“PARA ESTUFAR ESSE FILÓ”: 80 curiosidades sobre o futebol nos 80 anos de Chico Buarque

Por Sérgio Miranda Paz (com revisão, sugestões e apoio emocional de: Mauro Lopes de Almeida; Max Gehringer; Humberto Mariano).

Este texto é p’rá quem gosta da bola,

p’rá quem gosta do Chico

e especialmente p’rá quem gosta da bola e do Chico

(não necessariamente nessa ordem)

Chico Buarque om a camisa do Politheama, Década de 1980 | Instituto Antônio Carlos Jobim.

Prólogo

Já é bem conhecida a paixão que Chico Buarque de Hollanda tem pelo futebol, seja como torcedor, seja como praticante. No entanto, muitos de seus admiradores se surpreendem quando se dão conta da quantidade de suas composições que falam de futebol. Desde Meu Refrão, uma de suas primeiras gravações, de 1965, até Que Tal um Samba?, a mais recente, de 2022, são pelo menos 25 canções que citam o futebol ao menos en passant, uma expressão que ele mesmo usou em uma entrevista.

Motivado por essa surpresa e pela celebração de seus 80 anos, em 19 de junho de 2024, já há algum tempo decidi tentar escrever um texto com 80 tópicos, ou melhor, 80 curiosidades da produção artística e da vida de Chico Buarque que tivessem alguma relação com o futebol. A princípio, tive certo receio de não conseguir descobrir tantos itens assim… e acabei “alargando o escopo da pesquisa” em alguns deles. Por exemplo: relacionei a participação de Chico Buarque no comício das “Diretas Já” na frente da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, em 1984, com a instalação, nos fundos da igreja, da pira dos Jogos Olímpicos de 2016, em cujo torneio de futebol o Brasil ganhou a medalha de ouro. Felizmente, ao longo da minha pesquisa foi surgindo material mais que suficiente para as tais 80 curiosidades, e esse e outros itens meio “nada a ver” acabaram sendo descartados.

Além das 25 canções com citações explícitas ao futebol, encontrei outras que mesmo sem citações, têm alguma relação com o esporte das multidões, sendo então incluídas dentre as curiosidades. Em alguns casos , escrevendo em português claro, acabei “forçando a barra”… Mas me foram muito prazerosos, porque algumas dessas canções estão dentre as 15 ou 20 da minha lista das top five do Chico (ou alguém consegue fazer uma lista de “cinco mais” do Chico com menos de 15 músicas???).

Dessa forma, a produção deste texto, que no início parecia que seria bem trabalhosa, acabou sendo muito divertida para mim. Por isso, agradeço ao Ademir Takara, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro, do Museu do Futebol, pelo incentivo e pela “cobrança”, ao meu primo Mauro Lopes de Almeida, pela acolhida em sua residência em Campos de Jordão e pelas criativas sugestões; além dos companheiros de Memofut — Grupo Literatura e Memória do Futebol — Max Gehringer e Humberto Mariano.

Enfim… fico agora na torcida para que outros leitores entrem para o nosso time, para a gente celebrar os 80 anos do Chico… e para estufar esse filó!

1. Gol de Baztarrica

“Pedro Amorim dá a bola a Baztarrica. Baztarrica a Simões, que devolve de calcanhar. Baztarrica chuta… não quero nem olhar… sniff, sniff… Gol do Fluminense! Baztarrica!” Se Ary Barroso, fanático torcedor do Flamengo, transmitiu o Fla‑Flu de 17 de junho de 1944, talvez tenha sido assim a sua narração do único gol daquela noite, que deu a vitória ao Fluminense, no Estádio de São Januário. E, se ouviu essa narração, certamente a carioca Maria Amélia Alvim Buarque de Hollanda ficou feliz com esse gol do time do seu coração, marcado pelo meia‑atacante argentino Guido Baztarrica, que fazia sua estreia pelo Tricolor das Laranjeiras, cujo goleiro, Batatais, foi o melhor em campo. Maior felicidade ela sentiria dois dias depois: no dia 19 de junho de 1944, ela deu à luz seu quarto filho, Francisco.

Maria Amélia, a mãe: fanática torcedora do Fluminense. | Agência O Globo.

2. Dona Memélia

Dona Maria Amélia, a “Memélia”, falecida em 2010, aos 100 anos, era mesmo fanática pelo Fluminense. Ela sabia de cor a escalação do time tricampeão carioca de 1919 (Marcos, Vidal e Othelo (substituto do titular, Chico Netto); Laís, Oswaldo Gomes e Fortes; Mano, Zezé, Welfare, Machado e Bacchi), quando, também num Fla‑Flu, bateu o rival por 4X0. Nem quando, dois anos depois do nascimento do filho Francisco, ela e sua família se mudaram para São Paulo, Dona Memélia deixou de torcer para o Fluminense. Com os filhos pequenos, pegava o bonde até o centro da cidade, onde comprava os jornais do Rio para poder acompanhar seu time. E, às vezes, até ia vê‑lo jogar no Estádio do Pacaembu.

Fluminense jogando com o São Paulo (derrota por 3x2) no Pacaembu, em 23 jan. 1949 (será que Dona Memélia estava lá?). | Revista Esporte Ilustrado, n. 564, 27 jan. 1949.

3. Time dos salva‑vidas

É justamente do Estádio do Pacaembu uma das mais antigas lembranças futebolísticas do menino Francisco. Aos seis anos, viu ali a partida entre as Seleções do Brasil e da Suíça (empate por 2X2), válida pela primeira fase da Copa do Mundo de 1950. “Quem me levou foi minha mãe, porque meu pai não gostava muito de futebol”, disse Chico Buarque numa entrevista, em 2010. Do jogo, ele não se lembra de muita coisa: “Na verdade, só me lembro do uniforme dos suíços, a camisa vermelha com a cruz branca no peito, e quando eles entraram em campo pensei que fossem salva-vidas”.

A Seleção Brasileira e os “salva-vidas” suíços no Pacaembu, na Copa de 1950: o menino Chico estava lá. 28 jun. 1950. | Crédito foto da esquerda Site 3º Tempo; Acervo José Alves | Crédito foto da esquerda: Acervo Max Gehringer

4. Sérgio Buarque de Hollanda

O pai, “que não gostava muito de futebol”, era o historiador, sociólogo, jornalista e escritor paulistano Sérgio Buarque de Hollanda, que havia assumido o cargo de diretor do Museu do Ipiranga (daí a mudança da família para São Paulo). Num artigo sobre seu filho já famoso, publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 1991, Sérgio escreveu: “Desde menino, se interessou por música e futebol. Jogo, não perdia uma irradiação. Seus ídolos eram Telê, do Fluminense, e Pagão, do Santos. Na Itália, torcia pelo Genoa”. Em outro trecho do artigo, o historiador diz que o filho “… sempre foi muito vivo e alegre. Jogava futebol nas ruas, como todos os garotos de sua idade…”.

Sérgio Buarque de Hollanda, o pai, que para não ter obrigação de torcer, dizia ser mero simpatizante do “pequeno” Bonsucesso. | Arquivo Nacional | Fundo Correio da Manhã.

5. Maracanazo

Da Copa de 1950, além do jogo entre Brasil e Suíça a que Chico esteve presente, no Pacaembu, ele tem a lembrança de ouvir, pelo rádio, a narração da partida final, disputada no Maracanã, no Rio de Janeiro. Mas afirma que a derrota para o Uruguai não lhe deixou trauma algum, “… porque eu tinha seis anos de idade. Mas me deixou assustado, porque ouvi o jogo pelo rádio. O Maracanã, ‘o maior estádio do mundo’, era um sonho na minha cabeça. Eu me lembro exatamente de que o locutor, chamado Pedro Luiz, disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai: ‘Gol de Friaça! Quase que vem abaixo o Maracanã!’. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo! Pensei que o estádio estivesse caindo, com duzentas mil pessoas. Não prestei atenção ao jogo. Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro”.

O Maracanazo não deixou traumas no menino Chico. 16 jul. 1950. | Arquivo Diários Associados-RJ | Acervo Instituto Moreira Salles.

6. Paulistano

Assim como quase todos seus seis irmãos, Chico Buarque, por influência da mãe, também se tornou torcedor do Fluminense e amante do futebol. Ainda bem menino, morando na Rua Haddock Lobo, no bairro paulistano dos Jardins, jogava bola num terreno baldio nos fundos de sua casa, que dava para a Rua Augusta. No bairro, havia dois times, de duas pequenas travessas ali próximas: o time da Rua Taiarana e o da Rua Sarandy. Chico era do Taiarana, e segundo a irmã mais velha, Heloísa, a “Miúcha”, “… mandava nos meninos, comprava as camisas. Quando brigava com o time, vendia as camisas. O dono da bola. Mas era também um bom líder, no time e com os amigos, porque não liderava explicitamente, mas pelo humor”. Com os pais e irmãos, frequentava o sofisticado Club Athletico Paulistano, que nos tempos do futebol amador conquistou onze títulos de campeão paulista e foi uma espécie de versão paulistana do Fluminense.

7. Sem fanatismo

Embora com alguma simpatia pelo também tricolor São Paulo F.C., sua paixão pelo Fluminense era reforçada por causa das férias em que costumava passar no Rio de Janeiro. Aos sete anos, Chico aparece numa foto com seu pai e três de seus irmãos, na sala de sua casa, fazendo pose de jogador de futebol: agachado, apoiado na bola e vestindo a camisa listrada do seu time. Mas, aos poucos, foi deixando de ser fanático. Hoje, ele diz: “Não sou fanático coisa nenhuma. Aliás, detesto fanatismo… passei a gostar de futebol mesmo!… Eu hoje gosto mais do espetáculo do que do Fluminense”.

Com o pai, irmãos, a bola e a camisa do Fluminense: pose de jogador. c. 1956. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

8. Colégio Santa Cruz

Depois de passar dois anos em Roma, onde Sérgio foi lecionar, a família Buarque de Hollanda retornou a São Paulo, e Chico, aos doze anos, foi matriculado no Colégio Santa Cruz, onde a prática esportiva era bastante incentivada, o que contribuiu para desenvolver sua aptidão futebolística.

