ASSIM NASCEU A CELESTE OLÍMPICA — Relembrando Paris, 1924

Os uruguaios campeões olímpicos de 1924 | AUF Sitio Web Oficial

Por Douglas Muniz

Num cenário global onde os sinais de euforia eram visíveis após a Grande Guerra, o futebol ganhava espaço nas principais cidades continente afora. A formação de clubes, a consolidação dos campeonatos e a força social e política que os esportes representavam, sobretudo o futebol, era algo notável (e muito mais se veria durante a década seguinte…). Na América do Sul, não era diferente e o desenvolvimento esportivo também se concentrou nas capitais e regiões portuárias, e, consequentemente foram os cenários da consolidação das seleções nacionais, ainda durante as duas décadas iniciais do século XX: Argentina, Uruguai, Brasil e Chile. A primeira competição reunindo este países, o Campeonato Sul-Americano (hoje Copa América) promovido pela recém criada Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL), foi realizado pela primeira vez em 1916 e ajudou a sedimentar a importância do jogo num torneio de seleções, para muito além da influência da comunidade britânica no desenvolvimento do futebol naqueles países.

Ao longo dos anos 1910, foram quatro Campeonatos Sul-Americanos, com três conquistas do Uruguai, o que mostrava a força do pequeno país, que no começo do século XX tinha uma população de 936.120 habitantes, sendo 268.334 concentrados na capital Montevidéu. Enquanto o futebol se organizava no continente europeu (principalmente pela luta da FIFA em ocupar o papel de principal entidade do futebol no mundo), o Uruguai, a partir de sua capital, concentrava as atenções em relação ao jogo, com o surgimento de vários clubes (com influência estrangeira na sua quase totalidade) ainda no final do século XIX.

A Asociación Uruguaya de Fútbol (AUF), principal organismo que rege o futebol no país, foi fundada em 30 de março de 1900, ainda com o nome The Uruguay Association Football League, e o primeiro jogo oficial da seleção aconteceu no ano seguinte, num 16 de maio, contra a vizinha Argentina, realizado em Montevidéu, e que terminou com vitória por 3 a 2 dos visitantes. Esse embate Uruguai X Argentina foi o único confronto entre seleções fora da Europa por alguns anos. E cada vitória charrúa, nas duas primeiras décadas do século XX ajudou a consolidar jogadores a se tornarem lendas do futebol uruguaio, integrando o seleção de futebol ao imaginário popular, o que, obviamente, ajudava a impulsionar o crescimento do esporte.

Foram anos nos quais os meios de comunicação de massa ainda estavam engatinhando (para se ter uma ideia, o rádio chegou ao Uruguai apenas em 1922), e as informações sobre os jogos de futebol da Liga Uruguaya de Fútbol (principal competição de clubes do país) e das partidas do selecionado, chegavam pelos jornais e pelo “boca a boca”. Nesse cenário, a Seleção Uruguaia começou os primeiros anos da década de 1920 com o desafio de retomar o caminho das conquistas, pois tinhas sido superada pela Argentina no Sul-Americano de 1921, realizado em Buenos Aires e pelo Brasil em 1922, no certame realizado no Rio de Janeiro. As dúvidas a respeito da força da equipe se tornaram constantes, somando-se a um período de muita confusão interna.

A temporada de 1922 terminou com a saída dos quadros da AUF do Peñarol e do Central, clubes de relevâncias diferentes a época, mas que integravam a liga e tinham peso na federação, após a tentativa de criar uma nova entidade continental, juntamente da Asociación Amateur Argentina e uma homônimoa chilena. Eram anos onde a rivalidade Peñarol X Nacional já monopolizavam as atenções (inclusive em termos de luta pelo poder dentro da AUF) e o debate sobre o amadorismo no esporte começava a aparecer. Esse episódio ficou conhecido como ‘La Cisma’, que gerou a Federacion Uruguaya de Futbol (FUF), instituição que não foi reconhecida por CONMEBOL e FIFA.

