FIGURAS ENTRE OS PRIMEIROS DO NOSSO ESPORTE BRETÃO: A HISTÓRIA DO CORINTHIAN INGLÊS

O ano era 1882. O futebol ainda era praticamente restrito ao Reino Unido, e o principal confronto internacional da época era entre as seleções da Inglaterra e da Escócia. Após uma sequência negativa contra os escoceses (derrotas por 5X4 em 1880, 6X1 em 1881 e 5X1 em 1882), Nicholas Lane “Pa” Jackson, secretário assistente da Football Association (FA), percebeu que os ingleses deveriam se reunir com mais frequência para melhorar o entrosamento do selecionado, já que grande parte dos escoceses jogava pelo mesmo time, o Queen’s Park, de Glasgow.

Foi aí que surgiu o Corinthian Football Club, em 28 de setembro de 1882. Desde o começo, o amadorismo e o suposto cavalheirismo pregado pelos aristocratas foram as bases para a fundação do clube, resultando no Corinthian’s Spirit, ou Espírito do Corinthian, que impedia o clube de competir profissionalmente. É importante lembrar que esse era um momento de muitos debates no Reino Unido em relação ao profissionalismo no futebol, que seria estabelecido em 1885 e abriria espaço para que os trabalhadores se tornassem parte do jogo.

Mas, voltando algumas casas, depois de altos e baixos na primeira temporada, o clube londrino começou a se estabelecer como uma força no futebol. O primeiro grande momento dos corinthianos foi uma acachapante vitória por 8X1 contra o Blackburn Rovers, que era simplesmente o campeão da FA Cup de 1884.

Mas a grande vocação do Corinthian era mesmo as tours internacionais, que acabaram por transformar o time nos “Missionários do Império”. A primeira viagem para além das ilhas britânicas aconteceu em 1897, com destino à África do Sul. Depois de uma longa jornada de navio rumo ao extremo sul do continente africano, os ingleses percorreram algo em torno de 9.700 quilômetros para disputar 23 jogos. Um aproveitamento de 21 vitórias (dois empates), 113 gols marcados e apenas 15 sofridos, com direito a goleadas impressionantes, como um 10X1 no Griqualand e dois 9X0, no Pretoria e no King William’sTown.

O continente europeu também foi bastante explorado, com uma sequência de viagens à Escandinávia (1904), ao antigo Império Austro-Húngaro (1904), à Alemanha (1904, 1906), aos Países Baixos (1906), à França (1908), à atual região da República Checa (1909) e à Suíça (1909). Entre as visitas mais lembradas do clube de “Pa” Jackson no continente europeu, estão as incursões à Suécia e à Hungria, onde as taças que o Corinthian levou para a disputa acabaram se tornando os troféus nacionais. Nesse meio tempo, em 1906, o Corinthian também esteve nos EUA e no Canadá.

Então, chegou a hora de desembarcar na América do Sul. Em 22 de agosto de 1910, convidados por Oscar Cox, fundador do Fluminense F. C., os corinthianos desembarcaram no Rio de Janeiro e dois dias depois, já tendo conhecido as famosas belezas naturais da então capital brasileira, fizeram seu primeiro jogo, justamente contra o tricolor carioca. Logo na estreia, uma vitória por 10X1, de virada. Na sequência, uma vitória por 8X1 contra um combinado carioca. E, para finalizar a perna carioca da visita, mais um triunfo contra um ‘selecionado brasileiro’ — uma seleção sem os jogadores ingleses que atuavam no Rio de Janeiro — , dessa vez mais apertado, com vantagem de 5X2 para os ingleses.

A próxima fase da visita é em solo paulistano. Sabendo da visita do Corinthian ao Rio de Janeiro, um velho conhecido gostaria que os ingleses também visitassem São Paulo: Charles Miller, um dos pioneiros do futebol no Brasil.

Aliás, se o escocês nascido no bairro do Brás não goza de unanimidade quanto à “paternidade” do futebol brasileiro, é inegável que ele fora o primeiro corinthiano do Brasil. Durante sua estadia no Reino Unido, onde conhecera o futebol na Banister Court School e, além de jogar pelo time do colégio, também defendera o St. Mary’s Y. M. A. (atual Southampton F. C.). E vestira a camisa do Corinthan em um jogo! Não se sabe ao certo as circunstâncias de como o brasileiro fora convidado a jogar pelos missionários, mas o fato é que jogara, e ganhara por 1X0, no amistoso contra a Seleção do Condado de Hampshire, em 20 abril de 1892. Miller tivera como companheiros no ataque C. B. Fry, Charles Wreford-Brown e G. O. Smith, o trio de ouro do futebol britânico (e mundial) daquele final de século XIX. Além disso, uma das bolas que Charles Miller trouxera para o Brasil, que (literalmente) deram o pontapé no esporte em terras paulistanas, fora presente dos corinthianos bretões.