Aos 12 anos, destaque no futebol entre os alunos do Colégio Santa Cruz. c. 1956. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

9. Garrafadas no Pacaembu

O interesse de Chico pelo futebol aumentou ainda mais quando sua família foi morar num casarão na Rua Buri, a menos de 1km do estádio do Pacaembu. Por causa dessa proximidade, ia aos jogos com certa assiduidade. Ele esteve presente na partida decisiva do Campeonato Paulista de 1957, conquistado pelo São Paulo com uma vitória de 3X1 sobre o Corinthians, na célebre “Tarde das Garrafadas”, assim chamada por causa das garrafas atiradas pela revoltada torcida corinthiana. Ele conta: “Eu, como era tricolor no Rio… havia essa quase necessidade, essa coerência de ser tricolor em São Paulo… Torci pro São Paulo… E torci no campeonato de 57… era Maurinho, Dino, Gino, Zizinho e Canhoteiro. Eu torci à beça. Fui ver a final, contra o Corinthians, ‘tava na arquibancada, choveram garrafas…”. Ele costumava ir ver os jogadores desembarcando dos ônibus, antes das partidas: “… eu me lembro de ter visto a Seleção de 1958 concentrada [no Pacaembu]. Fui lá peruar, ficar com cara de bobo olhando para as ‘figurinhas’. Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de figurinhas — muito pouco de televisão. Não tinha televisão em casa. A gente não via futebol pela TV: ia ver no estádio. Eu via os jogadores de longe, durante os jogos. Ver de perto um jogador era um acontecimento”.

10. Moleque fora do Moleque

E, como tantos garotos de sua idade, Chico pensou seriamente em um dia se tornar jogador profissional de futebol. Tanto que, aos 15 anos, chegou a tentar a sorte numa “peneira” no C.A. Juventus, do paulistaníssimo bairro da Mooca. Consta que teria sido reprovado no teste por ser muito franzino. Essa versão foi negada por ele, em 1998, numa entrevista ao jornal O Globo, em que afirmou que nem teve chance de entrar em campo: “… eu queria mesmo ser jogador. Cheguei a tentar fazer um teste no Juventus lá em São Paulo. Fui à Rua Javari, levei chuteira, fiquei na arquibancada horas e horas e não me chamaram. Acho que o physique du rôle não convenceu o técnico. Passou o tempo todo e ele mandou eu voltar outro dia. Eu não voltei. Não cheguei a colocar à prova o meu talento”. Em 2011, Chico deu outro depoimento, negando sua suposta reprovação no teste: “Calúnia! Não fui barrado, só me retirei de leve, depois de longa espera, com fome e com medo da barra pesada”. Nessa mesma ocasião, a direção do clube até cogitou lhe entregar o troféu “Moleque Travesso”.

Fotomontagem com Chico “vestindo” a camisa do Juventus | [Facebook] Portal da Mooca.

11. Cidades imaginárias

Depois da fracassada tentativa de se tornar um jogador profissional, em 1963, Chico deu à sua família a impressão que seguiria outra de suas vocações manifestadas precocemente: ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Desde a infância, criava no papel cidades imaginárias, com cinemas, bairro operário, pontos de ônibus, praças e fontes. Segundo a irmã Ana Maria, a “Baía”, esses desenhos sempre começavam no estádio de futebol da cidade. No entanto, Chico afirma hoje que não se sentia arquiteto, nem planejador, mas sim historiador. Suas cidades tinham história. Talvez, por isso, não tenha se formado arquiteto: trancou a matrícula da faculdade no terceiro ano, e nunca mais retomou os estudos.

A cidade de Torgona, imaginada nos anos 70. No círculo vermelho o estádio| Instituto Antônio Carlos Jobim.

12. “Virou músico porque não conseguiu ser jogador”

Nem arquiteto, nem jogador de futebol: Chico Buarque de Hollanda tornou‑se músico, um dos maiores da história da Música Popular Brasileira. Mas o futebol continua fazendo parte de sua vida. Pelo menos vinte e cinco, das centenas de suas composições, sozinho ou em parceria, citam o futebol. Nessa “estatística”, não há outro compositor brasileiro que chegue perto dele… nem Wilson Batista, Jorge Ben Jor ou Carlinhos Vergueiro. Nem mesmo Lamartine Babo, que fez onze hinos de times do Rio de Janeiro. Para Joaquim de Alcântara Machado, amigo de infância de Chico, seu colega no Colégio Santa Cruz, que como ele chegava mais cedo à escola para poder “bater uma bolinha” antes da entrada, “Chico virou músico porque não conseguiu ser jogador”.

13. Meu Refrão

A carreira de Chico Buarque como músico profissional teve início no final de 1964. E logo no ano seguinte ele gravou seus dois primeiros discos, dois “compactos simples”. No segundo, aparecia a primeira composição sua citando o futebol: o samba Meu Refrão, em cuja letra ele justifica sua opção pela violão, em vez da bola: “Já brinquei de bola / Já soltei balão / Mas tive que fugir da escola / Pra aprender essa lição / Quem canta comigo /Canta o meu refrão / Meu melhor amigo / É meu violão”.

14. Com Açúcar, com Afeto

Em 1966, para atender a um pedido da cantora Nara Leão, Chico Buarque compôs Com Açúcar, com Afeto, na qual, pela primeira vez, mergulhou no universo feminino, o que se tornaria uma de suas marcas registradas. Gravada pela própria Nara, por Jane Moraes (que na época formava com os irmãos o grupo “Os Três Moraes”, e depois formaria uma famosa dupla com seu marido Herondy) e por outras cantoras, a canção revela um certo antagonismo entre o futebol e a paixão de (ou por?) uma mulher.

15. A Banda X Disparada

Apesar de já ter gravado discos e de ter tido suas músicas gravadas por outros cantores, Chico Buarque, que havia voltado a morar em sua terra, o Rio de Janeiro, só se tornou conhecido nacionalmente depois de participar do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record em outubro de 1966. Sua música, A Banda, interpretada por ele e por Nara Leão, dividiu a torcida com Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, brilhantemente defendida por Jair Rodrigues. No teatro da Rua da Consolação reinava um clima de empolgante Fla‑Flu. A imprensa paulistana chegou a publicar que “… só duas torcidas contam: a da Associação Atlética Disparada e a da Banda Futebol Clube”. O resultado: um improvável e “salomônico” empate. Depois se soube que, na votação do júri, a vitória (por 7x4, segundo algumas fontes) teria sido de Chico, que se recusou a receber o prêmio sozinho. A MPB venceu!

16. Mug

Com o estrondoso sucesso de A Banda, Chico passou a ser requisitado para vários eventos promocionais. Um mês depois, participou, com Nara Leão, da festa de inauguração do Shopping Center Iguatemi, o primeiro de São Paulo. E, como Wilson Simonal e alguns outros artistas em evidência na época, transformou‑se num dos “garotos-propaganda” de um boneco chamado “Mug”, feito de feltro, que supostamente dava sorte ao seu possuidor, e que foi lançado nove dias após a final do festival. Por sua aparência, dizia‑se, jocosamente, que o boneco era inspirado numa mistura do então Presidente Castello Branco com Pelé.

Chico: garoto-propaganda do “Mug”. c. 1966. | Direitos reservados

17. Roda Viva X Beto Bom de Bola

Considerado o maior festival da chamada “Era dos Festivais”, o Festival da TV Record de 1967 foi vencido por Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, com os tropicalistas Gilberto Gil e Caetano Veloso ficando em segundo e quarto lugares, com Domingo no Parque e Alegria, Alegria, respectivamente, e Maria, Carnaval e Cinzas, de Luiz Carlos Paraná, defendida pelo rei Roberto Carlos, em quinto. Chico Buarque ficou em terceiro, com Roda Viva, interpretada por ele e pelo MPB4. Nesse dia, o futebol deu vexame: descontrolado com as vaias do público, o cantor e compositor Sérgio Ricardo quebrou seu violão e o arremessou à plateia. A letra da música que quase ninguém ouviu naquela noite e que acabou desclassificada, Beto Bom de Bola, inspirada em Garrincha, fala de um garoto que se torna jogador de futebol, ganha a Copa do Mundo mas depois encerra melancolicamente a carreira, esquecido, contundido, sem glórias. Aproveitando o nome de sua música, no final daquele ano de 1967 Chico Buarque escreveu para o teatro a peça “Roda Viva”, cujo enredo tem certa semelhança com Beto Bom de Bola, porém retratando a carreira de um cantor. Dirigida por José Celso Martinez Corrêa, a peça sofreu forte perseguição política por parte de setores mais conservadores da sociedade. Um grupo de cerca de vinte pessoas invadiu o Teatro Ruth Escobar, agrediu os atores e depredou o cenário. Chico também começou a ser alvo da censura e foi interrogado pelos órgãos policiais de repressão, mas ainda assim não se sentia muito incomodado, pois “… eu era torcedor do Fluminense e isso, não sei por que, amenizava as coisas”.

18. Bom Tempo

Quanto aos festivais, surgiram protestos dos sambistas da “velha guarda” contra o pouco espaço que eles estavam tendo, já que só os compositores da nova geração conseguiam os primeiros lugares. Por isso, a TV Record decidiu, em 1968, promover a primeira Bienal do Samba, restringindo o gênero musical das músicas concorrentes. Chico, acompanhado pelo amigo violonista Toquinho, concorreu com Bom Tempo, que, com uma letra otimista, fala, entre várias coisas boas, da satisfação de ouvir, pelo radinho de pilha, mais uma vitória do Fluminense. O festival foi vencido por Lapinha, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, interpretada por Elis Regina. Mas Chico, que foi até homenageado pela torcida do seu time, ficou “satisfeito, a alegria batendo no peito” com seu segundo lugar.

Citação do Tricolor rendeu-lhe uma homenagem da torcida do Flu. 1968. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

19. Ela Desatinou

Já em outro samba, Ela Desatinou, também composto em 1968, inspirado numa cena de foliões desorientados pela cidade depois do Carnaval, Chico, num estado de total amargura, compara o fim da folia a um jogo acabado: “Quem não inveja a infeliz / Feliz no seu mundo de cetim / Assim debochando / Da dor, do pecado / Do tempo perdido / Do jogo acabado”.

20. Sabiá X Caminhando

Repetindo o clima de Fla‑Flu do Festival da TV Record de 1966, em setembro de 1968 aconteceu a final da fase nacional do Festival Internacional da Canção, transmitido pela TV Globo. Por coincidência, a disputa contrapôs, mais uma vez, uma canção composta por Geraldo Vandré, a “engajada” Pra Não Dizer que Não Falei das Flores (Caminhando), e uma canção de Chico Buarque, Sabiá, agora em parceria com Tom Jobim. Desta vez, porém, foi Vandré que “entrou em campo”, interpretando sua composição. A música de Jobim e Chico foi defendida por Cynara e Cybele, duas das quatro irmãs baianas que compunham o Quarteto em Cy. Havia, ainda, outra diferença significativa em relação ao festival de 66: o resultado de empate não seria bem recebido pelo público… muito menos a vitória de Sabiá. Em tempos de forte oposição da classe estudantil ao regime militar, a torcida ali era toda para Vandré. Quando foi anunciada a vitória da música de Chico (a canção venceria também a fase internacional do festival, dias depois), uma vaia ensurdecedora ressoou no Maracanãzinho (colado ao então “maior estádio do mundo”, onde o verdadeiro Fla‑Flu já acontecia havia 18 anos). Felizmente o autor estava na Itália, divulgando seu disco em italiano, “escapou” dessa vaia que, diga‑se, foi injusta: o público talvez não tenha percebido, mas a letra vencedora, inspirada na Canção do Exílio, poema de Gonçalves Dias, fala tanto quanto Caminhando da situação que tantos brasileiros estavam sendo forçados a passar naqueles duros tempos de turbulência política. Mais uma vez, vitória da MPB!