As movimentações na França e o espaço do futebol nos Jogos Olímpicos

A relação entre Jules Rimet, presidente da FIFA e o Movimento Olímpico era um tanto peculiar. Ao mesmo tempo que em que a FIFA procurava se consolidar como a entidade máxima do futebol mundial havia a necessidade de permanecer conectado aos Jogos Olímpicos e, por consequência, ao Comitê Olímpico Internacional. O francês também presidia a Federação Francesa de Futebol (a época conhecida como 3FA - Federation Française de Football Association), e acompanhava a popularidade do “esporte bretão” dentro do maior evento esportivo do mundo. O futebol começou como esporte de demonstração nos Jogos Olímpicos de Atenas em 1896, entrando oficialmente no programa olímpico a partir de 1908, em Londres, tendo apenas seis participantes. Nos Jogos de Estocolmo em 1912, o número de participantes aumentou para 11, e em 1920, na Antuérpia, foram 14 seleções. A exceção do Egito (que a época, estava sob “proteção” do Império Britâncio), participaram apenas seleções europeias nos três eventos, o futebol ganhava repercussão, dado o apelo popular crescente no Velho Continente e a profissionalização do esporte, que aparecia com maior vigor, principalmente nos países ‘vencedores’ da Grande Guerra.

A organização dos Jogos Olímpicos de Paris passava pelo (Comitê Olímpico Francês (COF) e dele, partiu a convocatória pra todos os 19 esportes envolvidos no megaevento. Foram 52 convites (53 contando com a França), um para cada país que tivesse um organismo responsável pelos esportes em nível nacional, e para o futebol, a regra era que a federação ou associação que regesse o esporte no país, fosse filiada a FIFA, para que pudesse ser inscrita no torneio.

A convocatória se fez publica em 19 de março de 1923 e naquele momento, a FIFA tinha 21 associações-membros. Outro ponto muito importante: no torneio de futebol, a organização (em relação as datas, sistema de competição, regras, árbitros, definição dos estádios onde aconteceriam os jogos, inscrição de jogadores, arrecadação de bilheteria etc.) seria de total controle da FIFA e da 3FA. Para se ter uma ideia da popularidade do futebol, a FIFA chegou aos Jogos Olímpicos com 39 membros, isto é, um salto quantitativo espantoso de quase 100% de crescimento num curtíssimo espaço de tempo. O projeto de Jules Rimet de realizar um torneio mundial de seleções, algo preconizado lá na fundação dela em 1904, se consolidava de maneira mais consistente com o chamado “Torneio Mundial” de seleções, nome utilizado pra se referir a aquela competição que seria jogada em Paris.

A década dourada começa a ser escrita em 1923

Com o futebol ainda em desenvolvimento nas Américas, coube à AUF a organização do Campeonato Sul-Americano de 1923. Era a segunda vez que o país receberia o certame, e as expectativas eram boas em relação aos jovens jogadores que despontavam nos clubes que jogavam o campeonato nacional.

Na competição continental que seria realizada entre 29 de outubro a 2 de dezembro, havia a promessa do presidente da AUF, Atilio Narancio, de que: “-Si salen campeones los llevo a los Juegos Olimpicos de Paris”. A sua relação com Enrique Buero, embaixador do país, seria fundamental no intento, também pensando nos próximos anos. Em campo, com uma equipe jovem, o Uruguai foi absoluto: vitórias sobre Paraguai (2X0), Brasil (2X1) e Argentina (2X0), todos os jogos foram realizados no Estádio Parque Central, pertencente ao Nacional. O artilheiro e grande destaque da campanha, foi o jovem atacante Pedro Petrone, que atuava pelo Charley Football Club, clube que jogava a Liga Uruguaya de Futbol. A quarta conquista continental serviu de estimulo por parte do comando da AUF, pela perspectiva do selecionado representar o país nos Jogos Olímpicos do ano seguinte.

Atilio Narancio | El ojo que todo lo ve — Masonería en el Uruguay [Blog]

E as movimentações da AUF também envolveram a embaixada do país na França, país no qual, à época, estava sediada a FIFA, com o objetivo de conseguir a filiação a tempo dos campeões sul-americanos estarem aptos para participar das Olimpíadas. Deu certo e filiação uruguaia foi confirmada no Congresso da FIFA em maio de 1924, às portas do início torneio olímpico.

Fora do campo também se joga

Os primeiros meses do ano olímpico foram de muitas movimentações extracampo: ainda no fim de 1923, a AUF enviou à Europa o presidente da Division Intermedia (instituição que cuidava da 2ª divisão do futebol uruguaio) Casto Martinez Laguarda, que também era deputado pelo Departamento de San José, pra conseguir marcar amistosos para a seleção, dando prosseguimento às tratativas iniciadas ainda por Enrique Buero, num esforço que também envolveu o Ministério de Relações Internacionais do Uruguai.

