Os Prisioneiros da Liberdade

Stephie Neuman
Mundos & Fundos
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3 min readApr 24, 2017

Um labirinto de mentiras enraizados na ideologia social moderna.

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Manhã de sexta-feira, feriado de Tiradentes. Acabara de tomar meu café e me punha a limpar meus armários na esperança de encontrar um espaço para guardar meus livros de faculdade — que cada dia mais se acumulavam e tumultuavam a bancada de meu quarto. Foi quando uma folha de papel caiu de cima de uma esquecida prateleira do armário, uma que continha meus textos e registros do Ensino Médio.

“Mundo líquido moderno” lia-se escrito bem grande, seguido de um “9,5” e a assinatura de minha antiga professora de redação. Estava datado de Setembro de 2014, quase o fim de meu segundo ano.

Certa vez conheci uma garota na Universidade. Uma das poucas que me despertaram verdadeiro interesse em conhecer e me aproximar. Via nela uma boa amiga, e uma escritora que quanto mais conhecia mais me crescia em admiração. Certa vez ela escreveu a respeito de um fenômeno intitulado como sendo o “Jogo do Desinteresse”, e lendo meu texto de 2014 percebi algumas semelhanças que me fizeram refletir a respeito do que consideramos ser a liberdade no sentido emocional e sentimental.

A sociedade na qual nos encontramos hoje, nos empurra cada vez mais para a ideia de autossuficiência e empoderamento individual, acarretando na solubilidade de laços importantes para o desenvolvimento humano.

A mídia nos mostra tanto no âmbito real (reportagens) quanto no ficcional (cinematográfico e literário) a traição escancarada, famílias destruídas e casamentos falidos. Não somente a mídia, muitas vezes esses assuntos surgem em rodas de amigos ou até mesmo nos deparamos com essas condições dentro de nossos próprios lares, e a naturalidade e frieza com a qual encaramos cada uma dessas situações é no mínimo assustadora.

Sim, assustadora. Pense, quantos de seus amigos tem pais separados? Quantos casamentos você conhece que já foram destruídos, ou por desapego entre os cônjuges, ou por influências externas? E quantas vezes nós lidamos com isso como se fosse natural, algo que ao longo do tempo está de fato fadado ou predestinado a acontecer?

Já parou pra pensar como a ideia de ter laços concretos com alguém é colocada de forma a parecer ameaçar, limitar e enfraquecer a ideia de poder absoluto da própria vida, acarretando em um jogo de desinteresse cada vez mais aceito e praticado pelas gerações mais novas como sendo uma postura de defesa? Como se efetivamente se atrelar a uma pessoa sentimentalmente fosse de fato te machucar, te prender, te dilacerar, te destruir.

Mas afinal, qual é o cerne desse medo? Se tornar dependente emocionalmente de outro indivíduo? Medo de alguém exercer algum controle sobre você, seja assegurando sua fidelidade, seja tendo que se dedicar pra manter de fato essa pessoa interessada em você? Seria a ideia do “hoje é, mas amanhã pode não ser” proveniente do gostar e da possibilidade do vir a desgostar, visto que as ideias e os sentimentos são tão mutáveis que podem ser considerados quase líquidos, e conforme vemos todos os dias, há uma cultura muito presente da troca? Trocamos nossos amigos e nossos cônjuges como empresários trocam de carro.

A vida que nos é indiretamente proposta e brutalmente empurrada por nossas goelas abaixo é líquida, mutável, incerta e superficial. Faz com que muitos acreditem que são capazes de qualquer coisa dentro de uma liberdade que aos olhos cegos dos modernos é sem limites. Clarice Lispector costumava tratar a respeito dos laços fragilizados por influências liberais modernas. Mas talvez não se prender a ninguém, não ter laços profundos, não se apegar, seja o que realmente prende as pessoas, que se apegam a essa ideia e se apropriam dela como sendo uma regra, tornando-se prisioneiras do que creem ser a própria liberdade.

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Stephie Neuman
Mundos & Fundos

Community Manager at Ubisoft Brasil and secret DedSec member. Former journalist. Talkative nerd that constantly travels in time and space. Opinions on my own.