21. Receita para Virar Casaca de Neném

No mês de dezembro de 1968, Chico Buarque voltou à Itália, onde faria alguns shows, ainda na esteira do sucesso de A Banda. Com ele, seguia sua esposa, a atriz Marieta Severo, grávida. Na verdade, era um autoexílio, que duraria um ano e meio: Chico estava sob ameaça de ser preso pelo regime militar que, pouco antes, havia promulgado Ato Institucional Nº 5 (AI-5) e fechado o Congresso Nacional. Em março de 1969, nasceu em Roma a primeira filha do casal, Sílvia. Flamenguista doente, o sambista Cyro Monteiro, amigo do casal, enviou de presente à recém-nascida uma camisa do Flamengo. A resposta de Chico veio no bem‑humorado samba Ilmo. Sr. Cyro Monteiro ou Receita para Virar Casaca de Neném, em que ele ensina como transformou a camisa rubro‑negra numa camisa tricolor: manteve o vermelho, acrescentou o verde que te quero verde, pintou o preto de branco e verticalizou as listras horizontais. Numa entrevista, em 1973, Chico até admitiu que a estratégia do “amigo Cyro” tinha dado certo, pois, aos quatro anos, “… desgraçadamente [ela] é Flamengo”. Mas, hoje, ele afirma, com segurança: “Silvinha é tricolor!”.

22. Mentana Calcio

Durante o exílio italiano, Chico sentia tanta falta do futebol que chegou a se inscrever para atuar no Mentana Calcio 1947, um time do subúrbio de Roma, hoje uma equipe amadora que disputa a nona divisão do futebol italiano. Um ano antes, ele já havia jogado uma partida de futebol nesse local, contra um time que contava com o cantor italiano Gianni Morandi.

23. Coluna, Eusébio e Otto Glória

Dois meses depois do nascimento de sua filha Silvia, Chico foi convidado para fazer alguns shows em Portugal. Em Lisboa, ele fez uma visita ao Estádio da Luz, do Benfica, onde teve um encontro com os três maiores nomes do futebol português dos anos 1960, principais responsáveis pelo terceiro lugar da seleção portuguesa na Copa da Inglaterra, em 1966, depois de eliminarem o Brasil, então bicampeão mundial: o meio‑campo Coluna, capitão do time, e o atacante Eusébio, artilheiro da Copa (com nove gols), ambos nascidos em Moçambique e o técnico brasileiro Otto Glória, que havia dirigido a seleção lusa na Copa e, depois de uma rápida passagem pelo Atlético de Madri, voltava ao país para dirigir o Benfica. Vestindo a camisa encarnada do time de Lisboa, Chico “bateu uma bolinha” com os jogadores e teve uma animada conversa com o treinador. Muito querido em Portugal, ele ainda voltaria várias vezes ao país para shows… e, pelo menos outras quatro vezes, para animadas peladas. “Craque internacional”, Chico alega já ter disputado peladas também em outros países, como França, Espanha, Hungria, Angola e Marrocos.

Trocando os pés pelas mãos: Coluna, Chico e Eusébio. depois batendo bola no Estádio da Luz, e dando conselhos sobre tática a Otto Glória. 1969. | Instituto Antônio Carlos Jobim| Fotos: Nuno Ferrari.

24. Ludopédio

Uma outra forma que Chico encontrou para matar as saudades do futebol durante o autoexílio na Itália entre 1969 e 1970 foi criar um jogo de tabuleiro, ao qual deu o nome de “Ludopédio” (que, originário do latim, significa “jogo com os pés”, tendo sido um dos neologismos criados pelo filólogo carioca Antônio de Castro Lopes, no final do século XIX, para substituir o estrangeirismo “football”). Trata‑se de uma espécie de “Banco imobiliário” no qual, em vez de comprarem ruas e construírem casas, os competidores, no papel de “cartolas”, adquirem os passes de jogadores fictícios e formam seus times (inclusive com os reservas) para, numa segunda fase do jogo, atuando como técnicos, disputarem um campeonato. Além das regras, Chico criou pequenas biografias dos jogadores que, embora irrelevantes para o desenrolar do jogo, são bem divertidas. Lançado pela indústria de jogos GROW nos anos 70, o jogo ganhou uma versão simplificada nos anos 80, o “Escrete”.

“Ludopédio”: jogo de tabuleiro criado na Itália, em 1969, e lançado no Brasil, nos anos 70. | Grow | Divulgação | Aírton Brisolla.
“Escrete”: simplificação do “Ludopédio”, lançado no Brasil em 1982. | Site E Aí, Tem jogo? | BGG.

25. O regresso, com barulho e bandeirão

Apesar de se opor à situação política vigente no Brasil, em março de 1970 Chico Buarque resolveu voltar ao país com sua família. Atendendo ao conselho de Vinicius de Moraes para que, para sua segurança, essa volta fosse “com barulho”, vários amigos artistas foram recebê‑lo no aeroporto do Galeão, como Betty Faria, Cláudio Marzo, Georgina de Moraes, Paulinho da Viola, os rapazes do MPB4, Altamiro Carrilho (que regia uma bandinha tocando A Banda) e o tricolor Nelson Motta, além de membros da torcida jovem do Fluminense, que saudaram o recém-chegado com uma enorme bandeira do seu clube.

Chico, Marieta e a pequena Silvia, chegando ao Galeão “com barulho”. 20 mar. 1970. | Folhapress.
Chico e um bandeirão do Fluminense, entregue ainda na pista do Galeão pela torcida jovem de Laranjeiras. 20 mar. 1970. | Agência Estado

26. Apesar de você

O clima de exagerado ufanismo que Chico encontrou no Brasil às vésperas e durante a Copa do México, em 1970, não lhe agradou. Sua resposta foi o samba Apesar de Você, uma das poucas canções que ele reconhece ser realmente de protesto.

27. Quem Te Viu, Quem Te Vê

Ainda durante a disputa da Copa do México, a Editora Abril lançou “História da Música Popular Brasileira”, uma coleção de 48 fascículos, publicados quinzenalmente, com pequenas biografias dos grandes nomes da MPB. Em cada fascículo vinha encartado um disco de dez polegadas com oito músicas compostas pelo biografado. Na propaganda da coleção, foi utilizada a frase “Hoje o samba saiu”, tirada do samba Quem Te Viu, Quem Te Vê, de Chico Buarque. Na época com apenas seis anos de carreira, ele foi o tema do fascículo 4, logo após um trio “de peso” (Noel Rosa, Pixinguinha e Dorival Caymmi). Nesse fascículo, de doze páginas, aparecem sete fotografias quase de página inteira, em que Chico está numa arquibancada de estádio de futebol (muito provavelmente a do Maracanã), ao lado da esposa Marieta Severo e logo à frente dos compositores (e amigos) Dori Caymmi e Nelson Motta — todos torcedores do Fluminense. Em algumas fotos, Chico, cigarro na mão, parece nervoso com o jogo, às vezes gritando ou reclamando (do seu time ou do árbitro?). Na foto da última página, com os braços erguidos, ele está, claramente, comemorando um gol.

Frase de um samba de Chico, usada na propaganda do lançamento da coleção. | Abril.
Capa do fascículo número 4 e na contracapa comemorando um gol (do Fluminense?). | Abril.

28. Construção

No ano seguinte, 1971, Chico Buarque lançou uma das suas composições mais emblemáticas: Construção, que gravou acompanhado pelo MPB4. Escrita toda ela em versos dodecassílabos, com rimas em proparoxítonos, sua letra lembra, na métrica e na rima, o primeiro poema brasileiro inspirado no futebol: o soneto “O Salto”, da poetisa Anna Amélia, que homenageia o histórico goleiro Marcos Carneiro de Mendonça, do Fluminense, com quem ela acabaria se casando. Filha do casal, a crítica de teatro Heliodora Carneiro de Mendonça, a “Barbara Heliodora”, compartilhava com Chico o amor ao teatro e ao Fluminense. Quando se encontravam, recitavam um ao outro uma antiga escalação do time tricolor (que começava pelo pai dela: “Marcos, Vidal e Chico Netto…”).

Fluminense tricampeão carioca de 1919, da esquerda para a direita: Chico Netto, Laís, Vidal, Marcos Carneiro de Mendonça, Oswaldo Gomes, Othelo e Fortes, agachados: Mano, Zezé, Welfare, Bacchi e Celso. Escalação “cantada” por Dona Memélia, pelo filho Chico e por Bárbara Heliodora, filha do goleiro tricolor Marcos. 1919. | Fluminense Football Club.

29. Deus Lhe Pague

Na gravação original de Construção, Chico incluiu três estrofes de outra canção: Deus Lhe Pague. No mesmo disco, essa canção também aparece, na íntegra, agora sem o acompanhamento do MPB4. Apesar de muito incomodado pela situação por que passava o Brasil, Chico agradece a Deus por algumas coisas que ainda lhe davam alegria, como a “piada no bar”, “um samba pra distrair”… e “o futebol pra aplaudir”.

Inicialmente vetada pela censura, a música — graças a Deus! — foi depois liberada. | Arquivo Nacional.

30. Partido Alto

No ano seguinte, 1972, no filme “Quando o Carnaval Chegar”, dirigido por Cacá Diegues, Chico Buarque foi ator, autor de algumas músicas da trilha sonora e organizador de animadas peladas nos intervalos das filmagens. Em uma de suas composições, Partido Alto, interpretada pelo MPB4, teve que fazer duas ou três alterações, a mando da censura. O trecho em que ele diz ter pernas adequadas para jogar futebol, porém, passou incólume. No filme, o samba é tema do personagem “Cuíca”, interpretado pelo ator Antônio Pitanga, um típico carioca do morro que veste uma camisa listrada vermelha e preta, referência explícita ao time do Flamengo.

31. Jorge Maravilha

Em comemoração dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no final de 1973 o cantor e compositor Jards Macalé organizou o espetáculo musical “Banquete dos Mendigos”, do qual fazia parte uma das mais polêmicas músicas do repertório de Chico Buarque, Jorge Maravilha, atribuída a um certo Julinho da Adelaide. Alguns meses depois, o jornal Última Hora publicou uma suposta entrevista do novato compositor, concedida ao jornalista Mario Prata. Mais tarde, descobriu‑se que Julinho da Adelaide e Chico Buarque eram a mesma pessoa: tudo não passava de uma estratégia para tentar driblar a censura, que barrava quase todas as músicas de Chico. Surgiu, então, uma polêmica ainda maior: dizia‑se que a letra da música, que diz “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, seria um recado ao então Presidente Ernesto Geisel, cuja filha, Amália Lucy, havia declarado ser fã de Chico Buarque. O compositor sempre desmentiu essa versão: “nunca me passou pela cabeça fazer música para a filha do Geisel”, alegando se tratar da filha de um delegado a quem havia prestado um depoimento, que desejava seu autógrafo. Sendo ou não a filha do presidente, o certo é que, segundo a letra da canção, ela gosta de coisas do cotidiano: “do tango, do dengo… e do Mengo”.

