataformas que impulsionaram a participação das mulheres em diversos setores da sociedade, como é perceptível com o desenvolvimento e alargamento das resoluções integrantes da Agenda MPS. É, somente em decorrência do amadurecimento da temática, que se torna possível a construção de uma agenda de tamanha relevância no contexto internacional. Ainda que distante do ideal, este percurso contínuo aponta para a busca de um mundo mais igualitário e justo, reafirmando e assinalando a igualdade de gênero como uma questão de interesse universal.

Referências

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Diplomata brasileira foi essencial para menção à igualdade de gênero na Carta da ONU. ONU, 2016. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/74852-exclusivo-diplomata-brasileira-foi-essencial-para-men%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0-igualdade-de-g%C3%AAnero-na-carta-da. Acesso em: 5 dez. 2023.

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Sobre as Autoras

Júlia Gomes Lopes Gonçalves: Mestre e Doutoranda em Ciências Militares no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares no Instituto Meira Mattos. E-mail: julialopes09@yahoo.com.br

Maria de Lourdes Salles Monteiro de Paiva dos Santos: Mestre e Doutoranda em Ciências Militares no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares no Instituto Meira Mattos. E-mail: mlppgcmeceme@gmail.com

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