A viagem à Espanha trouxe bons resultados, com amistosos marcados entre abril e maio de 1924, restava o custeio da viagem, que também era tema do racha entre AUF e FUF, que contavam com figuras proeminentes na estrutura do poder político uruguaio, e mesmo o Comitê Olímpico Uruguaio (COU), num primeiro momento, não prosseguiu com a inscrição da seleção para o futebol dos Jogos.

Após muitas negociações internas (Atilio Narancio chegou a hipotecar um imóvel pra conseguir levantar o dinheiro) e externas (Laguardia foi a Paris para se reunir com Rimet em busca de uma solução, pois o dirigente francês também era outro interessado no maior número possível de seleções na competição). A solução veio num acordo político que envolveu figuras importantes do Partido Colorado dentro do COU e o presidente Narancio. A inscrição foi efetuada com a garantia do selecionado jogar os amistosos na Espanha.

A primeira viagem internacional

Executar uma viagem para outro país naqueles anos era bastante difícil, no sentido logístico e econômico da coisa. Ainda mais levar um grupo de pessoas nessa jornada a outro continente pela primeira vez: o navio a vapor Desirade levou o elenco uruguaio, que partiu de Montevidéu no dia 16 de março, numa viagem de terceira classe, a mais barata, e seguiu viagem por semanas até Espanha. A dificuldade era reforçada também pelo futebol ainda ser predominantemente amador no país, o que também exigia acordos entre os jogadores e os seus patrões de fora do campo (o que não aconteceu em sua quase totalidade).

O plantel, escolhido pela chamada Comision de Selección, grupo composto por dirigentes de diversos clubes, (e que teve Ernesto Figoli como diretor técnico, este com um trabalho também mais focado na preparação física e no apoio aos jogadores), foi o seguinte:

Goleiros: Andrés Mazali (Nacional) e Pedro Casella (Belgrano);
Zagueiros: José Nasazzi (Bella Vista), Humberto Tomassina (Liverpool), Pedro Arispe (Rampla Juniors) e Fermin Uriarte (Lito);
Médios: José Leandro Andrade (Bella Vista), José Vidal (Belgrano), Pedro Zingone (Liverpool), Alfredo Zibecchi (Nacional) e Alfredo Ghierra (Universal);
Atacantes: Pascoal Somma (Nacional), José Naya (Liverpool), Hector Scarone (Nacional), Pedro Etchegoyen (Liverpool), Pedro Petrone (Charley), Pedro Cea (Lito), Santos Urdinarán (Nacional), Angel Romano (Nacional) e Zoilo Saldombide (Wanderers).

Na lista, a ausência de grandes jogadores de conquistas recentes, casos de Isabelino Gradín e José Piendibene, chamava a atenção. Porém, estes eram jogadores do Peñarol, que pertencia à FUF e, portanto, não poderiam ser convocados para representar a seleção, tendo a AUF como a sua representação institucional do futebol uruguaio perante o mundo. O plantel era jovem, mas já mostrara muito futebol em 1923 e estava pronto para mais um grande desafio. Durante a viagem, Mazali que era corredor e chegou a vencer o Campeonato Sul-Americano de 200 metros com barreiras, em 1920, também auxiliava na preparação física do elenco, para que não se perdesse o ritmo diante da longa expedição. A chegada a Espanha foi em 7 de abril de 1924, na cidade de Vigo, numa recepção que agitou a cidade, dada a grande presença do público, pelas informações da chegada de uma equipe de fora do continente.

Já no dia 10, a estreia da série de amistosos, em jogo com o Celta, principal clube de cidade, o Uruguai foi a campo com: Mazali; Nasazzi e Uriarte; Andrade, Vidal e Ghierra; Urdinarán, Scarone, Petrone, Cea e Somma. Uma equipe bastante parecida com a do título continental de um ano antes e que terminou vencedora: 3X0, com gols de Petrone, Cea e Romano, com grande atuação do goleiro Andres Mazali, que substituiu o então titular Casella, machucado. Casto Martinez Laguardia, que acompanhou o plantel na excursão e que era responsável pelo informe oficial, ao destacar a grande vitória, reproduziu nela um comentário de um jornalista galego que entrou pra história: “Por el campo de Coya pasó ayer una ráfaga olímpica…”. Na revanche, três dias depois, outra vitória uruguaia, dessa vez por 4X1.