32. Tanto Mar

A censura não dava trégua a Chico Buarque. Em 1975, ele compôs a canção Tanto Mar, que, incluída num show com a cantora Maria Bethânia, foi barrada pelo censor, um personagem importante do mundo do futebol: o ex‑zagueiro Augusto, capitão da Seleção Brasileira na triste Copa de 1950. Chico teria dito ao censor: “Porra, Augusto, você perde a Copa e ainda vem me aporrinhar…”. A canção acabou sendo liberada… sem letra.

33. Meu Caro Amigo

A outro Augusto, o dramaturgo e diretor de teatro Augusto Boal, que em 1976 estava exilado em Portugal, Chico dedicou o chorinho Meu Caro Amigo, cuja melodia foi composta por Francis Hime. A letra, que faz referências ao próprio Francis, a Marieta (esposa de Chico) e a Cecília (esposa de Boal) é, na verdade, o texto de uma carta, contando ao exilado como estava a situação no Brasil naquele momento (“a coisa aqui ‘tá preta”), onde havia “muito samba, muito choro [não exatamente o gênero musical…] e rock’n’roll”, e onde “tão jogando futebol”.

34. Tango do Covil

Em 1977, Chico Buarque se dedicou às composições do musical “Ópera do Malandro”, que iria estrear no ano seguinte (e que seria adaptado para o cinema em 1985). Em uma das canções da peça, Tango do Covil, alguns personagens dizem querer ter a potente voz de Carlos Gardel ou de um locutor de futebol para poderem exaltar os predicados “anatômicos” de uma das frequentadoras do tal covil. No disco original lançado em 1979, a interpretação é do MPB4.

35. Doze Anos

Também faz parte da trilha musical de “Ópera do Malandro” a canção Doze Anos, que tem uma componente autobiográfica. Nela, inspirado no famoso poema “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu (“Oh! que saudades que tenho / Da aurora da minha vida…”), Chico Buarque, em dueto com Moreira da Silva, dá voz a um malandro que, saudoso, se recorda de sua infância quando, entre outras coisas, vivia “chutando lata”, “trocando figurinha” (de jogadores de futebol?), “jogando muito botão” e se divertindo com “o futebol de rua”.

36. Folhetim

Ainda do musical “Ópera do Malandro”, a canção Folhetim, gravada por Gal Costa e Nara Leão, faz uma inédita citação a uma marca de bombom: o “Sonho de Valsa”, lançado pela indústria paulistana de chocolates Lacta no final dos anos 1930 e que permanece sendo muito popular no país. Na mesma época, a Lacta lançou o chocolate “Diamante Negro”, produzido até hoje, em homenagem ao craque brasileiro Leônidas da Silva, artilheiro da Copa do Mundo de 1938, que tinha esse apelido. Pouco depois, a Lacta lançou um outro produto, também comercializado até hoje: o chocolate “Bis”, que, desde janeiro de 2024, numa criativa ação de marketing, é lembrado no novo nome do estádio do São Paulo, o MorumBis.

37. Até o Fim

Com 15 anos de uma sólida e bem‑sucedida carreira, Chico Buarque, em 1978, não tinha nada do personagem retratado no samba Até o Fim, lançado naquele ano. Com ironia e resignação, o protagonista é mau aluno e ruim de bola, mas, mesmo sem perspectiva de se dar bem na vida, ele não desiste…

38. Pivete

A preocupação social, tema recorrente na obra de Chico Buarque, aparece em outra parceria sua com Francis Hime, ainda em 1978, junto com a citação de dois de seus grandes ídolos no futebol: Garrincha e Pelé. A canção Pivete fala da desigualdade social, dos garotos pobres que abordam os motoristas nas esquinas do Rio de Janeiro, e que podem se chamar Pelé, ou podem ter as pernas tortas e se chamar Mané. Curiosa a citação ao bicampeão de Fórmula 1 Emerson Fittipaldi, cujo nome é transformado em “Emersão”, para rimar com “contramão” e com “direção”. Anos depois, essa citação seria “atualizada” para “Ayrtão”, numa referência ao tricampeão Ayrton Senna.

39. Jogo de botão

Citada em Doze Anos, a brincadeira do jogo de futebol de botão sempre foi muito presente na infância de Chico Buarque. Ele diz que “… botões, para a garotada daquele tempo, eram venerados como ícones, beijados, polidos com flanela, concentrados em caixa de charutos e inegociáveis”, e acrescenta: “… os jogos de botão eram muitas vezes uma atividade solitária no chão de madeira da casa dos meus pais. Era eu contra eu mesmo… fazia campeonatos, paulistas e cariocas, juntava aqueles doze times, que eram doze na época no Rio, e doze em São Paulo, e roubava um pouquinho também. Roubava pro Fluminense, ele era sempre campeão”.

Chico X Chico no jogo de botão, o Anysio (à esquerda) enfrenta Buarque | Blog Botões para Sempre

40. Hino do Politheama

Com o tempo, o futebol de botão foi se transformando em coisa séria na vida de Chico Buarque. Aos quinze anos, ele criou seu próprio time e deu‑lhe um nome, inspirado num antigo cinema: “Politheama”, palavra que, derivada do grego, significa “muitos espetáculos”. Para o “uniforme” do time, escolheu uma rara combinação de cores, azul e verde (teria sido uma auto‑homenagem aos seus olhos?), contrariando uma rima em inglês que aprendera na infância (“blue and green / should never be seen”). E, como prova de que a brincadeira era mesmo séria, em 1973 Chico compôs o Hino do Politheama, exaltando suas glórias e “a fama de não perder”.

Politheama, Politheama

O povo clama por você

Politheama, Politheama

Cultiva a fama de não perder

Politheama, Politheama

O povo clama por você

Politheama, Politheama

Cultiva a fama de não perder

O seu pavilhão

Tremula sempre de emoção

Ostenta o galardão

De clube sempre campeão

Augusto e varonil

O nosso time verde-anil

Nas glórias (nas glórias), vitórias (vitórias)

Na história do meu Brasil

41. Fique de olho no apito

A paixão pelo futebol de botão era compartilhada por outros amigos famosos de Chico Buarque, entre eles os componentes do MPB4 e os atores Hugo Carvana e Cláudio Marzo. Os campeonatos organizados por Chico renderam episódios bem curiosos, como o ocorrido numa acirrada disputa entre ele e seu xará, o comediante Chico Anysio, com a arbitragem do “Poetinha” Vinicius de Moraes. A partida ia transcorrendo de forma animada quando, de repente, foi interrompida por um veemente protesto de Chico Anysio: é que, numa flagrante demonstração de falta de imparcialidade, o “senhor juiz” Vinicius de Moraes estava assobiando o hino do seu adversário… o Hino do Politheama!

Vinícius de Moraes e Chico Buarque fizeram muitas tebelinhas musicais e pelo menos uma no futebol de botão… | Blog Botões para Sempre.

42. Música X Cinema

Maior do que a paixão pelo futebol de botão, porém, é a paixão pela “pelada”, que, como Chico Buarque escreveu, “… é praticada por moleques de pés descalços no meio da rua, em pirambeira, na linha de trem, dentro do ônibus, no mangue, na areia fofa, em qualquer terreno pouco confiável. Em suma, pelada é uma espécie de futebol que se joga apesar do chão”. A partir do final da década de 1960, Chico passou a jogar futebol três vezes por semana, com seus amigos. Naqueles tempos, aos domingos, no campo do Madureira E.C., na Rua Conselheiro Galvão, Zona Norte do Rio de Janeiro, ocorriam os “clássicos” Música X Cinema. No primeiro time, além de Chico, costumavam jogar a turma do MPB4, Paulinho da Viola e os irmãos Maurício e Paulinho Tapajós. Já no time dos cineastas, as estrelas eram os diretores Cacá Diegues, Júlio Bressane e Paulo César Saraceni.

Chico Buarque (ao centro) ao lado de Paulinho da Viola. Década de 1970. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

43. Gigante do Recreio e Colosso da Barra

Em 1978, com o mesmo hino do time de botão, mas trocando a mesa pelo gramado, surgiu o Politheama, agora um time de pelada, que inaugurou sua sede própria no bairro do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. O “estádio” (na verdade, um campo de futebol “soçaite”, com um bar anexo) recebeu o pomposo nome de “Centro Recreativo Vinicius de Moraes, Gigante do Recreio e Colosso da Barra” (teria sido essa homenagem uma retribuição à parcialidade do juiz de botão?).

O time do Politheama: ganhando troféu no dia da inauguração de seu estádio. 1978. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

44. Calçada da fama

No Centro Recreativo Vinicius de Moraes, uma espécie de “calçada da fama” exibe as marcas dos pés de alguns craques do futebol profissional que por lá passaram; dentre eles, Zizinho, Reinaldo, Zico, Júnior, Leandro e Romário.

45. Times de artistas

Diversos artistas já envergaram a gloriosa camisa do Politheama, como os músicos Alceu Valença, Carlinhos Vergueiro, Evandro Mesquita, João Nogueira, Jorge Ben Jor, Luís Melodia, Maurício Tapajós, Moraes Moreira, MPB4, Paulinho da Viola, Paulinho Tapajós, Pepeu, Raimundo Fagner, Sílvio César e Vinicius Cantuária, os atores Antônio Pitanga e José de Abreu e o empresário Vinícius França, que tem a fama de ser o grande craque do Politheama (depois de Chico Buarque, evidentemente). Alguns não demonstraram tanto talento: “Edu Lobo, Francis Hime e João Bosco eram reservas”, explica Chico, que também entrega que houve quem nem quisesse entrar em campo: “o Bituca (Milton Nascimento) uma vez apareceu lá de terno… acho que ele queria ser juiz”. Rival do Politheama, o Namorados da Noite, time de artistas de São Paulo, também andou se exibindo no campo do Recreio dos Bandeirantes. Chico Buarque, inclusive, chegou a atuar ao lado de seus amigos paulistas, como o locutor esportivo Osmar Santos, o músico Toquinho, o produtor musical Fernando Faro e os artistas plásticos Luiz Briquet e Elifas Andreato.

Com Carlinhos Vergueiro, cantor, compositor e boleiro, e com Vinícius França, empresário e craque do time. 1978. | Instituto Antônio Carlos Jobim.
Milton Nascimento: desta vez, sem o terno… mas nunca com o uniforme do time. Década de 1980. | Instituto Antônio Carlos Jobim.
Emprestado pelo Politheama aos rivais paulistas do Namorados da Noite (entre eles, Osmar Santos, Toquinho, Elifas Andreato e Fernando Faro). | Acervo Luiz Briquet.

