Segurança na África: um panorama sobre o “novo epicentro global” do terrorismo e seus desafios

Editoria Mundorama
Mundorama
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7 min readJul 3, 2024

Matheus de Luca Silva Bueno e Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama

Photo by James Wiseman on Unsplash

Resumo: O continente africano vem se tornando cada vez mais palco de atividades de grupos terroristas, chegando a ser chamado de “novo epicentro global” do fenômeno. Esse artigo busca ilustrar como vem se dando a luta contra o terrorismo na África, tendo como marco temporal o pós 11 de setembro.

O atentado ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001 abriu um novo capítulo no sistema internacional. No campo de estudos da segurança internacional, a temática do terrorismo passou a pautar discussões, escritos e teorias ao redor do mundo, a partir de uma ideia de que terroristas não podiam ser contidos dentro de uma fronteira nacional e agora podiam expandir suas atividades para outros lugares. Já no imaginário popular, as imagens do atentado, somado à Guerra ao Terror empregada pelos Estados Unidos, originou um novo temor para as sociedades, mesmo aquelas que viviam em países aquém das grandes discussões internacionais.

Em janeiro de 2024 ocorreu o 10º encontro do Comitê de Coordenação Global das Nações Unidas Contra o Terrorismo, cujo tema foi “Coordenação Estratégica de Iniciativas Antiterrorismo na África: Desafios e Oportunidades”. Durante o encontro, o secretário geral da ONU, António Guterres, afirmou que a África se tornou o “epicentro global” do terrorismo (UN, 2024). Nesse sentido, de acordo com o Global Terrorism Index (GTI) de 2024, dez dos vinte países onde houve maior crescimento de atividades terroristas estão no continente africano, além de sete dos dez atentados com maior número de fatalidades no ano de 2023 (GTI, 2024). O presente artigo busca elucidar os pontos principais do combate e a percepção do terrorismo no continente africano, assim como os desafios para o futuro dessa agenda na região.

No âmbito das Nações Unidas, com o desenrolar das invasões ao Iraque e ao Afeganistão, houve uma tentativa de alinhamento do nível global ao nacional e regional no combate ao terrorismo. Em setembro de 2006, a ONU adotou a Resolução 60/288 que, dentre outras coisas, criava uma Força Tarefa de Implementação de Contraterrorismo (Counter-Terrorism Implementation Task Force, CTITF), sob o guarda-chuva do secretariado das Nações Unidas, na administração de Kofi Annan. Essa estratégia, que tinha pilares como enfrentamento, prevenção e articulação contra o terrorismo, foi revisada bianualmente até 2016, quando o atual Secretário Geral António Guterres realizou uma reformulação geral da estrutura e criou o Escritório de Contraterrorismo (Office of Counter-Terrorism, OCT), que passou a agir como órgão central de todos os órgãos relacionados ao tema, com um subsecretário que reporta diretamente ao Secretário Geral (Okon, Williams, 2021).

Ao analisarmos o caso africano, embora pouco explorada, pode-se observar que as ações antiterrorismo no continente vem sendo implementadas antes mesmo do 11 de setembro. Por exemplo, em 1999, a extinta Organização da Unidade Africana (OUA) ratificou a Convenção sobre a Prevenção e Combate ao Terrorismo, que foi seguido por outros protocolos e planos de ação desenvolvidos pela sua sucessora, União Africana (UA), em 2002. Essas ações fazem parte de um pacote que evidencia a tentativa africana de articular os interesses regionais às resoluções da ONU sobre a temática, como o estabelecimento de centros de pesquisa em contraterrorismo, em Argel, em 2004, e o desenvolvimento de leis nos moldes africanos relacionados ao contraterrorismo (Okon, Williams, 2021).