Casto Martinez Laguardia | Liga Mayor de Fútbol de San José [Facebook]

De Vigo a Bilbao, uma viagem de trem, custeada também por uma parte da bilheteria do jogo do dia 7, e em cada jogo, a renda da bilheteria seria fundamental pra garantir o traslado de todo o grupo e as condições de alimentação durante a viagem até Paris. No dia 20 do mesmo mês, confronto com o Athletic Bilbao, que era a base da Seleção Espanhola, medalha de prata nos Jogos de 1920. E mais vitórias: 2X1 e 2X0. Uma ida a San Sebastian, para enfrentar a Real Sociedad e outra vitória (2X0), e volta para a Galícia, agora pra enfrentar o Deportivo La Coruña nos dias 2 e 4 de maio, e para variar, mais duas vitórias: 2X1 e 3X2. As dificuldades nas viagens chamavam a atenção, também pelo estado dos vagões que transportavam os jogadores e pelas tensões com os torcedores e a polícia locais.

A última parada foi a capital espanhola, para enfrentar o Atlético de Madri, e a sequência de vitórias impressionava: 4X2, na mesma cidade, já no dia 15 de maio, duelo com o Racing Fútbol Club, que encerraria a série. E que não foi páreo pro selecionado oriental, que venceu por 3X1. Ao final, foram nove jogos, com nove vitórias, 25 gols marcados e oito sofridos. Pedro Petrone, destaque no título do Sul-Americano um ano antes, seguia em grande forma e foi responsável por 10 dos 25 gols. Mas nem tudo eram flores, pois Uriarte, lesionado, e Somma, por razões disciplinares, foram cortados e mandados de volta para casa.

Pedro Petrone, “El Canonero” | CONMEBOL [Site]

O desenho do torneio

Entre as 39 associações filiadas à FIFA, 22 se inscreveram para a disputa do futebol nos Jogos Olímpicos. Entre os participantes, além do Uruguai, as novidades eram: o continente asiático tinha a Turquia como seu representante e a Africa, seria representada novamente pelo Egito, desta vez como uma nação independente. E os Estados Unidos eram o último não -europeu presente na competição, porém este com mais participações. O sonho de Jules Rimet de um torneio mundial se aproximava da realidade e o certame ganhava protagonismo, pois foi agendada para acontecer antes de começar os Jogos Olímpicos, com o jogo de abertura da fase preliminar marcado pro dia 25 de maio e a final agendada pro dia 9 de junho. E a definição dos enfrentamentos por sorteio a cada fase até a semifinal.

Entre as equipes favoritas, Espanha e Hungria despontavam como sérias candidatas à conquista, pois contavam com grandes jogadores: o goleiro Ricardo Zamora (que chegou a enfrentar o Uruguai, pela equipe do Racing) e José Samitier, pelo lado espanhol. Já na Seleção Húngara, Gyorgy Orth, Béla Guttmann e Joszef Eisenhofer, eram os destaques. A Suiça também chamava a atenção, e figurava como um dos destaques do futebol europeu, tal qual a França, que jogava em casa e contava com muitos jogadores profissionais, situação similar a da Bélgica, vencedora do torneio de futebol nos Jogos Olímpicos de 1920. A Itália também era uma força importante.

A Europa foi bastante representada: Checoslováquia, Suécia, Bulgária, Holanda, Irlanda, Polônia, Romênia, Iugoslávia, Estônia, Lituânia, Letônia e Luxemburgo fechavam a lista de participantes. A competição ficou definida para acontecer em formato eliminatório, e os jogos aconteceriam em quatro estádios: Vincennes, Bergeyre, D’Abresie e Colombes. No sorteio, o Uruguai entrou na fase preliminar, tendo de enfrentar a Iugoslávia, no Estádio Olimpico de Colombes, que se tornaria um nome marcado para sempre na história do selecionado.

A trajetória

Para o jogo com a Iugoslávia, os uruguaios mantiveram os mesmos nomes que se destacaram ao longo dos amistosos na Espanha, com a diferença de Tomassina como parceiro de zaga do jovem capitão Nasazzi e Angel Romano assumindo a ponta esquerda no lugar de Somma. A atuação foi brilhante. O placar de 7X0 resume muito bem o que foi a partida, com gols de Vidal, Petrone (duas vezes), Scarone, Cea (também duas vezes) e Romano. Pedro Petrone e Hector Scarone, dupla que atazanou muitas defesas nos jogos anteriores, seguia afinadíssima. Responsáveis por tabelas no centro do ataque, mas com enorme capacidade para se deslocarem por todo o setor ofensivo, deslumbraram naquela tarde no Estádio Olímpico de Colombes, com apenas 3.000 presentes nas arquibancadas.