46. O Rei do Reggae

No dia 19 de março de 1980 o campo do Politheama recepcionou a maior celebridade da música internacional que lá esteve: o cantor jamaicano Bob Marley. Numa ação de marketing de sua gravadora alemã, a Ariola, que acabara de ser lançada no Brasil, o “Rei do Reggae” veio para o país para uma visita relâmpago, de apenas dois dias. Fanático por futebol e fã declarado do futebol brasileiro, o cantor jamaicano foi convidado para participar de uma pelada no Recreio dos Bandeirantes, na qual estiveram presentes, além de Chico Buarque, Alceu Valença, Moraes Moreira, Evandro Mesquita, Toquinho, Carlinhos Vergueiro e o jogador Paulo Cézar Lima, o “Caju”, que na época atuava pelo Vasco da Gama. Consta que o jogo teria terminado 3X0, com gols de Chico, Caju e do próprio Bob Marley. No Museu do Reggae, na Jamaica, está exposta uma foto de Chico Buarque, ao lado de Bob Marley, tirada nesse dia. Foi sua primeira e única visita ao Brasil. Ele morreria de câncer, pouco mais de um ano depois, aos 36 anos de idade, sem jamais ter feito um show por aqui… o único palco brasileiro em que ele se exibiu foi o gramado do Politheama.

O “Rei do Reggae”, entre os craques Caju e Chico: trio de artilheiros (?). 19 mar. 1980. | Blog do Hurb.

47. O Campo do Chico

Endossando o que diz a letra do hino do Politheama (“cultiva a fama de não perder”), Chico Buarque afirma, sem merecer muito crédito, que, nas centenas de partidas disputadas, o time jamais foi derrotado, “… embora já tenha tido alguns empates (amistoso não conta)”. De fato, seus jogadores são bem competitivos, a começar do próprio Chico, que atua como “centroavante recuado”. Mas, entre eles, reina um clima de camaradagem, muito bem retratado no samba O Campo do Chico (O Baba do Chico), de Jerônimo Jardim, com letra de Paulinho Tapajós, que por muitos anos frequentou as peladas do Politheama.

48. Músicas dos outros

Chico Buarque é considerado um “cantautor”, isto é, um autor de músicas que ele também interpreta. Mas houve casos em que ele registrou músicas de outros compositores. E pelo menos cinco delas fazem referência ao futebol. A primeira vez em que isso aconteceu foi em 1979, quando gravou o frevo Salve a Torcida, do compositor pernambucano Carlos Fernando, no primeiro disco de uma coletânea de frevos com o título “Asas da América”. Em 1994, o compositor mineiro Nelson Angelo pôs letra no chorinho Um a Zero, que Pixinguinha e Benedito Lacerda haviam feito em 1919 para celebrar a conquista do Campeonato Sul‑Americano pela Seleção Brasileira. Com a nova letra (que fala de futebol mas não faz referência ao torneio de 1919), Nelson Angelo, em dueto com Chico Buarque, gravou o chorinho em seu disco “A Vida Leva”. E, no documentário “Chico Buarque — O Futebol”, dirigido por Roberto de Oliveira em 2005, Chico registrou os sambas Conversa de Botequim, de Noel Rosa e Vadico; …E o Juiz Apitou, de Wilson Batista e Antônio Almeida; e Nega Manhosa, de Herivelto Martins.

Da lavagem da roupa

Do biscate que transa

Do apito da fábrica

A buzina do fusca

Todos eles trabalham

Todos eles investem

Na poupança pro Mengo

Uma vez por semana

Toda jogada bonita

Merece um gol

Por isso salve as bandeiras

No Maracanã

Toda torcida cantando

Merece um fã

Merece amor

Merece um gol

49. E se…

Em 1980, Chico Buarque, torcedor do Fluminense, e seu parceiro Francis Hime, torcedor do Vasco, resolveram fazer uma concessão ao rival Botafogo de Futebol e Regatas, citando‑o na letra do samba E se…. A citação, porém, vem carregada de sutil ironia e gozação. O verso “… e se o Botafogo for campeão” era mais um entre tantos fatos altamente improváveis de acontecer naquele tempo, como “… o oceano incendiar” ou “… cair neve no sertão”, ou ainda “… o meu amor gostar então de mim”. De fato, depois da “Tríplice Coroa” conquistada em 1968 (Taça Brasil, Campeonato Carioca e Taça Guanabara), já fazia doze anos que o “time da estrela solitária” não vencia uma competição sequer. Esse “jejum” de títulos só se encerraria em 1989, com a conquista do Campeonato Carioca, numa vitória épica sobre o rival Flamengo. A letra do samba faz igual referência a outra equipe alvinegra, mas de passado bem menos “glorioso”: a Agremiação Sportiva Arapiraquense, mais conhecida como ASA, referida na música pelo exótico nome de sua cidade: Arapiraca, no estado de Alagoas. Fundado em 1952, o ASA só possuía um título na época em que o samba foi lançado: o Campeonato Alagoano de 1953. Eram, portanto, 27 anos sem conquistas. O clube ainda teria que aguardar mais vinte anos para, em 2000, com uma vitória sobre o CSA, finalmente comemorar seu segundo título alagoano. E, dois anos depois, causaria enorme surpresa ao eliminar o poderoso Palmeiras do técnico Vanderlei Luxemburgo ainda na primeira fase da Copa do Brasil de 2002, em pleno Estádio Palestra Itália.

50. Eu Te Amo

O futebol deu também uma pequena contribuição para uma das mais inspiradas letras de Chico Buarque, a da canção Eu Te Amo, parceria com Tom Jobim, também de 1980. Na estrofe: “Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios / Rompi com o mundo, queimei meus navios / Me diz pra onde é que inda posso ir”, a citação à queima de navios se refere a Francisco Pizarro, conquistador espanhol do Peru, que, para evitar que seus soldados, depois de desembarcarem, desistissem do ataque aos incas, ateou fogo às próprias embarcações. Esse episódio lhe havia sido contado por seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda. Segundo relato do companheiro de peladas de Chico, o ilustrador Elifas Andreato, estavam ambos a caminho de mais uma partida de futebol quando o compositor, ainda envolvido na elaboração da letra dessa canção, parou abruptamente o carro, arranjou um telefone e ligou para seu pai, a fim de que ele lhe confirmasse essa passagem histórica.

51. Reserva do Sócrates

Em viagens que fazia ao exterior, em lugares em que não era muito conhecido, Chico, para impressionar seu interlocutor, algumas vezes se apresentava como ex‑jogador de futebol. Ele conta: “Quando você diz que é brasileiro no exterior, o pessoal começa a falar de futebol. Dizer que você foi jogador é uma maneira de ganhar ponto com eles. Numa conversa com motorista de táxi, por exemplo, o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro. Então, eu assumia a identidade de jogador de futebol. Eu dizia que tinha sido convocado para a Seleção de 1982: tinha sido reserva do Sócrates”. Certa vez, chegando a Paris, Chico teria sido abordado por um funcionário do aeroporto que, notando a movimentação em torno dele, lhe perguntou se era alguma estrela: “Sou um famoso jogador de futebol”. “E aquela caixa de violão na esteira?”, perguntou, cético, o funcionário. “É o disfarce para as minhas chuteiras”. Ele mesmo reconhece: “Acho que o pessoal não acreditava muito em mim”.

52. Nelson Rodrigues

Chico Buarque teve uma relação complicada com Nelson Rodrigues. O dramaturgo e escritor era admirador do cantor e compositor (que, no futuro, também seria dramaturgo e escritor) desde os tempos de A banda, sobre a qual escreveu em sua coluna do jornal O Globo: “… é a mais doce música da Terra… com A Banda, começa uma nova época da música popular no Brasil”. Há quem atribua a Nelson a frase “Chico é a única unanimidade nacional”, o que seria bem surpreendente para quem dizia que “toda unanimidade é burra” (na verdade, aquela frase é de Millôr Fernandes). Apesar dessa admiração, sempre que solicitado a compor trilhas sonoras para peças ou adaptações cinematográficas de textos de Nelson, Chico recusava‑se terminantemente a fazê‑lo. Embora fossem ambos amantes do futebol e do Fluminense (mais do primeiro que do segundo), suas posições políticas eram completamente antagônicas, já que Nelson apoiava o regime militar que Chico combatia. Contrariado com os ataques que Nelson fazia aos ativistas da esquerda, Chico teria desabafado numa entrevista: “preferia que ele falasse mal de mim também”.

53. Mil Perdões

Por ironia do destino, Nelsinho, filho Nelson Rodrigues, era militante do MR8 (“Movimento Revolucionário 8 de Outubro”, de oposição ao regime) e passou sete anos preso pelos militares. Depois de solto, tornou‑se frequentador dos jogos no campo do Politheama. Em 1983, Nelsinho conseguiu convencer Chico a fazer uma canção para o filme “Perdoa‑me por Me Traíres”, baseado em peça homônima escrita por seu pai (falecido três anos antes). Chico, então, compôs Mil Perdões, em cuja letra faz uma sutil inversão em relação ao título do filme, atribuindo à personagem interpretada por Vera Fischer a frase “te perdoo por te trair”.

54. Mano a Mano

Em sua única parceria com o compositor (e torcedor do Flamengo) João Bosco, o samba Mano a Mano, de 1984, Chico Buarque descreve as viagens de dois caminhoneiros pelas estradas brasileiras, em disputa por uma mesma mulher. São citados os nomes de diversas cidades do interior do Brasil que, utilizados na letra como adjetivos ou substantivos comuns, servem para descrever a tal mulher. As cidades citadas são (na ordem em que aparecem): Estrela-RS, Flor do Sertão-SC, Pérola d’Oeste-PR, Consolação-MG, Nova Viçosa-BA, Matriz (de Camaragibe)-AL, Diamantina-MG, Imperatriz-MA e Três Corações-MG. Esta última é conhecida no mundo todo por causa de um certo personagem da realeza do futebol…

55. Diretas Já

Com exceção do primeiro, realizado na praça em frente ao Estádio do Pacaembu, que leva o nome daquele que é considerado o “Pai do Futebol Brasileiro”, Charles Miller, Chico Buarque esteve presente nos principais comícios da campanha das “Diretas Já”, em 1984: o da Praça da Sé, em São Paulo; o da Candelária, no Rio de Janeiro; e o do Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Neste último, declarou: “Ninguém do Planalto pode ignorar o que está acontecendo em todo o País. Tive essa impressão quando saí do primeiro comício, na Praça da Sé. Sabia que a coisa ia explodir nessa imensa demonstração de vida que o povo brasileiro está dando”. Já o mundo do futebol esteve muito bem representado no palanque montado sob o Viaduto do Chá, pelos locutores esportivos Osmar Santos e Oswaldo Maciel e pelos jogadores Sócrates, Wladimir, Casagrande e Juninho, além do diretor Adilson Monteiro Alves, os principais líderes da “Democracia Corinthiana”, que, havia dois anos, preconizava mudanças na forma de gestão do futebol. Sócrates, a grande estrela do time, que na ocasião relutava em aceitar tentadoras propostas de times europeus, fez uma solene promessa: “Caso a emenda Dante de Oliveira passe na Câmara dos Deputados, eu não vou embora do meu país”. Solicitado a confirmar sua promessa, Sócrates a repetiu, trocando uma palavra: “Não vou embora do nosso país”.

