RITA LEE: ETERNAMENTE DENTRO DOS NOSSOS CORAÇÕES!

Dois mil e vinte e três, dessa forma em extenso por requerer fôlego, tem sido um ano de muitas perdas no meio cultural. Erasmo Carlos, Gal Costa e… Rita Lee. A música brasileira chora de soluçar ante ao fatídico choque de que nossos ídolos são feitos de carne e osso, assim como nós. A padroeira da liberdade, como gosta de ser chamada — aqui com uma licença poética para a incorreta utilização verbal — por achar o título de “rainha do rock” um tanto quanto cafona, revolucionando o cenário musical brasileiro. Com seu útero e ovários, mostrou que mulher também pode fazer Roque Enrow. Suas músicas representam mais que letras e acordes, são sinônimos de libertação feminina e luta política: a artista mais censurada durante a ditadura, com canções que feririam os valores morais impostos pelos golpistas de 1964. Dia 31 de dezembro de 2023 é o primeiro dia de Rita sem Rita, ela que divide essa data com as comemorações de fim de ano e sente carecer de um dia somente dela. Para dar adeus ao ano velho, vamos falar de vida, com muita rebeldia, música e, claro, futebol!

Rita Lee, a mina de Sampa corinthiana de braços abertos na cidade da garoa | Revista Manchete, 1987 | Foto: Ruy de Campos

Amor Branco e Preto

“Sofro, mas continuo a te adorar

Corinthians, meu amor”

Filha de filhos de imigrantes, italianos pela parte materna e estadunidenses no lado paterno, nas veias de Rita Lee Jones — um sobrenome inventado [1] — corre “sangue imperialista”. Em questão de futebol, Chesa, apelido de sua mãe, é palestrina, enquanto seu pai, Charles, corinthiano roxo. A paixão pelo alvinegro passada de pai para filha, do modo mais corinthiano possível: através do sofrimento. Nascida em 1947, a menina da Vila Mariana que tem apenas seis anos de idade na conquista do IV Centenário em 1954, acompanha um tortuoso jejum de 22 anos sem títulos.

Orgulho de Charles, Rita gravou junto aos Mutantes uma declaração de amor ao clube, composição de Arnaldo Baptista, o sucesso interpretado pela artista foi lançado em 1972. A música faz uma brincadeira com a relação entre torcedor — masoquista — e o time.

Por ocasião do relançamento da obra dos Mutantes, a revista Placar publicou a letra de “Amor em Branco e Preto”. Placar, n. 1109, nov. 1995. p. 112.

Mas antes de viver o jejum, o pai Charles ainda teve tempo de comemorar alguns títulos, momento em que liberava o lança-perfume para o “harém” — era assim que a roqueira se referia à família, formada pelo pai e quatro mulheres (Chesa, Rita e suas irmãs Mary e Virgínia). No final das contas, ficava todo mundo alegre, dançando e festejando, cena lúdica e que veio a inspirar, futuramente, a canção “Lança-Perfume”.

Já na fase adulta, mais especificamente no dia 15 de julho de 1979, Rita dá a luz ao João, mais carinhosamente conhecido como Juca, fruto de seu amor com o carioca Roberto de Carvalho. Filho do meio, irmão do primogênito Beto e do caçula Antônio, nasce no exato instante em que o Corinthians faz um gol no Santos. O momento deixa vovô Charles em completo e natural êxtase, sem a necessidade do “perfurme”. O jogo é no Estádio do Morumbi, ao lado do Hospital Albert Einstein, domingo de tarde, pelo Campeonato Paulista. O time do povo sagrou-se campeão naquele ano em final contra a Ponte Preta, tendo como artilheiros o grande Sócrates e Geraldão.

ORRA, MEU!

“Guerrilheiro

Forasteiro

Orra, meu!”