Outro detalhe importante foi a presença de Leonidas Chiappara, jogador do River Plate de Montevidéu, era arquiteto e estava em Paris como correspondente do jornal El Diario. Além de registrar toda a epopeia uruguaia ele ainda ajudou os conterrâneos a conseguirem acomodações melhores que os da Vila Olímpica. O destino foi Château d’Argentuil, um espaço fora da grande agitação que era Paris, tratava-se de uma pensão muito bem estruturada, comandada por Madame Pain, uma senhora de meia idade, que recebeu e tratou muito bem o plantel uruguaio.

A delegação uruguaia na pensão de Madame Pain | 100 años de gloria, la verdadeira historia del futbol uruguayo | Foto: Atilio Garrido

Já nas oitavas de final, e jogando em Bergeyre os adversários foram os Estados Unidos, uma equipe com muitos jogadores mais fortes fisicamente, porém com pouca experiência competitiva e nenhuma ameaça. Resultado: 3X0 para La Celeste, com todos os gols marcados por Petrone ainda na primeira etapa, o que ajudou também a equipe se poupar para o confronto seguinte.

Chama a atenção que havia diferenças no relato da delegação uruguaia em relação a autoria dos gols, com alguns telegramas da imprensa local que apontaram que os gols da partida foram marcados por Andrade, Scarone e Petrone, essa diferenciação se repetiria nos jogos seguintes. Para este artigo, optei por manter as informações da delegação uruguaia. Independente dos autores dos tentos, chamava a atenção o assombro pela capacidade da equipe, e com mais protagonistas: José Leandro Andrade, chamado de “Merveille Noire” (Maravilha Negra) pela técnica com a bola nos pés, somado aos dribles e gingados para superar os marcadores, e muita tenacidade em desarmar os adversários.

Publicação oficial da France Football | AUF Sitio Web Oficial

Nas quartas de final, retorno a Colombes, agora para enfrentar a França. Em apenas dois jogos a visão do público mudou completamente em relação à Seleção Uruguaia. De desconhecida a passou a ser considerada favorita à conquista do titulo, mesmo com todas as atenções (e torcida) voltadas para a seleção da casa. Antes do jogo, a dúvida sobre a cor das camisas, pois a França também vestia azul, e no sorteio, vitória uruguaia que pode seguir vestindo a camisa azul celeste, enquanto a França teve de jogar de camisas vermelhas. Dentro de campo o que se viu foi mais uma atuação brilhante dos uruguaios: 5X1, gols de Scarone (duas vezes), Cea, Petrone e Romano.

Chamava a atenção a fluidez e o ritmo ofensivo do selecionado, com toques rápidos, circulando a bola com incrível categoria de um lado ao outro do campo, o que colocou os franceses ‘na roda’, na tentativa inútil de conseguir retomar o controle da bola. A cobertura da imprensa, muito maior do que as edições anteriores de Jogos Olímpicos, se impressionava com o grande futebol apresentado, de uma equipe absolutamente desconhecida por todos os europeus e que se tornava lendária nos relatos a cada dia entre o final de maio e o começo de junho daquele ano.

Na fase semifinal, a Holanda apareceu no caminho e fez jogo duro, com vitória parcial no 1º tempo e muita aplicação para conseguir se defender das investidas uruguaias. A virada veio na etapa final, com gols de Cea após cruzamento de Urdinarán e de Scarone, que converteu um pênalti sofrido por Petrone. Fora de campo, a Holanda chegou a protestar na FIFA contra a decisão do árbitro francês Marcel Slawick que marcou a penalidade, porém a reclamação não foi adiante. Já dentro de campo, Petrone, apelidado de “Perucho”, combinava força com exuberante técnica e seguia fundamental pro sonho da inédita conquista.

Colombes para sempre

O frisson da torcida chamava a atenção, muita gente passou a acompanhar a Celeste durante o torneio, pelas informações que circulavam daquela grande equipe, e certamente isso atraiu muitas das 60.000 pessoas que foram ao Estádio Olímpico de Colombes, dia 9 de junho, pra acompanhar a final entre Uruguai e Suíça. A presença, não apenas de uruguaios que já viviam na França, como também de sul-americanos que foram acompanhar a seleção e davam mais uma mostra de carinho com a equipe, que foi muito festejada também durante o passar dos dias em Angenteuil. Uma curiosidade é que a decisão do 3ª lugar, entre Holanda e Suécia aconteceu no mesmo dia e palco, porém mais cedo. Tudo porque, o jogo que aconteceu no dia anterior em Colombes, terminou empatado em 1X1, e como não existiam critérios de desempate, um novo jogo foi marcado justamente pro dia da grande final e os suecos terminaram com a medalha de bronze, após vencer por 3X1.

