Catherine Gomes Duarte
Mundos & Fundos
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3 min readNov 17, 2016

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Imagem: Black Mirror

Arquivo de Memórias

Chego ao trabalho e sento me à minha mesa cansado da mesmice. Tudo ia perfeitamente normal, até um estagiário desesperado ligar a televisão e pedir a atenção de todos. Perturbado, me pergunto porque dariam atenção a um mero estagiário, olho para os lados e vejo que meus colegas de trabalho se atentaram ao rapaz. Reviro os olhos e me forço a olhar para a televisão, que transmitia a propaganda de um dispositivo chamado “arquivo de memórias”, o que raios seria um arquivo de memórias?

Me foco na televisão, interessado no assunto. O arquivo de memórias era um dispositivo localizado atrás da orelha e é responsável pelo registro de todos os momentos vividos pela pessoa, que poderia revê-los sempre que tivesse interesse, ou então deletá-los se assim quisesse. Após o término da propaganda, o estagiário desliga a televisão, e aguarda apreensivo a reação de seus superiores ali presentes. O escritório permanece em um silêncio ensurdecedor, não se ouve o som de uma caneta, um digitar, nada. O estagiário, intimidado, se retira do ambiente com a cabeça baixa. E então, após longos minutos escuto o mover de uma cadeira, e, logo após, um digitar, papel sendo amassado. O escritório havia voltado ao seu estado normal.

Ainda perturbado com a propaganda, faço minha própria reflexão, e analiso como o dispositivo poderia ser útil na sociedade em que vivemos. Não encontro muitos pontos válidos para tal. Seria útil para aqueles que sofrem de alzheimer e têm uma razão para usá-lo. Mas, agora, crianças com um dispositivo desses? Elas se tornariam meros robôs de informação e não iriam de fato adquirir conhecimento, seriam enciclopédias ambulantes. Imagine o quão superficial e obsessivo se tornariam os relacionamentos… Se hoje as pessoas terminam relacionamentos de anos por motivos estúpidos, imagine então com esse negócio atrás da orelha.

Frustrado amasso o papel na minha frente, me levanto bruscamente e vou em direção ao elevador, preciso de um cigarro para aderir toda aquela informação. Chego ao térreo, afrouxo minha gravata e vou em direção a saída, pego o maço de cigarros junto com o isqueiro no bolso do paletó, minhas mãos suam frio. — O que raios está acontecendo com o mundo? Digo para mim mesmo. Acendo o cigarro e aspiro o máximo que posso sentindo a fumaça queimar meus pulmões, expiro lentamente. Após alguns minutos pego outro cigarro, e repito o processo anterior, minha cabeça está a mil, porque aquele comercial de meia tigela havia me afetado tanto?

Após finalizar o segundo cigarro, volto ao escritório mais calmo, adentro o ambiente e sinto todos me olhando, dou de ombros, vou em direção a minha mesa, e dou inicio ao meu trabalho. As horas passam e finalmente esse dia agonizante chega ao fim. Vou até o elevador, e vejo que a fila estava lotada, decido então ir de escadas, já que são apenas alguns lances. Chego ao estacionamento, adentro meu carro e solto a respiração que nem sabia que estava segurando.
Chego em casa, tiro a gravata e me jogo no sofá. Com as mãos no joelho, seguro a cabeça e me questiono o que está acontecendo comigo. Tomo um banho quente e decido dormir, o melhor seria acabar logo com esse dia estranho.

Abro os olhos e descubro o porquê de ter ficado tão perturbado com aquele comercial. Mal sabia que seria obrigado a usar o dispositivo apesar de todos os meus questionamentos contra ele. Mal sabia que o único dia que me lembraria dos meus setenta anos sem o dispositivo, seria esse.

(Texto baseado no terceiro episódio da primeira temporada da série Black Mirror).

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Catherine Gomes Duarte
Mundos & Fundos

Não sei, só sei que eu escrevo uns textos e estudo jornalismo.