Hoje em dia, a palavra ‘Corinthians’, principalmente em São Paulo, instantaneamente evoca um misto de paixão, energia e entusiasmo. Essa relação entre futebol e paixão começou em 1910. No livro de registros do Corinthian Football Club de Londres deste ano, um simples apontamento foi feito, e acabou se tornando de grande importância para o futebol brasileiro”. É assim que John Mills, historiador do SPAC e biógrafo de Charles Miller, resume o impacto que essa despretensiosa visita causou na história do esporte bretão, como viria a ser cantado no hino do Corinthians anos depois.

Os jogadores do Corinthian F.C. que vieram ao Brasil em 1910 | Futebol Nation: The Story of Brazil through Soccer | Direitos reservados

Os ingleses viajaram do Rio a São Paulo no luxuoso trem noturno que ligava as duas cidades e desembarcaram na Estação da Luz na manhã do dia 30 de agosto. A primeira partida aconteceu no dia seguinte (31), quando o Corinthian enfrentou A. A. das Palmeiras, terminado em 2X0. Na sequência, uma vantagem de 5X0 contra o C. A. Paulistano, no Velódromo. E, para fechar o tour em terras brasileiras, uma vitória por 8X2 contra o SPAC, que contou em suas fileiras com o próprio Charles Miller.

Foi depois desse último jogo (contra o SPAC) que Bataglia, Magnani e os empregados da São Paulo Railway, que já tinham decidido criar um grande clube de futebol e assistirem o show do Corinthian inglês contra os ‘Anglo-Paulistas’, pediram um conselho para Charles Miller sobre qual nome eles deveriam dar para o novo clube. Sempre muito educado, Miller sugeriu que o clube homenageasse o time inglês que eles admiravam tanto. De forma uníssona, os primeiros cinco corinthianos exclamaram: ‘Seu nome vai ser: Sport Club Corinthians Paulista!’. A história estava sendo feita”, trecho também escrito por John Mills em ‘Memoriam SPAC’, contando a versão de que foi Miller quem resolveu homenagear os ingleses na fundação corinthiana.

Três anos depois, em 1913, os ingleses retornaram ao Brasil. A viagem foi uma das grandes aventuras dos Missionários do Império: eles embarcaram em Southampton em 1º de agosto, em uma viagem que passou por Vigo, Lisboa, Ilha da Madeira, Pernambuco e Bahia. Até chegarem no Rio de Janeiro, o navio em que viajaram contou com um casamento, um parto, duas mortes e um cozinheiro que teve acessos de loucura durante a viagem, como é relatado em “A History of Corinthian Football Club”.

Em 21 de agosto, a primeira — e única — derrota do Corinthian em solo brasileiro: um combinado carioca venceu de virada pelo placar apertado de 2X1. Depois, uma categórica vitória por 4X0 contra os “Estrangeiros”. O último jogo em terras cariocas foi contra os “Brasileiros”, com um placar magro de 2X1 para os londrinos.

O Corinthian também voltou a visitar a cidade de São Paulo, marcando partidas contra os clubes da APEA (Associação Paulista de Esportes Atléticos), C. A. Paulistano (vitória por 2X1 dos visitantes), A. A. Mackenzie College (8X2 para o Corinthian) e A. A. Palmeiras (empate por 1X1). Era a época em que a Liga Paulista de Foot-Ball (LPF) também contava com o seu campeonato e tinha o Corinthians Paulista em suas fileiras. A rixa entre LPF e APEA impossibilitou o confronto entre os ‘irmãos’. Esse encontro viria acontecer pela primeira vez apenas em 1988, quando o Corinthian já havia feito a fusão com o Casuals e adotado o famoso uniforme rosa e chocolate.

O declínio do Corinthian começou em 1914, com a perda de jogadores para os combates na Primeira Guerra Mundial. Justamente no caminho para uma terceira visita ao Brasil, o começo do conflito fez com que os jogadores, que já estavam no navio rumo à costa brasileira, retornassem à Europa para se juntarem ao exército britânico.

