“Quem será esse senhor José Fuzeira?”

Por Dóris Régis, Ligia Dona, Bruna Colucci e Julia Rosa

Você sabe quem foi José Fuzeira? Provavelmente não, mas é possível que você conheça alguém com ideias bem parecidas às dele.

Mas… por que o Museu do Futebol está falando sobre ele?

Autor de livros sobre normas de conduta social e moral e obras como “Judas Iscariotes e a sua reencarnação como Joana D’Arc”, José Fuzeira, em 7 de maio de 1940, escreveu uma carta endereçada ao Presidente da República Getúlio Vargas, publicada pelo jornal carioca “Diário da Noite”. Com o título de “Um disparate sportivo que não deve prosseguir…”, a carta expressava o descontentamento de Fuzeira com a prática do futebol feminino no Brasil, mais precisamente, com uma partida marcada para o dia 17 de maio, no recém inaugurado Estádio do Pacaembu, entre as equipes do Casino Realengo e do Sport Club Brasileiro, ambas do Rio de Janeiro.

Essa não era a primeira vez que o futebol feminino aparecia em discursos conservadores. Pouco antes, em 6 de maio de 1940, o jornal “A Gazeta Esportiva”, trazia, na coluna de Helenico, o texto “Deve ser proibido!”, onde o jornalista pedia para que a Diretoria Geral de Esportes proibisse a mesma partida que José Fuzeira. Apesar das oposições, o jogo aconteceu, e o vencedor foi o S.C. Brasileiro, que ganhou a peleja pelo placar de 2 a 0.

A viagem das duas equipes para São Paulo foi patrocinada pelo carioca “Jornal dos Sports”, que, em 10 de maio de 1940, convidou para uma entrevista com o teor de uma resposta pública Margarida “Adyragram” Pereira, compositora do rancho carnavalesco Turunas de Monte Alegre, zagueira, capitã e presidente do S.C. Brasileiro.

Menos de ano depois, Getúlio Vargas assinava o decreto-lei 3199 que, além de estabelecer a criação do Conselho Nacional de Desportos (CND), órgão responsável por instruir e reger as entidades desportivas do país, dedicava o Art. 54 para dizer que, devido a características próprias da natureza feminina, não seria permitido às mulheres a prática de determinados esportes — que não foram sequer especificados. Somente em 1965, através da deliberação de nº 7 do CND, foi divulgada uma relação de práticas desportivas expressamente proibidas: lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol. A deliberação foi revogada em 1979, mas o futebol feminino ainda passava por uma série empecilhos, como a falta de regulamentação da prática, que só veio acontecer em 1983.

Quarenta anos se passaram e o futebol feminino continua seu esforço por maior visibilidade e espaço. Em 2019, todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro são obrigados a formar uma equipe feminina para disputar o campeonato oficial. A constituição de times femininos adulto e de base é uma das 34 medidas que integra o novo Licenciamento de Clubes, aprovado pela Conmebol em 2016, que previa prazo de até dois anos para a adequação das instituições e dos clubes de cada país.

Essa e outras histórias serão contadas na próxima exposição do Museu do Futebol: “CONTRA-ATAQUE! As Mulheres do Futebol”, que inaugurará em 28/05/2019.

Carta de José Fuzeira ao Presidente da República Getúlio Vargas, publicada no Diário da Noite de 7 de maio de 1940.

Ilmo. Sr. Presidente da República, Dr. Getúlio Vargas

Ex.mo Sr., minhas reverências de respeito. Permita V. Ex. que o signatário, embora sem dispor das credenciais de qualquer autoridade educacional ou científica, venha solicitar-lhe alguns minutos de atenção para o magno problema, que, a seguir, vai comentado. E, se o faço, é porque conquanto V. Ex.ª viva interessada e absorvida em resolver e solucionar, com ponderado acerto, os mais graves problemas sociais da família, da sociedade e da nação, certamente, alguns lhe hão de escapar; mesmo porque, dadas as circunstâncias múltiplas e complexas, adstritas às grandes reformas sociais da época, é humanamente impossível a qualquer estadista, abranger, de um golpe, o “tudo” que, desde há muito tempo, está errado, e o “tudo” que, por isso, mesmo, exige uma reforma mais radical. Tanto mais que, neste ciclo dinâmico de imprevistos, surgem constantemente novos problemas coletivos, que pela continuidade da sua sucessão, parecem até desafiar a capacidade mental de todos os governantes das nações.

Assim, de fato, não é possível aos homens encarregados de articularem e coordenarem o equilíbrio da vida social dos povos, verem tudo e atenderem, de repente, a todas as questões que vão surgindo. Porém, quando se trata de problemas novos, cujos aspectos primários já nos revelam consequências de certa gravidade, então, neste caso a exceção, sem dúvida que se impõem providências imediatas.