Entre Fernando Henrique Cardoso e Osmar Santos: vontade expressa na camisa. 1984. | Foto: Rogério Reis.

56. Vai Passar

Osmar Santos teve participação marcante no movimento das “Diretas Já”. Locutor esportivo de rádio, muito criativo, autor de bordões inesquecíveis como “Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha”, o “Pai da Matéria”, com seu imenso poder de comunicação, auxiliado por seu companheiro da Rádio Globo Oswaldo Maciel, foi uma espécie de mestre de cerimônias dos grandes comícios. Como ninguém, soube unir os políticos nos palanques ao povo nas ruas. Outra voz sempre presente foi a da cantora paraense Fafá de Belém que, nos comícios, cantava o Hino Nacional Brasileiro e Menestrel das Alagoas, canção de Milton Nascimento e Fernando Brant composta em homenagem a Teotônio Vilela. Indiretamente, Chico Buarque foi o responsável pela presença de Fafá nos palanques, já que sua canção Sob Medida, composta em 1979, a havia projetado no cenário musical brasileiro. Apesar de a “Emenda Dante de Oliveira” não ter sido aprovada na Câmara, outra canção de Chico, o samba Vai Passar, de 1984, outra parceria com Francis Hime, manteria a esperança de que o regime então vigente poderia acabar em pouco tempo, o que de fato ocorreu no ano seguinte, com a eleição do civil Tancredo Neves.

57. Pelas Tabelas

Outro samba, Pelas Tabelas, composição só de Chico Buarque, também se refere ao período do movimento das “Diretas Já”. Retrata um homem que sai aflito em busca de sua amada (ou será que ele buscava a democracia?), cruzando com pessoas vestindo blusas amarelas nas ruas, nas favelas, nos cordões de sambistas e até no Maracanã, onde “a galera aplaudia de pé as tabelas” (Pelé e Coutinho? ou Washington e Assis, o “Casal 20” do Fluminense?) e onde rolava sua cabeça (ou seria a cabeça de João Batista, aquele que foi decapitado por Salomé e que, “por coincidência”, era xará do então Presidente Figueiredo?).

59. Maracanã

Citado no samba Pelas Tabelas, o Maracanã é o estádio mais familiar a Chico Buarque. Ele o frequenta, como torcedor, desde os tempos de menino, quando, mesmo morando em São Paulo, ia passar suas férias no Rio de Janeiro. Nessa época, ele ficava impressionado com o tamanho do estádio: “Fora o Rio Amazonas, era a primeira coisa maior do mundo que faziam no Brasil”, brinca. Depois de ficar algum tempo afastado das arquibancadas do Maracanã por causa da pandemia e dos shows, Chico foi assistir ao seu Fluminense, menos de um mês depois de ter conquistado o título carioca de 2023 (ganhando de 4X1 na final contra o Flamengo), no “clássico” contra o Vasco da Gama (empate em 1X1), jogo válido pela quarta rodada do Brasileirão de 2023. Ao lado do presidente do clube, Mário Bittencourt, de quem ganhou uma camisa ‘9’ do Tricolor, Chico não economizou elogios ao time e ao técnico Fernando Diniz: “Eu tenho acompanhado demais, essa equipe está irresistível. Estou apaixonado pelo time do Diniz, pelo futebol que está jogando, é algo único. Mesmo se eu não fosse tricolor, certamente acompanharia, assim como fiz com o Santos de Pelé na minha infância”. Parece que ele estava adivinhando o que aconteceria no fim do ano, naquele mesmo Maracanã: a maior conquista da história do Fluminense, a da Copa Libertadores da América, batendo o Boca Juniors por 2X1. Apesar da rivalidade do Fluminense com o Flamengo, Chico Buarque também já foi visto nas arquibancadas do Maracanã no meio da torcida rubro‑negra. Isso aconteceu no jogo Flamengo 1X0 Botafogo, o primeiro da final do Campeonato Carioca de 2008, que seria conquistado pelo time da Gávea ao vencer também a segunda final, por 3X1. A presença de Chico em meio à torcida rival estava mais do que justificada: ele acompanhava seu neto Francisco, então com 11 anos, flamenguista fanático.

No Maracanã, com a camisa 9 do Flu, personalizada, ganha do presidente do clube. 07 maio 2023. | Fluminense Football Club.
No Maracanã, com o neto, Francisco, flamenguista. 27 abr. 2008. | GloboEsporte.com.

60. Preliminar do Flu

Mas não é só como torcedor que Chico Buarque tem frequentado o Maracanã… Por cinco ou seis vezes o “peladeiro” Chico Buarque já pisou o gramado do estádio. A primeira delas foi num jogo entre artistas, com os times vestindo as camisas do Fluminense e do America carioca, cujos times profissionais jogariam logo em seguida, em partida válida pela final da Taça Guanabara de 1975. O torcedor Chico ficou feliz: o Flu foi campeão, ganhando por 1X0, gol de falta de Rivellino no último minuto da prorrogação (seu primeiro título estadual, apenas dois meses depois de ter deixado o Corinthians, pelo qual, em dez anos, não tivera nenhuma conquista dessa importância). O “peladeiro” Chico não teve motivos para comemorar: seu time perdeu por 10X2, e ele teve uma atuação considerada “discreta”.

No Maracanã, o time de artistas do Fluminense: em pé: Armando Pittigliani (produtor musical), Sérgio Chapelin (apresentador de TV), goleiro convidado, Lindolfo Gaya (maestro), Flávio Cavalcanti Jr. (filho do apresentador), Junior Mendes (filho do jornalista Luís Mendes), Pedrinho (músico do The Fevers) e Miele (produtor musical, ator); agachados: massagista, Ruy e Miltinho (cantores do MPB4), Paulinho Tapajós (compositor), Nonato Buzzar (cantor e compositor), Silvio Cesar (cantor e compositor), Chico, Mazola (produtor musical) e Lug de Paula (comediante (o “Seu Boneco”), filho de Chico Anysio). 27 abr. 1975. | Museu da Pelada | Acervo Sérgio Pugliesi.

60. Preliminar do Fla

No dia primeiro de junho de 1980, Chico Buarque voltou ao gramado no Maracanã, para disputar outra preliminar, desta vez da final do Campeonato Brasileiro de 1980, entre Flamengo e Atlético Mineiro. Em vez da camisa do Fluminense, Chico vestiu uma camisa da Ariola, gravadora alemã que havia se estabelecido no Brasil e que acabara de contratá‑lo. Seu time foi formado por artistas ligados à gravadora: Agnaldo Timóteo, Aquiles (do MPB4), Arnaud Rodrigues, Carlinhos Vergueiro, Carlos Dafé, Djavan, Gonzaguinha, João Nogueira, Jorge Ben (ainda não era Ben Jor), Marco Mazzola (fundador da filial brasileira da Ariola), Miltinho (do MPB4), Moraes Moreira, Paulinho da Viola, Raimundo Fagner, Ruy (do MPB4) e Toquinho. Os artistas enfrentaram atletas e ex‑atletas profissionais, que representavam a AGAP (Associação de Garantia do Atleta Profissional), do Rio de Janeiro. Dentre eles, os campeões mundiais Félix, Zé Maria… e a principal atração do jogo, Garrincha, que tentava sobreviver fazendo jogos de exibição pelo Brasil, mas já apresentava sinais da doença que o mataria, pouco mais de dois anos depois. De novo o time de Chico Buarque saiu derrotado, mas desta vez por um placar menos desonroso: 3X0, gols de Dionísio, Antunes e Neivaldo. No jogo principal, perante 155 mil torcedores, vitória do Flamengo por 3X2. Nunes (dois gols) e Zico (irmão de Antunes… ou seria o contrário?) fizeram os gols do campeão brasileiro de 1980, e Reinaldo (dois gols) fez os do Atlético.

Chico em três tempos: nos vestiários, com Arnaud Rodrigues, Ruy e Djavan / em campo, com Djavan e Moraes Moreira / ao final do jogo, dando entrevista com pinta de craque. 01 jun. 1980. | Instituto Antônio Carlos Jobim.
Saudando a torcida com a camisa número 9. 01 jun. 1980. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

61. O Maraca é nosso

Torcendo ou jogando, Chico Buarque considera o Maracanã quase que como uma extensão de sua casa. Por isso, em 2012, não hesitou em participar de uma campanha em defesa do estádio, quando este esteve ameaçado de ser privatizado ou de ter alguns prédios do seu entorno demolidos por causa da Copa do Mundo de 2014. Chico literalmente “vestiu a camisa” da causa “O Maraca é nosso”, e até gravou um vídeo, no qual reafirmava seu amor pelo estádio e defendia sua preservação: “Eu acho que a gente deve lutar para que este espaço permaneça sendo um espaço popular, um espaço público. O Maraca é nosso! O Maraca não está à venda!”.

62. Canta Brasil

Estádios não foram feitos apenas para torcer ou jogar futebol. Como tantos grandes artistas brasileiros e estrangeiros, Chico Buarque também já se apresentou em estádios para… cantar! Em 1982, ele encabeçou uma lista de importantes nomes da música brasileira que participaram do show “Canta Brasil”, que teve duas edições. A primeira, no Estádio do Morumbi, do São Paulo, estava prevista para o sábado, 6 de fevereiro, mas, devido a fortes chuvas, acabou sendo transferida para o dia seguinte. A segunda, realizada no dia 30 de abril, no Estádio do Beira‑Rio, do Internacional de Porto Alegre. O público estimado para cada um desses shows foi de cerca de 100 mil pessoas.

Com Marieta e Renato Aragão, nos bastidores do “Canta Brasil”, no Estádio do Morumbi.07 fev. 1982. | Efemérides do Éfemello.

63. As minhas meninas

Nos estádios, Chico Buarque torceu, jogou e cantou… mas nunca arbitrou. Exercer a função de juiz num campo de futebol não parece combinar com sua personalidade. Mas, em casa… Em 1986, já tendo passado dos quarenta anos, a pedido de Silvia, sua filha mais velha, Chico compôs para a peça juvenil “As Quatro Meninas”, de Lenita Plonczynski, a canção As Minhas Meninas, sobre a qual afirmou: “Nessa música eu digo que tenho ciúme, que sou possessivo e que tudo isso é uma grande besteira. Que é inútil eu ser ciumento, que é inútil eu ser possessivo, que é inútil dizer que são minhas, são minhas, são minhas, porque elas não são, elas já vão embora, e essa sensação de perda é constante”. Alguns anos antes, vestido de juiz de futebol, Chico havia tirado uma foto ao lado de suas quatro meninas: as filhas Silvia, Helena e Luísa, e sua então esposa Marieta Severo, com quem foi casado por mais de 30 anos.