O Corinthian voltou a excursionar com o final da guerra, com a primeira viagem com destino à França (1921). Mas as viagens se restringiram ao continente europeu, com apenas duas exceções: América do Norte em (1924) e Jamaica (1937). Aliás, esta viagem ao Caribe foi organizada pelo grupo que começou a planejar a fusão com o Casuals F. C.

Mesmo com o enfraquecimento dos corinthianos de Londres e o crescimento de outros gigantes da Inglaterra, o Corinthian ainda detém marcas relevantes na história do esporte bretão: nascido praticamente como a Seleção Inglesa, em duas oportunidades o time de King George Field representou oficialmente os Three Lions, ambas contra o País de Gales: uma contundente vitória por 5X1 em 1894 e um empate em 1X1 em 1895. Além disso, são 76 jogadores do Corinthian com aparições pelo escrete inglês, um dos times com mais representantes na história do English Team. Dentro da própria Inglaterra, o Corinthian é responsável pela maior derrota de um gigante do futebol inglês: em 1904, o poderoso Manchester United foi derrotado por 11X3 pelos corinthianos.

Ciente de que os tempos estavam mudando, o Corinthian F.C. iniciou conversas com outro time amador importante, os vizinhos do Casuals F. C. Um ano mais novo, fora fundado por ex-alunos dos tradicionais colégios Eton, Westminster e Charterhouse, e embora fiéis ao amadorismo, gostavam de disputar competições, como a FA Amateur Cup e eram membros fundadores da Isthmian League e da Southern Amateur League. Um grupo de trabalho com representantes de ambos os times foi criado em 1936 e, finalmente, em 02 de janeiro de 1939 nasceu o Corinthian-Casuals Football Club, que optou por manter as cores do Casuals, chocolate e rosa.

Desde então, títulos foram raros, mas não faltam motivos para se orgulhar da própria história. Aliás, dois grandes momentos dos londrinos foram exatamente os encontros com seu irmão alvinegro do Brasil.

Em 1988, por ocasião do centenário do São Paulo Athletic Club, o time rosa e chocolate foi convidado para uma série de amistosos, sendo o mais aguardado o do dia 5 de junho de 1988, no Estádio do Pacaembu, quando 15 mil pessoas presenciaram o encontro entre o S. C. Corinthians Paulista e o Corinthian inglês. Entre outros destaques, um desfile de lendas como Zé Maria, Olavo, Wladimir, Carbone, Rivelino, Cláudio Cristhovam Pinho e Sócrates, autor do gol da vitória e que teve a honra de jogar pelos ingleses no 2º tempo.

Destaque para Sócrates vestindo a camisa do Corinthian-Casuals. Revista Placar, nº 940, 10 jun. 1988. p. 25 | Foto: Orlando Kissner/Placar

Apesar da péssima qualidade da gravação o jogo pode ser visto no Youtube:

E, finalmente, o primeiro confronto oficial entre os dois Corinthians: em 24 de janeiro de 2015, os amadores ingleses foram recepcionados na moderna Arena Corinthians, em Itaquera, e puderam ver a dimensão do impacto do que os missionários ancestrais deixaram no Brasil em 1910.

Esse jogo também pode ser conferido no Youtube.

PARA SABER MAIS

CAVALLINI, Rob. A Casual affair: a history of the Casuals Football Club. London: Dog N Duck, 2009. 317 p.

CAVALLINI, Rob. Corinthian-Casuals: the first seventy years: 1939–2009. Surrey: Dog N Duck Publications, 2009. 408 p.

CAVALLINI, Rob. Play Up Corinth: a history of Corinthian Football Club. London: Stadia, 2007. 285 p.

CREEK, F.N.S. A History of the Corinthian Football Club. London: Longman, Green and Co., 1933. 282 p.

GRAYSON, Edward. Corinthians and cricketers: and towards new sporting era. London: Yore Publications, 1996. 160 p.

MILLS, John Robert. Charles Miller: o pai do futebol brasileiro. São Paulo: Panda Books, 2005. 236 p.

MILLS, John Robert. Charles William Miller 1984–1994: memoriam S.P.A.C. São Paulo: Price Waterhouse, 1996. 348 p.

WATNEY, Chris; ROSOLINO, Tomás. A mais bela história do futebol mundial. São Paulo: Meu Timão, 2021. 160 p.

AUTORIA

Gabriele Martinez é jornalista, formada pela Faculdade Cásper Líbero. Foi estagiária do Museu do Futebol (2018–2019) e vira e mexe volta a este espaço para bater uma bola.

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