Por outro lado, deve-se considerar também as dificuldades internas na adoção de políticas antiterrorismo no continente. Isso pode ser evidenciado pelo fato de que muitas das ações propostas no âmbito de organizações regionais, como a União Africana, estão calcadas na ajuda externa na resposta a atentados nacionais, assim como na dependência de liderança de atores internacionais em esforços regionais contraterroristas (Botha, Graham, 2021). Isso se dá por conta das fragilidades das instituições regionais que encontram dificuldades em abarcar toda diversidade de interesses presentes nos países africanos, além das fraquezas institucionais dos próprios Estados, que enfrentam diversos obstáculos ao tentar monopolizar o uso da força.

Nessa dificuldade em se estabelecer lideranças regionais, países como os Estados Unidos vem encontrando a possibilidade de colocar em prática sua própria política externa contraterrorismo, que se baseia em combater os terroristas fora de suas fronteiras, evitando que eles ataquem seu território nacional (Firsing, 2012). Após o 11 de setembro, os americanos passaram a enviar tropas e ajuda militar aos franceses que tentavam combater a Al-Qaeda e outros grupos terroristas no oeste africano. Pode-se citar, por exemplo, o estabelecimento da United States Africa Command (AFRICOM) em 2007, que tinha como objetivo “promover os esforços americanos em busca da paz e segurança na África”, mas acabou iniciando uma onda de protestos contrários, tanto no continente africano, como nos Estados Unidos (Pham, 2011). Além disso, buscou-se estreitar relações com Estados-chave onde os grupos pudessem encontrar financiamento ou bases de recrutamento, como a África do Sul (Schimitt, Maclean, 2024; Firsing, 2012).

Duas décadas após o início da empreitada estadunidense, os resultados ainda são controversos e pouco positivos para os americanos. Do ponto de vista da repressão via atividades militares intensivas no oeste africano, oficiais do exército admitem que o objetivo não foi alcançado, de forma que grupos ligados tanto a Al-Qaeda como ao Estado Islâmico seguem crescendo em número e influência no oeste africano, como é o exemplo do Boko Haram e sua ligação com o ISIS (Schmitt, Maclean, 2024). Ao mesmo tempo, a relação com a África do Sul sofreu com altos e baixos, em grande parte devido a desconfiança de grupos islâmicos no país — que defendem que os estadunidenses lutam apenas pelos seus próprios interesses -, e do tempo que levou para o governo estadunidense tirar o Congresso Nacional Africano (ANC), movimento de libertação contra o Apartheid, da lista de terroristas do país (Firsing, 2012).

De maneira mais ampla, soma-se a isso a desconfiança de certos países africanos quanto a definição do terrorismo, uma vez que, em momentos anteriores, as potências coloniais caracterizavam como terrorista qualquer movimento pró-independência, como o supracitado ANC, ao passo que, paralelamente, esses movimentos faziam a mesma caracterização dos governos contra os quais lutavam. Essa falta de coesão, que gera uma certa inércia por parte dos países africanos, somada a pobreza crescente em algumas regiões e a porosidade das fronteiras, possibilita que grupos terroristas surjam e ganhem força no território africano, como é o caso do Boko Haram na Nigéria e do Al-Shabaab (Botha, Graham, 2021).

Sob essa mesma lente, podemos observar a reação da opinião pública africana dos países de maioria muçulmana com relação ao 11 de setembro e as medidas contraterrorismo, foi contrária as narrativas construídas pelos estadunidenses. De acordo com uma pesquisa realizada em 2002, em países africanos com maiorias muçulmanas, como Nigéria e Mali, havia uma maior resistência em relação à Guerra ao Terror empregada pelos Estados Unidos, ainda que a média geral do continente fosse favorável à medida (Pew Research Center, 2002, apud Seesemann, 2005). Além disso, ressalta-se que muitos praticantes acreditavam que o 11 de setembro ocorreu com o objetivo de justificar atrocidades que seriam realizadas com os muçulmanos em seguida, pensamento embasado em teorias de conspiração antissemitas (Seesemann, 2005).

