FINAL DO MUNDO: UM FIM DE SEMANA NA ARGENTINA CAMPEÃ

Comemorações no Obelisco de Buenos Aires pela conquista da Copa do Mundo de 2022 | Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires | CC-BY 2.5 AR | Wikimedia Commons

“Vamos? Vamos!” Mal terminou a surpreendentemente tranquila semifinal contra a Croácia, que o sonho silencioso idealizado desde maio pôde ser colocado em prática. Entre o medo de mudar o ritual de todas as vitórias e classificações, a certeza que era em solo argentino o único lugar possível para acompanhar a final da Copa.

Seria o desfecho de um Mundial cheio de rituais e superstições. Desde a estreia contra a Arábia Saudita, quando desde o ambiente até as roupas tiveram que ser mudadas para o jogo seguinte contra o México, até o confronto frente aos croatas, a única semelhança foi o copo de Fernet com Coca, popular coquetel argentino. O ponto alto da caminhada até a decisão contra os franceses foi obviamente o encontro contra a Holanda, em que a dose única de fernet dos outros dias foi substituída por sete ou oito taças, construindo um terreno de lágrimas, soluços, ajoelhamentos e rezas para que essa história pudesse chegar ao fim.

Desde a chegada no aeroporto de Ezeiza, região metropolitana da capital Buenos Aires, propagandas e cartazes dos heróis do título da Copa América — desvalorizada no Brasil — que devolveu o senso de orgulho a um país que não era campeão com a sua seleção adulta desde 1993.

O centro da cidade não era diferente. Já na véspera, o Obelisco, marco do centro comercial e cultural portenho, recebia projeções com palavras de incentivo àqueles que já orgulhavam o país. Pois, não é difícil encontrar quem ache que o argentino é arrogante, soberbo ou convencido. Talvez resultado de pertencer a um lugar tão único, cercado pelas glórias e fracassos, ídolos que flutuam entre o ódio e a devoção, crises e mais crises e, acima de tudo, o drama inerente a qualquer situação. Mas, para além da suposta empáfia, um orgulho tremendo de contar essa história em primeira pessoa, refletido no universo do futebol por um profundo envolvimento seja com seus clubes ou com a seleção, em que seja qual for o lugar do mundo, os argentinos jamais jogam como visitantes. Por mais que uma derrota fosse ferir profundamente a honra do país e destruir de vez a chance do principal jogador dessa geração, Lionel Messi, de alcançar a glória máxima, em 2026 mais uma vez assistiríamos a um país cheio de sonhos para chegar ao terceiro título.

Prévia no Obelisco já tomado na véspera da final | Acervo pessoal | Foto: Gabriele Martinez

Mas, não era isso que a ansiedade de cada um ali queria. Tudo se resumia à ânsia pelo pontapé inicial (e final) da partida. Apesar de o jogo ser disputado já ao meio-dia do domingo, não eram apenas algumas horas do dia que separavam os argentinos do grito de campeão. 36 anos de garganta engasgada e vidas inteiras que queriam ver a cena de um capitão de azul e branco levantando a cobiçada taça dourada.

Para aliviar a tensão, a cada esquina, alguém entoava um “Muchaaaaachos”, ponto alto da canção de arquibancada tema deste Mundial, celebrando o fato de ter nascido na terra de Diego e Lionel, relembrando os soldados mortos no conflito bélico contra a Inglaterra pelas Ilhas Malvinas, digerindo as tantas finais perdidas no caminho até Doha, e voltando a sonhar com a terceira estrela, sob o olhar de Don Diego e da Tota, pais de Maradona, além do próprio Diez.

Plaza Seeber. Um par de telões, alguns apelos para que os torcedores acompanhem ao jogo sentados, coisa completamente impossível. A confiança pairava sob as ruas, parques e praças tomados pelas camisas e bandeiras azuis e brancas, mas também era impossível não identificar o pavor de as coisas mais uma vez não saírem como planejado em uma decisão mundialista.