A intrínseca e sublime conexão entre Rita Lee e futebol gerou produtos no mundo musical. Em um dia de jogo no Estádio do Pacaembu — espaço que a cantora frequenta desde a infância — entre Corinthians e algum time sul-americano, escuta um grito de guerra da torcida: “Guerrilheiro, forasteiro”. Foi o suficiente para inspirar a composição de “Orra meu”, canção caracterizada pela roqueira como um hino ao desacato.

Em 1995, os Rolling Stones vieram para o Brasil tocar no “Hollywood Rock”. Boatos dão conta que Mick Jagger pede a realização de uma pesquisa sobre bandas brasileiras para saber qual a mais apta a abrir o show. O resultado: Barão Vermelho e Rita Lee. A abertura do evento acontece no mesmo Pacaembu, em 27 de janeiro, mas Rita Lee não canta por causa da tempestade que cai bem na hora de sua entrada no palco. A cantora e sua banda só se apresentam nos dois últimos dias do evento na Cidade da Garoa, 28 e 30 de janeiro, levando os fãs do rock à loucura. O espetáculo se encerra na Cidade Maravilhosa, em pleno Estádio do Maracanã, onde a roqueira eletriza palco e público mais uma vez, cantando, inclusive, o sucesso “Orra meu”.

Rita Lee e Roberto de Carvalho, seu grande amor e parceiro de palco, na abertura do show dos Rolling Stones para o festival Hollywood Rock 95, no Maracanã | O Globo [Site] | Foto: Marco Issa.

Vote em mim!

“E sem demagogia, por pura alegria

Quero o povo feliz”

Da esquerda para a direita: Sócrates, Rita Lee, Wladimir e Casagrande no Ginásio do Ibirapuera. [Twitter] Casagrande | Foto: Direitos reservados.

Domingo ensolarado, 28 de novembro de 1982, de novo no Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, Corinthians e Ferroviária jogam pelo Campeonato Paulista na casa do time do povo. O alvinegro vence por 3X1, dois gols de Casagrande e um de Wladimir. No mesmo dia, só que mais tarde, no Ginásio do Ibirapuera outro grande show, desta vez de Rita Lee, chamado “O Circo”.

Sob a temática do circo, o espetáculo conta com um público de cerca de 20 mil pessoas. Dentre elas, os boleiros alvinegros, e amantes de música, Casagrande, Sócrates e Wladimir. Mas antes, no percurso entre estádio e ginásio, o centroavante lembra que havia prometido uma camisa para a cantora, e percebe que esqueceu de pegar o presente. No meio da multidão, Sócrates avista a solução do problema: um torcedor vestindo a camisa número 9, mesma utilizada por Casão. Sem vergonha, ou opção, o craque consegue barganhar a camisa do torcedor que, claro, não poderia negar o pedido.

A Padroeira da Liberdade, vestida com a camisa do Corinthians, canta em ginásio lotado | Veja [Site] | Foto: Paulo Salomão/Dedoc

Durante a música “Vote em Mim!”, os atletas sobem no palco. Sagaz e ambígua, a canção, que à primeira vista fala de amor (Meu amor, por favor/ Vote em mim/ Prometo que se eu ganhar a eleição/ Só vou dar poder ao seu coração), assume caráter político devido a fase que o Brasil atravessava: anos finais da ditadura e expectativa pela redemocratização. O povo queria o direito de escolher seus representantes. No palco, Sócrates é quem veste a camisa recém-adquirida, e mal entra em cena já a retira e entrega para Rita, que não pensa duas vezes antes de uniformizar-se.

Dias depois, na final do Campeonato Paulista, Walter Casagrande, roqueiro de carteirinha, ainda convida a cantora para assistir ao jogo do Corinthians contra o São Paulo, no Morumbi. Uma vitória histórica contra o tricolor por 3X1, sendo o terceiro gol dele, Casão, que ainda o batiza de “Gol Rita Lee”. Aliás, única vez que o corinthiano dá nome a um gol. A narração na voz de Osmar Santos marcou a história.