Apesar de esse pensamento encontrar algum apoio na realidade, visto que populações muçulmanas de fato sofreram com o desenrolar da Guerra ao Terror, nota-se também que essas populações vêm sendo impactadas cada vez mais pelos atentados terroristas. Quando tomamos como referência o ano de 2023, nota-se que a sub-região do Sahel foi a mais afetada por atentados terroristas -houve atentados de grande impacto em Burkina Faso, Mali e Nigéria-, apesar de ser uma região com forte presença de muçulmanos (GTI, 2024; Bugacki, 2015). Dessa forma, pode-se constatar que, além de sofrerem com as medidas contraterroristas adotadas a partir de 2001 pelos estadunidenses, as populações africanas muçulmanas também sofrem com as ações dos grupos terroristas nessas regiões.

A partir do que foi apresentado, pode-se fazer uma série de considerações com relação ao terrorismo e contraterrorismo no continente africano. Nota-se a dificuldade em fazer políticas abrangentes, uma vez que os países contam com diferenças muito acentuadas na percepção do que é o terrorismo. Além disso, os agentes externos que atuam no continente africano muitas vezes buscam empregar suas próprias agendas de combate ao terrorismo, e encontram dificuldades por conta das particularidades encontrado no continente. Por fim, percebe-se que o terrorismo e o contraterrorismo afetam as populações africanas de forma diferentes em analogia com as sociedades ocidentais e são percebidas a partir de um olhar crítico, visto que em algumas regiões a comunidade muçulmana também é alvo das ações terroristas no continente. Por conta disso, com a África se tornando o novo epicentro global do terrorismo, vai ser necessário uma força tarefa composta por diferentes atores, compreendendo a diversidade local, para fazer com que esse problema local, mesmo que com impactos globais, não se transbordem cada vez mais. Ao mesmo tempo, é necessário que os atores regionais e locais se blindem de interesses neocoloniais por trás de políticas de apoio vindo das potências do norte global.

Referências

AMERICAN SECURITY PROJECT. Four Maps that Explain Islam in Africa. American Security Project. Disponível em: <https://www.americansecurityproject.org/four-maps-that-explain-islam-in-africa/>.

BOTHA, Sven; GRAHAM, Suzanne E. (Counter-) terrorism in Africa: Reflections for a New Decade. South African Journal of International Affairs, v. 28, n. 2, p. 127–143, 2021.

FIRSING, Scott. South Africa, the United States, and the Fight Against Islamic Extremism. Democracy and Security, v. 8, n. 1, p. 1–27, 2012.

INSTITUTE FOR ECONOMICS & PEACE. Global Terrorism Index 2024. http://visionofhumanity.org/resources: Institute for Economics & Peace, 2024.

OKON, Enoch; WILLIAMS, Dodeye. Implementação Regional da Estratégia Global de Contraterrorismo das Nações Unidas da África Central: Problemas e Desafios. [s.l.]: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 2021.

PHAM, J Peter. AFRICOM from Bush to Obama. South African Journal of International Affairs, v. 18, n. 1, p. 107–124, 2011.

SCHMITT, Eric; MACLEAN, Ruth. U.S. Confronts Failures as Terrorism Spreads in West Africa. The New York Times, 2024. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2024/06/07/us/politics/us-terrorism-west-africa.html>.

SEESEMANN, Rüdiger. East African Muslims After 9/11. Bayreuth: Bayreuth African Studies Working Papers, 2005.

UNITED NATIONS. Africa now “global epicentre” of terrorism: UN chief | UN News. news.un.org. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2024/01/1145852>.

Sobre os autores

Matheus de Luca Silva Bueno: Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia.

Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama: Professor substituto na Universidade Federal de Uberlândia no curso de Relações Internacionais. Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação “San Tiago Dantas” UNESP-UNICAMP-PUC/SP (2023), Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (2017), Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Ribeirão Preto- UNAERP, (2014) e Especialista em Pedagogia Universitária pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro — UFTM — (2021).

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