A história do jogo já é bastante conhecida: a linha tênue entre a Final do Mundo se transformar no Fim do Mundo. Entre a tranquilidade dos primeiros gols e a angústia do empate, os olhares se cruzavam tanto na euforia quanto no desespero. A comemoração ensaiada foi trocada pelo silêncio e as mãos no rosto um par de vezes. Impossível separar bem os sentimentos daquele momento, apenas a lembrança do pensamento repetido de pedir aos céus que tudo aquilo acabasse com final feliz albiceleste.

Acabou?

Acabou!

Abraços da alma em cada um que se encontrou naquela tarde. Inexplicável.

E já que o três é o número da vez, destaque para o momento da substituição de Di María, o coração de um time que achava que precisava fazer mais, mas já tinha feito tudo o que poderíamos pedir; a picardía de Dibu Martínez, representante genuino daquilo que foi convencionado em se chamar de catimba argentina, somada a toda a qualidade, sorte ou seja lá o que for naquela esticada de perna ao fim da prorrogação; e, claro, a ainda incredulidade ao ver Messi, depois de tantos caminhos desencontrados, finalmente encontrar a taça da Copa do Mundo em suas mãos.

O obelisco não é sequer o marco zero da capital, mas se tornou o centro do mundo. No nosso percurso pela Avenida do Libertador, pedestres dividiam a pista com carros em uma procissão de pura felicidade e alívio. Desde as abuelas (la, la, la, la) que viviam sua terceira festa mundialista até bebês que não fazem ideia do que é um jejum de títulos.

Entre o céu e a fumaça azul, as poucas nuvens brancas e o sol brilhando até mais de sete horas da noite, uma verdadeira bandeira da Argentina cobrindo a cidade até a noite cair. O que não significava fim de festa: o bumbo ainda tocava, o papel picado voava junto com a neve artificial, as pessoas seguiam escalando toda e qualquer coisa para ver a festa de camarote.

O céu dos campeões | Acervo pessoal | Foto: Gabriele Martinez

O balanço do dia foi de cerca de 24.000 passos, rostos queimados, um copo do clássico fernet com Coca-Cola. Meses e meses pedindo perdão por sonhar com esse dia e essa noite com medo do eterno azar. Eterna vai ser a lembrança. No momento derradeiro de embarcar de volta ao Brasil, o protocolo da companhia aérea pedia que os passageiros que viajavam pela primeira vez de avião se identificassem. Logo na sequência, a quebra de protocolo foi todos os tripulantes com os braços levantados e aplaudindo o piloto que havia pedido para que todos os campeões do mundo se manifestassem. Eterna vai ser a festa.

Em “¿Qué es Dios?”, da banda Las Pastillas del Abuelo, um dos versos diz: “La pelota siempre al diez, Que ocurrirá otro milagro”. Impossível duvidar nesta terra do papa, santos e dioses.

Festa a se perder de vista | Acervo pessoal | Foto: Gabriele Martinez

BÔNUS

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CAMPOS JR., Celso de; LEPIANI, Giancarlo; TORRAGA, Tales Copa loca: as inacreditáveis histórias da Argentina nos Mundiais. São Paulo: Garoa Livros, 2018 213 p.

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HUGO, Víctor; PERFUMO, Roberto. Hablemos de futbol. Buenos Aires: Planeta; ESPN, 2006. 307 p.

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SANTOS, Newton César de Oliveira. Brasil X Argentina: histórias do maior clássico do futebol mundial (1908–2008). São Paulo: Scortecci, 2009. 614 p.

AUTORIA

Gabriele Martinez é jornalista, formada pela Fundação Cásper Líbero. Foi estagiária no Museu do Futebol (2018–2019) e trocou Piracicaba (das vitórias sobre México, Polônia, Holanda e Croácia), por Buenos Aires, e voltou de lá campeã do mundo.

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