Os suíços que se consolidaram como candidata a superar os favoritos uruguaios, vinham de grande campanha com goleada sobre a Lituânia por 9X0, pela fase preliminar. Nas oitavas, precisou do jogo-extra para vencer a Checoslováquia no jogo-desempate, por 1X0 (após empate em 1X1). A Itália foi superada nas quartas, com vitória dos helvéticos por 2X1 e na semifinal, repetiu o placar sobre a Suécia. O resultado e o desempenho eram bons, numa equipe sólida defensivamente e que tinha como destaques os atacantes Max Abbegelen e Paul Struzenegger, responsáveis por 11 dos 15 gols da equipe na competição, porém o desfalque de Struzenegger, que se machucou no jogo contra a Itália e ficou de fora dali em diante, era um peso a favor do adversário. Já do lado uruguaio, sem desfalques. E a escalação para o jogo, que ficou pra história: Mazali; Nasazzi e Arispe; Andrade, Vidal e Ghierra; Urdinarán, Scarone, Petrone, Cea e Romano, praticamente o mesmo time base durante toda a campanha.

Em campo, a superioridade uruguaia novamente se fez valer: aos nove minutos, jogada individual de Romano, que achou Petrone na área e gol uruguaio. O público vibrou, eufórico, deixando a sensação de que o jogo era em Montevidéu, e Mazali foi importante para evitar que as chances suíças fossem convertidas. Já na segunda etapa, Pedro Cea, aos 25, fez o segundo gol, o que foi a senha para a invasão da torcida, para festejar o tento junto aos jogadores e também porque o estádio não tinha um alambrado, apenas uma cerca baixa, que circundava o campo acompanhando a pista de atletismo. O gol que sacramenta a conquista veio já nos minutos finais, com Angel Romano de cabeça, após cobrança de escanteio. E do outro lado do oceano, em Montevidéu, a cidade parou pra acompanhar o jogo, com o enorme público presente na Plaza Independencia, atentos aos relatos que chegavam.

No apito final, a conquista celebrada junto a torcida, que atirava flores ao campo, conforme os jogadores caminhavam pela pista, dando uma volta, o que ficou conhecida como “volta olímpica”, tantas vezes repetida mundo afora, especialmente no futebol, após a conquista de um título ou uma grande vitória: aplausos e urras ao grupo de jogadores que carregavam a bandeira uruguaia e retribuíam as saudações.

Uruguaios agradecendo o apoio da torcida francesa enquanto criavam a ‘volta olímpica’ | ANEP — Uruguay Educa [Site]

De um time que começava pela segurança e elasticidade de Andrés Mazali, tão jovem (tinha 21 anos na conquista) e se tornaria ainda mais importante pelos próximos anos. A firmeza de José Nasazzi, capitão e líder da equipe, que até a viagem pra Espanha, trabalhava cortando pedras de mármore, e aos 23 anos, marcava época, acompanhado por Pedro Arispe, figura de destaque no Rampla Juniors e que fora de campo, era operário de frigorífico, virou titular a partir do jogo com os Estados Unidos, pra não sair mais, e tinha a mesma idade do seu parceiro de defesa.

A linha média, um trio de antologia: José Leandro Andrade, José Vidal e Alfredo Ghierra.

José Leandro Andrade | Jobu’s Rum [Site]

A começar por Andrade, que vale um parágrafo a parte — ou mesmo um artigo específico — de tantas qualidades já elencadas aqui, e que ficaram na memória de quem o acompanhou por aqueles dias na França, para além dos relatos nos jornais e livros. Aos 22 anos, era o único negro da delegação, foi visto com adoração pela sua cor dentro de uma sociedade parisiense que se espantava com a existência de jogadores negros. Em campo, suas participações foram fundamentais, e fora dele, era compositor de carnaval e engraxate, além de ligado ao candombe, manifestação cultural que envolve danças e religiosidade, trazida pelos povos bantu no contexto da escravidão no Uruguai durante o século XVIII, e representava uma espécie de linhagem de ídolos negros do futebol uruguaio, iniciada por Isabelino Gradín e Juan Delgado, decisivos nas conquistas sul-americanas de 1916 e 1917, respectivamente.