O árbitro e suas meninas. Década de 1980. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

64. Cantando no toró

Por causa de um sonho, em 1987 Chico compôs Cantando no Toró, em cuja letra, num trecho em que faz uma breve reflexão sobre o tempo, aparece uma citação ao futebol. O samba é uma espécie de gozação à canção Singing in the Rain, imortalizada por Gene Kelly no filme homônimo.

65. Baticum

Com o compositor Gilberto Gil, Chico Buarque já havia feito Cálice, música icônica dos tempos da censura rigorosa. “O Gil diz que é goleiro… mas eu nunca o vi jogar”, disse Chico sobre esse seu parceiro, que também é torcedor Tricolor no Rio (e também na Bahia). Em 1989, com a chegada da abertura política e econômica, a dupla voltou a se reunir para compor Baticum, cujo tema é justamente o poder da iniciativa privada e das grandes corporações multinacionais, que patrocinam uma grande festa a beira‑mar, na qual aparece uma porção de gente, inclusive o brasileiro mais global da história, que “pintou, só que não quis ficar”.

66. O Futebol

Depois de tantas composições suas com citações ao futebol, em 1989, finalmente, Chico Buarque compôs uma canção toda ela dedicada a essa sua paixão, gravada por ele e pelo Quarteto em Cy. Após as derrotas das seleções dirigidas por Telê Santana nas copas de 1982 e 1986, quando começaram as discussões contrapondo o “futebol-força” ao “futebol-arte”, Chico sempre deixou clara sua opção pelo segundo: “… o futebol acima dessas artes todas (música, pintura). Não que eu considere o futebol uma arte superior a essas. Mas há certos momentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relances que acontecem no futebol, que artista nenhum consegue produzir”. Essa opção é reforçada na letra da música: “… para aplicar uma firula exata / que pintor / para emplacar em que pinacoteca, nega / pintura mais fundamental / que um chute a gol”. Com o simples título O futebol, o samba ganhou um subtítulo, que é uma dedicatória ao seu “ataque dos sonhos”: Para Mané, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro.

67. Mané

Quando Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha, apareceu no Botafogo, o menino Chico Buarque vivia na Itália, onde seu pai era professor. Em 1955, quando a família Buarque de Hollanda voltou a São Paulo, Garrincha tornou‑se o grande ídolo de Chico, que ia vê‑lo no Maracanã, durante suas férias passadas no Rio de Janeiro. Contratado pelo Corinthians em 1966, o jogador mudou‑se para São Paulo no mesmo ano em que Chico voltou a morar no Rio. Só em 1969 os dois passaram a residir na mesma cidade: Roma. Com a esposa, a cantora Elza Soares, Garrincha também cumpria uma espécie de autoexílio. Elza tinha uma extensa agenda de shows para cumprir na Itália. Já Mané, não oficialmente aposentado, ainda sonhava em ser contratado por algum time. No período em que esteve na Itália, porém, só conseguiu pequenos “cachês” para atuar em jogos entre equipes amadoras. E era Chico quem o levava a essas partidas, exercendo informalmente a função de seu motorista. Em compensação, quando ambos saíam juntos, Chico se beneficiava do enorme prestígio que Garrincha tinha entre os italianos, muito maior do que o dele próprio. Num bar próximo de onde morava, de repente o artista passou a ser mais bem tratado: “até aí, ninguém me dava bola nesse bar; depois, virei ‘o amigo do Garrincha’”. A convivência com o seu ídolo fez com que Chico desfizesse certa ideia preconcebida sobre uma possível limitação intelectual de Garrincha. Nas longas conversas que tiveram, sobre futebol e música, Chico percebeu que “ele não tinha nada de burro, era sensível, entendia João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória, mais ingênua, talvez. Mas não! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto”. Chico também sempre nutriu grande admiração por Elza Soares, que conhecia desde os tempos dos festivais da TV Record. Quando ela faleceu, em 2022, Chico escreveu: “… nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares”. Após citar Garrincha em Pivete (e ainda iria citá‑lo em Barafunda), Chico o escalou na ponta‑direita do seu “ataque dos sonhos” d’O Futebol. Aqui, no verso “parafusar algum joão”, o compositor usa o nome com que Garrincha costumava chamar qualquer um de seus marcadores.

No Maracanã, na preliminar de Flamengo X Atlético Mineiro: provavelmente, a única foto com Chico e Garrincha… no Brasil. 01 jun. 1980. | Instituto Antônio Carlos Jobim.

68. Didi

Waldir Pereira, o Didi, despontou para o futebol jogando pelo Fluminense, quando Chico ainda era um menino. Escalado na meia‑direita do “ataque dos sonhos”, foi o único que atuou pelo Tricolor carioca. Mas, mesmo que isso não tivesse acontecido, dificilmente Chico deixaria de incluí‑lo nesse ataque. Apelidado de “Príncipe Etíope” por Nelson Rodrigues, Didi é referenciado na letra de O Futebol pelo uso da expressão “folha seca”, utilizada pelos jornalistas para descrever a trajetória que a bola tomava nos seus chutes (a bola descaía de repente, como se fosse uma “folha seca” caindo de uma árvore).

69. Pagão

Em suas peladas, Chico Buarque usa invariavelmente a camisa ‘9’, e diz que sua posição é “centroavante recuado”. Na súmula, assina “Pagão”. Afinal, o seu maior ídolo no futebol foi Paulo César Araújo, o verdadeiro Pagão, que, ao lado de Pelé e Pepe, formou o célebre ataque “PPP” do Santos no fim dos anos 50 e início dos anos 60, e agora era escalado como centroavante do “ataque dos sonhos” de Chico. “Ele era demais em campo. Um jogador de uma leveza admirável. Adorava quando ele pegava a bola no ar e com a parte de fora do pé, vindo de trás, chapelava o adversário. Quando morei em São Paulo, só ia ver futebol por causa do Pagão, para mim mais elegante e mais técnico que o Pelé”, analisa Chico Buarque. Por essa análise, conclui‑se que os versos “Parábola do homem comum / Roçando o céu / Um / Senhor chapéu” de O Futebol se referem a Pagão, que, em 1984, esteve no Rio de Janeiro a convite de Chico Buarque, e pôde com ele “bater uma bolinha” no campo do Politheama.

“Pagão” e Pagão, centroavantes camisa ‘9’ do Politheama e do Santos. 1984. | Blog DNA Santástico.

70. Pelé

“O Pelé músico está para o Pelé jogador de futebol assim como o Chico jogador de futebol está para o Chico músico”. Elogiosa ou crítica, entenda‑se como quiser, essa frase mostra as paixões e os talentos de ambos. Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, que Chico viu (e admirou) tantas vezes, no Pacaembu ou no Maracanã, já tinha sido citado em Pivete e em Baticum (e, como Garrincha, também seria citado em Barafunda). Em O Futebol, ele é o “Rei”, o “homem‑gol”, escalado na meia‑esquerda do “ataque dos sonhos”. “Eu sonho que sou Pelé!”, confessou Chico. Em 2006, numa visita que Pelé fez ao campo do Politheama, ambos envergando a camisa verde‑anil do time, cantaram em dueto o samba Preconceito, de Wilson Batista e Marino Pinto, e bateram um animado papo sobre futebol. Nessa conversa, Pelé perguntou a Chico quantos gols ele já tinha marcado. Chico disse não saber. Antes que Pelé pudesse zombar dele, Chico explicou: “É que depois do milésimo, parei de contar…”.

71. Canhoteiro

A admiração de Chico Buarque por José Ribamar de Oliveira, o Canhoteiro, surgiu quando o jogador iniciava sua carreira no São Paulo, time do qual o menino Chico, morando na capital paulista, foi torcedor. Muito habilidoso, driblador e veloz, o ponta‑esquerda tricolor era uma espécie de “Garrincha da esquerda”. Chico só lamenta as poucas chances do jogador na Seleção: “… Zagalo usurpou sua camisa na Copa de 58, privando o planeta de ver o que só eu via”. Talvez para corrigir essa “injustiça”, Canhoteiro foi escalado na ponta‑esquerda do seu “ataque dos sonhos”. Em O Futebol, os versos “Para avisar a finta enfim / Quando não é / Sim / No contrapé / Para avançar na vaga geometria / O corredor / Na paralela do impossível” parecem ter sido inspirados nele. Ao ponta foi também dedicada a canção Canhoteiro, gravada por dois de seus autores, Zeca Baleiro (torcedor do quadricolor Maranhão e do alvinegro Santos) e Raimundo Fagner (companheiro de peladas de Chico Buarque e torcedor dos tricolores Fluminense e Fortaleza).

72. Biscate

A partir dos anos 90, Chico Buarque diminui sensivelmente seu ritmo de shows e de gravações de discos, passando a se dedicar mais à literatura. Mesmo assim, algumas de suas composições dessa época ainda fazem citações ao futebol. É o caso do samba Biscate, gravado em 1993 em dueto com Gal Costa, no qual, em meio a uma discussão de relação de um casal, o homem diz à mulher: “quieta que eu quero ouvir / Flamengo e River Plate”. A citação ao Flamengo é facilmente explicável: trata‑se do time da maior torcida do Brasil. Já o time argentino do River Plate só foi incluído, segundo o autor, porque seu nome rima com “respeite” e “leite”. De qualquer forma, em outubro daquele ano houve de fato um confronto entre os dois times, em jogos de “ida e volta” pelas quartas-de-final da Supercopa da Libertadores, um torneio já extinto que reunia os campeões da Taça Libertadores da América. Naquela ocasião, o Flamengo se classificou para as semifinais, batendo o River no Maracanã, na disputa de pênaltis, depois de uma vitória para cada lado.