Corista de Rock

“Pois eu sou corista num grupo de rock

Que tem pra valer

Um ponto de vista que não se limita

De ser ou não ser

Prefiro ser os dois!”

Carismática, Rita Lee, assim como o futebol, não é exclusiva de uma torcida, declarando simpatia por outros times, chegando até a receber honrarias.

Em 29 de novembro de 1979 quando o Taubaté vence o rival, São José, no Clássico do Vale do Paraíba, conquistando o Campeonato Paulista da Divisão Intermediária — e o acesso para a elite futebolística do estado — Rita recebe de presente uma camisa do Burro da Central e a usa em um show.

Recorte de jornal mostra Rita Lee com a camisa do Taubaté em 1979 | Globoesporte.com [Site] E.C. Taubaté/Arquivo

Em 25 de junho de 2003, durante um show em Belo Horizonte, diz aos fãs que na cidade — com uma grande tradição de rock e futebol, por sinal — aprecia o Galo! Claro que tem de ser um clube alvinegro. Dois dias depois, no último show na cidade, a cantora recebe uma homenagem do Atlético Mineiro no palco: a ela um Galo de Prata.

Rita Lee recebe o Galo de Prata, honraria máxima do Atlético Mineiro | Já Joguei no Galo [Twitter] | Reprodução

Cinco anos depois, em 2008, a roqueira que em apresentações no Rio Grande do Sul utiliza camisas do Internacional, recebe o título de “Consulesa Colorada” — e a responsabilidade de difundir a paixão pelo clube.

A “consulesa colorada” canta em Porto Alegre com camisa do Internacional | Futebol na Veia [Site] | Foto: S.C. Internacional

São coisas da vida…

Mais macho que muito homem, Rita Lee Jones, que vai muito além da persona louca de estilo e atitude únicos, deixa sua marca registrada em muitas Histórias e histórias. Que sua chama vermelha se mantenha acesa e continue inspirando mais pessoas a serem o que quiserem ser. Artista completa, multi-instrumentista e atriz nas horas vagas, militante, mãe e amante, aqui fica a prova de que entre as diversas facetas da mutante também há espaço para o futebol!

“Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa.” (LEE, Rita) | Rita Lee [Instagram} | Foto: Direitos reservados.

NOTA

[1] A história do sobrenome da família começa com o avô de Rita Lee, Cícero. Ele se envolveu em uma briga que terminou na morte de um homem. Para evitar a prisão nos Estados Unidos, entrou num navio rumo ao Brasil. A bordo ajudou a curar o enjoo de um passageiro usando apenas ervas e chamou a atenção de um certo médico, o Dr. Robert Norris, que deu o sobrenome “Jones” a Cícero. Já “Lee” foi escolhido por Charles, pai de Rita, uma homenagem ao general confederado Roberto Lee, que comandou o exército da Virgínia do Norte durante a Guerra Civil nos Estados Unidos.

REFERÊNCIAS

MEU TIMÃO [Site].

LEE, Rita J. Uma autobiografia. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2016. 296 p.

CASAGRANDE; RIBEIRO, Gilvan. Sócrates e Casagrande: uma história de amor. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2016. 374 p.

CASAGRANDE, Walter. Rita Lee: você me mostrou quem eu era, e eu gostei obrigado por tudo! UOL, 2023. Acesso em: 24 dez. 2023.

CASAGRANDE, Walter. O dia em que a Democracia Corintiana se juntou à rainha Rita Lee. UOL, 2023. Acesso em: 24 dez. 2023.

AUTORIA

Sabrina Madeiras é graduanda do curso de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), integrante do Grupo de Pesquisa em Teoria da História e Historiografia — Márcia D’Alessio e foi estagiária de Documentação no Centro de Referência do Futebol Brasileiro (2021–2023). É corinthiana, e em 2023 apostou errado no Botafogo e certo na Tia Leila Pereira.

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Centro de Referência do Futebol Brasileiro
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