O trio era completado por José Vidal, center-half de exuberante técnica e versatilidade, pois também sabia atuar na zaga, tinha 27 anos e Alfredo Ghierra, nome que também salta a memória daqueles tempos, jogador muito eficiente no lado esquerdo e era o mais velho do time titular e entre os que jogaram ao menos uma vez na competição, tinha 32 anos.

E o poderoso setor ofensivo, começava com Santos Urdinarán, ponta direita muito rápido e capaz de atuar em outras funções do ataque com a mesma qualidade, tinha 23 anos. Próximo dele, Hector Scarone, apelidado de “El Mago”, pela absurda técnica nos dribles, passes e chutes, foi considerado pela crítica que acompanhou os Jogos Olímpicos, como o melhor jogador do mundo aos 25 anos. Pedro Petrone, capaz de fazer muitos gols, como o fez ao longo do torneio (terminou como artilheiro da competição com sete tentos —pelos dados de Pierre Arrighi), com várias qualidades citadas ao longo deste artigo, um jogador que prometia tanto aos 19 anos, e que fora de campo, trabalhava como verdureiro. Pedro Cea, conhecido “El Vasco”, apelido por conta de sua ascendência basca, tinha muito talento e estrela para aparecer em momentos decisivos ao longo da competição (na qual marcou seis gols), e que após a conquista, poderia deixar de trabalhar como entregador de gelo, e fechando o setor ofensivo Angel Romano, “El Loco”, ponta esquerda driblador e excelente finalizador, jogava com uma touca na cabeça, que sempre o acompanhava também quando vestia a camisa do Nacional e era o jogador com maior recorrido pela seleção até ali (pela qual jogava desde 1911) e tinha 30 anos.

Dos outros que participaram da campanha, mesmo que não titulares: Humberto Tomassina foi importante pro sistema defensivo na estreia diante da Iugoslávia e atuando na linha média diante dos Estados Unidos, José Naya apareceu com destaque na goleada sobre a França, substituindo Santos Urdinarán, que estava machucado. Na mesma partida, Alfredo Zibecchi ocupou o lugar de Vidal, e com boa atuação também. Apenas Pedro Casella, Leonidas Chiappara, Pedro Etchegoyen, Pedro Zingone e Zoilo Saldombide, que integraram o plantel uruguaio inscrito no torneio, não jogaram nenhum minuto.

As medalhas, à esquerda recebidas em Paris, ao centro e direita comemorativas recebidas no Uruguai | AUF Sitio Web Oficial

A permanência para os festejos e o celebrado retorno

A conquista da medalha de ouro também serviu pra reafirmar a idolatria dos jogadores em Paris, como o torneio de futebol foi realizado antes dos Jogos Olímpicos, e também como uma forma de descansar os jogadores, a delegação permaneceu na cidade, aproveitando da fama alcançada. O trajeto de volta passou por algumas cidades europeias: Milão e Gênova (Itália), Sevilha, Barcelona e Vigo (Espanha) e Lisboa (Portugal), o que mostrava também que as informações do feito alcançado chegaram longe. O efeito da glória se apresentou em novos compromissos firmados para o ano de 1925, onde a seleção voltaria ao Velho Continente para uma excursão por 25 cidades em nove países, no formato dos amistosos que jogou na Espanha pouco antes dos Jogos Olímpicos.

A título de curiosidade, as outras medalhas sul-americanas nos Jogos de Paris foram: seleção de pólo da Argentina (que tal e qual o Uruguai no futebol, ficou com a medalha de ouro), e os seus compatriotas Luis Brunetto (prata, no salto triplo) e os pugilistas Alfredo Copello (também medalha de prata), Pedro Quartucci e Alfredo Porzio (ambos levaram o bronze).

A perspectiva no retorno ao país, também por parte da AUF e do poder executivo uruguaio, era de transformar os jogadores do elenco em funcionários públicos, o que tornaria possível que eles pudessem representar a seleção em torneios e excursões, sem risco de grandes perdas salariais, o que era bastante atraente para os jogadores amadores.