Vem, pois, o signatário, respeitosamente, solicitar a clarividente atenção de V. Ex.ª, para que seja conjurada uma calamidade que está prestes a desabar em cima da juventude feminina do Brasil. Refiro-me, Sr. Presidente, ao movimento entusiasta que está empolgando centenas de moças, atraindo-as para se transformarem em jogadoras de futebol, sem se levar em conta que a mulher não poderá praticar esse esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio psicológico das funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a “ser mãe”.

É notória a violência com que, nesse jogo, as bolas atingem, às vezes, o corpo dos jogadores; e também diversos são os casos já ocorridos de consequências graves e fatais.

Ora, a constituição orgânica da mulher impõe-lhe o atento cuidado de precaver certos órgãos contra toda a contundência traumática; sendo que, conforme opinião de alguns expoentes da medicina, as pancadas violentas contra os seios podem, até, dar origem ao câncer.

Também, por motivo de fenômenos específicos, que nos abstemos de enumerar, ainda outros sérios distúrbios de saúde podem sofrer as moças que venham a escravizar-se ao “sagrado dever” de não faltarem aos treinos e se disponham a aumentar as duras recargas de tal jogo; pois esses encontros de impulsos rudes, incontroláveis, hão de evidentemente afetar-lhes o equilíbrio do sistema nervoso e, até (quem sabe?) originando, talvez, funestas consequências futuras, no que se refere aos fenômenos próprios da gestação, pois da perfeita saúde da mãe depende o vigor e a perfeita constituição dos filhos.

Ao que dizem os jornais, no Rio já estão formados nada menos do que dez quadros femininos. Em São Paulo e em Belo Horizonte também já se estão constituindo outros. E, neste crescendo, dentro de um ano é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja, 200 núcleos destroçadores da saúde de 2200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas de uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes, pois desde que já se chegou à insensatez inqualificável de organizar-se pugnas de futebol “com um grupo de cegos” a correrem, às tontas, atrás de uma bola cintada de guizos, não será de admirar que o movimento feminino a que nos estamos reportando seja o ponto de partida para, do decorrer do tempo, as filhas de Eva se exibirem, também, em assaltos de luta livre e em juntas da “nobre arte” cuja “nobreza” consiste em dois contendores se esmurrarem até ficarem babando sangue.

Informam ainda os periódicos que já se cogita a fundação da Liga Feminina de Futebol. Porém, é provável que toda esta afobação esteja sendo conduzida e articulada nos bastidores por interesses mesquinhos que nada tem a ver com quaisquer ideais de cultura física; pois, até no que respeita a estética esportiva, semelhante torneios femininos bem considerados em todos os seus aspectos e detalhes são simplesmente ridículos, pois se é elegante e rutilo de beleza o ambiente de um grupo de moças nas atitudes dos exercícios aquáticos, outro tanto não acontecerá com as corridas e trambolhões espetaculares das pugnas futebolísticas.

Certamente, as moças já inscritas nos quadros organizados são, como é natural, muitas coisas dos seus encantos de beleza. Entretanto, como não compreendem que o jogo violento de futebol lhes afetará a saúde integral da qual, na realidade, depende a longa mocidade da sua beleza física, saúde, aliás, muito mais preciosa e digna de cuidado do que o superficialismo das suas sobrancelhas, e das suas unhas e cabelos?

Que nos conste, semelhante disparate desportivo ainda não surgiu em nenhum outro país. Assim, para evitar que as suas primícias venham a degenerar em uma calamidade contra a saúde e a compostura esportiva do belo sexo, venho apelar para que um aceno do reconhecido e elevado bom senso de V. Ex.ª faça com que o Departamento de Cultura e Saúde solicite o conselho de um grupo de médicos, a fim de que os mesmos, com a sua acatável autoridade, decidam se, efetivamente, a mulher pode, sem manifesto e grave prejuízo, integrar como elemento ativo, em um esporte de atritos e físicos rudes e agressivos, que, muitas vezes, embora por descuido, redundam também em pisaduras e em pontapés no peito, no estômago e no ventre dos jogadores.

Que V. Ex.ª, Sr. Presidente, acuda e salve essas futuras mães do risco de destruírem a sua preciosa saúde, e ainda a saúde dos futuros filhos delas… e do Brasil.

Este é o apelo que vem dirigir-lhe o signatário.

Resta-me dizer a V. Ex.ª que este nosso gesto está inteiramente justificado; se V. Ex.ª se dignar de folhear algumas páginas de um livro nosso, que se encontra em sua biblioteca particular e no qual sem o prurido de quaisquer veleidades literárias demonstro, de forma inconteste, o meu amor desinteressado pelo bem do Brasil e da Humanidade.

Com os protestos do mais elevado apreço e consideração, sou de V. Ex.ª mto. ato. e obrigado.

Sr. José Fuzeira — Rua 5 de Julho, 45 — apartamento 6, Copacabana.