73. Mangueira

Eclético, o compositor Chico Buarque fez canções em diversos gêneros musicais: marcha, bossa nova, samba‑canção, bolero, choro, valsa… até tango! Mas o gênero musical mais recorrente de sua obra é o samba. Chico é um autêntico sambista! Ele até já foi chamado de “o novo Noel Rosa”! Carioca da gema, ele tem sua escola de samba do coração: a Mangueira, cujas cores, “verde e rosa”, teriam vindo do futebol: Cartola, um dos seus fundadores, era, como Chico, torcedor do Fluminense, e queria que a escola fosse verde e grená. Porém, na hora de fazer as fantasias, só encontraram tecido cor‑de‑rosa no comércio… e ficou verde e rosa mesmo! Quando o Fluminense contratou o jogador Rivellino, surgiu até a “Manga‑Flu”, uma torcida organizada que uniu as duas paixões. Para a Mangueira, Chico dedicou dois sambas. No primeiro, Estação Derradeira, de 1987, ele mostra as mazelas do Rio de Janeiro, mas preserva sua escola, que, em vez da “estação primeira” (ficava na primeira parada dos trens que saíam da Central do Brasil), ele chama de “derradeira”. O outro, Piano na Mangueira, de 1992, é sua última parceria com Tom Jobim, que naquele ano havia sido enredo do desfile da escola. Apesar de certa tradição em vitórias com enredos homenageando personalidades da música (como Braguinha e Dorival Caymmi), a homenagem a Tom Jobim obteve apenas um sexto lugar. Em 1998, porém, com Chico da Mangueira, a escola voltou a ser campeã. Se hoje, com seus 20 títulos no Carnaval, a Estação Primeira de Mangueira busca alcançar o recorde da Portela (que tem 22), no futebol o Sport Club Mangueira detém um triste recorde, que dificilmente será batido: em 1909, jogando com apenas dez jogadores, perdeu por 24x0 para o Botafogo, a maior goleada da história do futebol brasileiro. Fundado em 1906 por operários da fábrica “Chapéus Mangueira”, mas com sede em outro bairro, a Tijuca, o time, além do nome, não teve quase nada em comum com a escola, com a qual nem sequer coexistiu: em 1927, um ano antes dela nascer, foi extinto e, por causa de suas cores (vermelho e preto), acabou se fundindo ao Flamengo.

74. Cronista

Em junho e julho de 1998, Chico Buarque esteve na França acompanhando a Copa do Mundo e fez parte do time de cronistas do jornal O Estado de S.Paulo, ao lado de nomes importantes como Armando Nogueira, Luis Fernando Verissimo, Tostão, Matthew Shirts e Mário Prata. Nos domingos entre 7 de junho e 12 de julho o jornal publicou seis crônicas suas, também publicadas pelo jornal O Globo, cujos títulos foram: “Nossos craques são todos mais artistas”, “Com meus botões’, “O moleque e a bola”, “Gritos e sussurros”, “Os melhores momentos” e “Até a próxima”. Cinco delas foram depois incluídas no livro “Donos da Bola”, organizado por Eduardo Coelho, em 2006. Nessas crônicas, Chico relatou lembranças da infância, descreveu a atmosfera de Paris em tempos de Copa do Mundo, explicou que “o drible de corpo é quando o corpo tem presença de espírito” e até criou um texto de ficção sobre um torcedor brasileiro acompanhando os jogos da Seleção na França. Mas praticamente nada comentou sobre as partidas, esquemas táticos ou desempenhos dos jogadores. “Não sei teorizar sobre futebol”, diz ele, “sou passarinho, não ornitólogo”.

Caricatura que acompanhou as crônicas de Chico, publicadas pelo “Estadão” durante a Copa de 1998. | O Estado de S. Paulo.

75. Barafunda

Chico Buarque levou mais de 15 anos para citar o futebol em uma composição sua. Só em 2010, no samba autobiográfico Barafunda, ele se lembrou de antigos amores e dos desfiles da Mangueira, misturados a lances de jogos do passado (“gol de bicicleta”, “bola que entra na gaveta”, “tiro de meta”) de seus ídolos Garrincha, Pelé e Zizinho. Ao citar Thomaz Soares da Silva, o Zizinho, considerado o melhor jogador da Copa de 1950, Chico quitou uma certa dívida que tinha consigo mesmo, por não ter escalado o craque no seu “ataque dos sonhos”, em O Futebol, porque seu nome “não cabia na letra” do samba.

76. Sem Você Nº 2

No ano seguinte, Chico Buarque compôs a melancólica Sem Você Nº 2, em que ele lamenta a perda da amada. Sem ela, “é o fim do show”, “é um silêncio tal”. Mas, como o tempo agora é todo dele, talvez para tentar esquecê‑la ele pode ir ao museu (ou não), pode passar o domingo olhando o mar e pode até ver o futebol. Aliás, sobre a solidão, Chico diz: “… se não tiver ninguém, pego um livro, ou assisto ao futebol”. A biógrafa, Regina Zappa, escreveu: “embora seja uma pessoa bem-humorada, há os períodos em que Chico mergulha no poço. Não que sejam processos depressivos porque ele sempre tem uma saída, que é a vida, o futebol, a família”.

77. Deixa Solto

Estreando uma nova parceria, em 2013 Chico Buarque compôs, com Arlindo Cruz (torcedor do Flamengo) e Sombrinha, o samba Deixa Solto. Aqui, ele parece passar por uma nova desilusão amorosa, mas, em vez de lamentar ficar sem ela, mostra ser adepto do “antes só do que mal acompanhado”. Para expressar esse seu sentimento, Chico usa expressões ligadas ao futebol: “para de me marcar”, “quero jogar”, “me deixa solto”, “tenho… muito gol de placa pra fazer”.

78. Jogo de Bola

Embora tenha reduzido drasticamente sua produção musical, em 2017 Chico Buarque lançou um novo disco, no qual incluiu outra canção inteiramente dedicada ao futebol: Jogo de Bola. Nela, mais uma vez reforça sua opção pelo “jogo bonito”, pelo “futebol‑arte”, pelo espírito esportivo. Na letra, ele diz “salve o jogar bonito, o não ganhar no grito”, “há que aplaudir o toque, o tique‑taque, o pique, o breque, o lance de craque do centroavante”. Esse “tique‑taque” parece ser uma alusão ao “tiki taka”, nome associado à estratégia de jogo que privilegia a posse de bola e repudia o “chutão”, utilizada pelos times dirigidos pelo técnico espanhol Pep Guardiola, que depois de quatro temporadas no Barcelona e três no Bayern de Munique, acabara de se transferir ao Manchester City, onde já está há oito temporadas. A letra da canção, num genial trocadilho com “priscas eras”, cita o jogador húngaro Ferenc Puskás, destaque da Seleção da Hungria vice‑campeã mundial em 1954, e que dá seu nome ao prêmio concedido pela FIFA ao atleta que marca o gol considerado o mais bonito de cada ano.

79. Que Tal um Samba?

A última composição de Chico Buarque, lançada como “single” há dois anos, foi Que Tal um Samba?. Neste samba, Chico demonstra toda a sua insatisfação com o momento político pelo qual passava o Brasil. Porém, cheio de otimismo, mostra que um samba pode ser um ótimo remédio para enfrentar as adversidades, capaz de “espantar o tempo feio”, “remediar o estrago”, “sair do fundo do poço”, “deitar na cama da amada”. Outra vez, ele usa expressões do futebol para demonstrar sua esperança em tempos melhores: “depois de muita bola fora da meta”, ele acredita que um samba também pode ajudar a “zerar o jogo”, “fazer um gol de bicicleta”, “dar de goleada”.

80. Militância da bola

Como fez com algumas de suas composições, Chico Buarque tem utilizado o futebol para atuar por causas sociais e políticas em que acredita. Em 1980, no Estádio Independência, de Belo Horizonte, foi uma das principais atrações da “Pelada Musical”, jogo beneficente organizado pelo jogador Reinaldo, então no Atlético Mineiro, cuja renda foi revertida para a “Cruz Vermelha Brasileira (filial de Minas Gerais)” e para uma causa humanitária dos povos indígenas Krenaks.

Já a amizade de Chico com o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem desde os tempos em que este era um líder sindical no ABC. Em 1989, durante a campanha de Lula, às vésperas da primeira eleição direta no Brasil depois de quase 30 anos, Chico, que, com 45 anos, nunca havia votado para presidente, esteve presente em um jogo de futebol no Estádio Ulrico Mursa, da Portuguesa Santista, e no palanque do comício realizado na Praça Charles Miller, à frente do Estádio do Pacaembu.

Em 1993, na “Ação da Cidadania contra a fome, a miséria e pela vida”, lançada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, além de se apresentar em shows beneficentes, Chico participou de várias partidas de futebol em diversas cidades brasileiras, cujo ingresso era dado em troca de alimentos para a campanha. Em 2008, Chico participou de um torneio de celebridades promovido pelos ex‑jogadores Raí e Leonardo, no Maracanã, para arrecadar fundos para a sua “Fundação Gol de Letra”, de assistência a jovens carentes.

Em novembro de 2017, o Politheama, com Chico como centroavante, bateu por 6X5, em seu campo, o time “Prerrogativas”, formado por advogados defensores dos acusados pela “Lava a Jato”, grupo do qual fazia parte sua então namorada e atual esposa, Carol Proner. No mês seguinte, os times “Amigos do Lula e do Chico Buarque” e “Amigos do MST” empataram em 5X5 na inauguração do campo Dr. Sócrates Brasileiro, na Escola Nacional Florestán Fernandes, em Guararema‑SP, jogo que se repetiu no final de 2019, no mesmo local, desta vez com a vitória dos “Amigos do Lula e do Chico Buarque” por 2X1 (com um gol de cada “amigo”, ambos de pênalti).

Lula e Chico Buarque na inauguração do campo Dr. Sócrates Brasileiro, em Guararema-SP. 23 dez. 2017. | Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas

Entre essas duas partidas, em abril de 2019, houve um jogo no estádio do Politheama em que o dono da casa venceu por 8X3 o time dos “Torcedores e Torcedoras pela Democracia”, com a presença de Chico e do ex‑jogador Afonsinho, mas sem a de Lula, que estava preso em Curitiba havia exatamente um ano. Chico, que recebeu uma camiseta do “Coletivo Tricolores de Esquerda”, uma ala “progressista” da torcida do Fluminense, à qual se filiou em maio de 2024, jogou a partida toda e, mesmo “se arrastando em campo”, fez o sétimo gol de sua equipe, a cinco minutos do fim.

O mais novo integrante do Coletivo Tricolores de Esquerda (TDE), 30 maio 2024. | Agenda do Poder.

Epílogo

Só dava para escalar 80… Algumas curiosidades tiveram que ir para o banco de reservas. Quando vier o Centenário do Chico, prometo colocá‑las em campo!

Para saber mais

HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque, letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 288 p.

HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009. 356 p.

PERES, Ana Maria Clark. Chico Buarque e o futebol. 2012. Aletria, v. 22, n. 2, p.11–28, 2012

ZAPPA, Regina. Chico Buarque: o tempo e o artista. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2005. 80 p.

ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. 200 p.

AUTORIA

Sérgio Miranda Paz é engenheiro eletrônico, professor, turismólogo, ciclista e urbenauta. Acompanhou in loco todas as Copas do Mundo desde 1994, tendo sido voluntário no Mundial de 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016. Frequentou por muitos anos as arquibancadas do Estádio do Pacaembu acompanhando seu Corinthians e o Santos de Pelé. E mensalmente participa das reuniões do Memofut — Grupo Literatura e Memória do Futebol, no Auditório Armando Nogueira, no Museu do Futebol.

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Núcleo do Museu do Futebol dedicado a produzir, reunir e disseminar pesquisas e curiosidades sobre o futebol no Brasil.