O ‘gol olímpico’, mais uma conquista e o legado

No âmbito esportivo, a Argentina convidou o Uruguai para um amistoso comemorativo em referência a conquista em Paris, e o jogo realizado em 2 de outubro, que terminou com vitória argentina por 1X0, gol de Cesario Onzari, ficou marcado pelo fato de ter acontecido em cobrança direta de escanteio. O tento foi apelidado pela crônica esportiva argentina de ‘gol olimpico’ como forma de ironizar os uruguaios, que reclamaram bastante de uma falta sofrida por Mazali no lance. Vale saber que, quatro meses antes desse jogo, os gols marcados diretamente de cobrança de escanteio não valiam. No Campeonato Sul-Americano, que seria realizado no Paraguai, mas que por falta de infra-estrtura, teve a sede transferida novamente pro Uruguai, o desafio era se manter no topo.

Com praticamente o mesmo elenco vencedor na França, os uruguaios superaram o Chile (goleada por 5X0), Paraguai (3X1, de virada) e seguraram um empate em 0X0 contra a Argentina, para garantir mais um caneco. Esse jogo reunia um cenário de dúvidas e tensão acentuada, pelos acontecimentos em jogos das duas seleções naqueles meses.

A volta a Europa no ano seguinte também teve a marca da presença de clubes num cenário de intercâmbios mais constantes. 1925 teve a ida de Nacional, Boca Juniors e Paulistano ao continente europeu, consequencia direta da vitória uruguaia em Paris, excursões que também envolveram atores políticos importantes em cada lugar, fundamental pro conhecimento mútuo de estilos de jogo, perfis de jogadores, diferenças de terrenos de jogo, arbitragens, abriu espaço para que a crônica de lá do outro lado do Atlântico soubesse o que acontece aqui. Espaço também aproveitado por empresários, que utilizaram suas conexões internacionais para desenvolver as tours, que nos países de língua espanhola foram chamadas de giras, mas que no Brasil ficaram conhecidas como as excursões dos times à Europa, e depois pelo mundo todo. Eles participaram indiretamente do movimento que defendia a profissionalização do jogador de futebol, que tinha como atores centrais e maiores interessados, logicamente, os próprios jogadores.

1924 simbolizou muita coisa, em sentido físico. No Estádio Centenário, em Montevidéu, construído seis anos depois, para a Copa do Mundo de 1930, o setor que fica atrás de um dos gols, recebeu o nome de Tribuna Colombes (no lado esquerdo das câmeras de TV). Homenagem estendida também em referência a uma conquista do mesmo nível, alcançada quatro anos depois, em Amsterdam, com uma Tribuna nominada assim no mesmo estádio, porém na atrás da meta oposta e a arquibancada central, recebeu o nome de Tribuna Olímpica.

9 de junho se tornou o “Dia do Futebol Sul-Americano”, nomeada assim pela CONMEBOL em 1941, referência a 1924. Outro legado que essa conquista propiciou, foi a formação de alguns dos principais clubes de futebol do continente (1924, Universitário de Lima, e o Atlético Júnior em em Barranquilha e 1925, Colo-Colo em Santiago, Barcelona em Guayaquil e do Bolivar, em La Paz). Sem falar na formação de seleções, que se filiariam à CONMEBOL ampliando o alcance do Campeonato Sul-Americano (a edição de 1926 marcou a estreia da Seleção Boliviana e no ano seguinte, a Seleção Peruana, com o certame realizado em Lima pela primeira vez).

Símbolos de glórias, que influenciaram o futebol em todos os seus aspectos, que justamente merecem a reverencia, tal qual fez o público presente no Estádio Olímpico de Colombes há 100 anos, diante da melhor seleção do mundo, apelidada de “Celeste Olímpica”, primeira campeã do mundo.

PARA SABER MAIS

ARRIGHI, Pierre. 1924: primera Copa del Mundo de fútbol de la FIFA. Montevidéu: Zonalibro, 2014.

GIGLIO, Sérgio Settani. COI x FIFA: A história política do futebol nos Jogos Olímpicos. 2013. 518 f. Tese (Doutorado em Ciências) — Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

KOCH, Rodrigo. Celeste Olímpica: a Era de Ouro da Seleção Uruguaia. Canoas: Editora da ULBRA, 2012.

AUTORIA

Douglas Muniz é cientista social (formado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), palmeirense de coração, interessado na história (e nas histórias) do futebol sul-americano e em temas relacionados. É um dos integrantes do podcast Conexão Sudaca.

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Centro de Referência do Futebol Brasileiro
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Núcleo do Museu do Futebol dedicado a produzir, reunir e disseminar pesquisas e curiosidades sobre o futebol no Brasil.