Diário da Noite, 7 de maio de 1940.

Resposta de Margarida “Adyragram” Pereira, publicada no Jornal dos Sports, de 10 de maio de 1940.

DEFENDEM-SE AS PRATICANTES DO FOOTBALL FEMININO
Só criticam a prática do violento sport bretão aqueles que na vida jamais entraram numa praça de educação física, declara a presidente do S. Club Brasileiro.

Recebemos ontem, a visita da jogadora Adyragram, que exerce as funções de presidente do quadro de football feminino do S. C. Brasileiro. Veio dizer-nos algo sobre uma carta endereçada a um popular vespertino pelo Senhor José Fuzeira, nome desconhecido nos aporta.

Em resumo disse-nos a já popular jogadora do S. C. Brasileiro:

Li com atenção a carta dirigida pelo Senhor José Fuzeira a um vespertino de nossa cidade. A princípio tomei o caso a sério. Refletindo, perguntei a mim mesma: quem será esse senhor José Fuzeira?

Verifiquei desde logo que esse cavalheiro é desconhecido no esporte, faltando-lhe, portanto, autoridade para discutir o assunto.

Procurou celebrizar-se nos meios esportivos apenas com uma carta dirigida ao mais alto magistrado do país.

Há homens cujas ocupações lhe dão tempo até para tratarem de assuntos femininos. Mas, todas as vezes que o fazem, procuram celebrizar-se, dando o nome, residência e até o telefone.

Adyragram prossegue:

O Senhor José Fuzeira deveria assistir à prática de futebol feminino, para verificar quão salutar é esse esporte e os benefícios que o mesmo presta à suas praticantes.

É verdade que o futebol, como outros esportes, não pode ser praticado por todos, principalmente por aqueles que têm aversão à educação física e que só fazem ginástica pelo rádio, receosos de se apresentarem em público, graças às deficiências orgânicas com que a natureza os brindou.

Prossegue ainda Adyragram:

O Senhor Fuzeira qualquer dia achará que a natação é prejudicial ao sexo feminino, porque a água poderá gripar as concorrentes e as roupas curtas e colantes estão em desacordo com o seu modo de pensar sobre as futuras mães…

E terminando:

O Senhor Fuzeira fica convidado a assistir ao primeiro encontro de futebol feminino e apontar, publicamente, quais as desvantagens de sua prática nos moldes em que vem sendo empregado entre as jovens brasileiras. Antes disso, o Senhor Fuzeira deve preocupar-se com os guris que jogam bola de meia na rua de sua residência, quebrando as vidraças da vizinhança. Nesse caso o missivista prestaria um grande serviço e não teria tempo de preocupar-se com coisas que só interessam ao sexo frágil.

Jornal dos Sports, de 10 de maio de 1940.

BÔNUS

Em 14 de maio de 1940, o Jornal dos Sports publicou na coluna “Off-Side” um poema de autoria desconhecida. Assinado pelo pseudônimo “Keeper”, era uma nova resposta à carta de José Fuzeira.

AO APÓSTOLO FUZEIRA

Apareceu aí um cavalheiro cheio
de zelo e de aflição:

Fuzeira. Fuzeira não concebe
mulher de camiseta e de calção
jogando foot-ball.

Fuzeira considera a novidade
das mais ruinosas e das mais estranhas:
prevê para o Brasil todo um porvir de entranhas
infecundas,
enfermas,
vagabundas,
arrasadas por “solas” e “trancos”…

Fuzeira trema pela Pátria em risco,
e pede a interdição, pede o confisco
da bola de Eva.

Por todo este Brasil, Fuzeira eleva
um grito de Plutarcho indignado…
Na sua obsessão, santa e completa,
comc erteza Fuzeira vê em sonhos
as Onze Mil Virgens, num estádio enorme
treinando a “bicicleta”!

Fuzeira amigo, não viva de ilusões!

Quando Amy Johnson, em pleno front da guerra,
espatifa aviões,
e a mulher luta a faca e a tiro na Polônia,
é tolice querer que ela ainda seja
de manhã: deusa cheirando a salsas e a cebolas,
e a noite: deusa de rendas e de água de colônia…

É isso, seu Fuzeira! É isso,
e não se meta!
Moça de agora tem motor de popa,
não é deste planeta!

Lá no que toca a fisiologia
você talvez tenha razão, de fato:
mas isso são conversas que só podem
ser discutidas dentro do recato…

No mais, se convença que passou
o tempo do sarau e da vovó,
em que as Emílias se faziam atletas

AUTORIA

Esse texto foi feito por Dóris Régis, Ligia Dona (Centro de Referência do Futebol Brasileiro — CRFB), Bruna Colucci e Julia Rosa (Educadoras do Museu do Futebol).

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Núcleo do Museu do Futebol dedicado a produzir, reunir e disseminar pesquisas e curiosidades sobre o futebol no Brasil.