Tradição Centenária

A Gazeta Esportiva, 16/02/1986, p. 5. Disponível na Biblioteca do CRFB.

O Torneio Início foi uma competição criada puramente pelos brasileiros. O primeiro registro desse modelo de torneio de tiro curto, congregando diversas agremiações em um mesmo dia e local, com caráter beneficente, aconteceu justamente nos primeiros anos do século passado.

Pode se dizer que o Rio de Janeiro foi o berço do Torneio Início, já que a competição foi criada em 1916 pela Associação de Cronistas Desportivos do Rio de Janeiro (entidade atualmente denominada Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro — ACERJ). A primeira edição do Torneio Início do Rio de Janeiro, cuja final fora disputada entre Fluminense e América e que teve o Tricolor Carioca como o grande vencedor, jogando em casa, contou com cerca de cinco mil espectadores e teve a renda destinada em benefício da instituição denominada Patronato de Menores.

Equipe de arbitragem do Torneio Início no Estádio das Laranjeiras. Revista Careta, 1924. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.

Três anos mais tarde, em 1919, a Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo (ACEESP), junto com a Associação Atlética das Palmeiras, extinto clube da capital paulista, introduziram a competição no calendário esportivo bandeirante.

Sua fórmula popular foi reproduzida nas principais praças esportivas do Brasil: os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, por exemplo, já haviam aderido à competição a partir de 1917, enquanto, no Paraná, o Torneio Início foi implantado em 1918. Já em Pernambuco e na Bahia, a competição começou a ser disputada em 1919 — assim como em São Paulo. E no Ceará, no Rio Grande do Sul e em Alagoas, o certame fora disputado pela primeira vez, respectivamente, em 1920, 1921 e 1927.

A partir dos anos 50, por conta de questões financeiras e do aumento dos clubes nas divisões principais, a competição perdeu a sua importância, sendo descontinuada, tendo algumas edições esporádicas e esparsas, mas sem o mesmo prestígio das anteriores.

A Gazeta Esportiva, 16/02/1986, p. 3. Disponível na Biblioteca do CRFB.

Primeira vez em São Paulo

No final da primeira década do século passado foi organizada pela primeira vez em São Paulo uma competição relâmpago, cuja finalidade era apresentar ao público amante do esporte bretão as equipes que fariam parte do campeonato oficial naquela temporada, num festival de curta duração e com características particulares.

O Estado de S. Paulo, 26/01/1919, p. 6. Junção de recortes.

Inicialmente denominada como Torneio Eliminatório ou Torneio Initium, surgia uma tradição que perdurou ininterruptamente por quase quatro décadas e que popularmente ganhou a denominação de Torneio Início do Campeonato Paulista.

O jornal A Gazeta do dia 25 de janeiro de 1919 registrou nas suas páginas esportivas a notícia da concepção do primeiro torneio que se realizaria, a qual reproduzimos:

“Reuniu-se hontem na sede da Associação Paulista de Sports Athleticos a comissão organizadora do torneio de eliminatório, que será disputada amanhã na Floresta.

Resolveram cobrar entradas a todos os sócios das associações em lucta, incluindo-se os da A.A. das Palmeiras, promotora da festa.

Em vista disso só serão válidos para o match de amanhã os ingressos especiais distribuídos pela A.A. das Palmeiras.

Serão disputadas amanhã duas taças: uma ao vencedor em primeiro lugar, que a deterá pelo espaço de um ano, e definitivamente se vencer o torneio por três vezes não consecutivas; outra ao colocado em segundo lugar, que será o clube que disputar a final com o quadro vencedor do torneio. Aos capitães dos times contendores serão oferecidas medalhas de ouro. Em seguida foi procedido o sorteio da ordem dos matches.

Os prêmios deste torneio serão expostos hoje na Casa Raunier. Os matches do torneio eliminatório serão realizados com qualquer tempo.”

A primeira edição do torneio aconteceu no estádio da Chácara da Floresta e contou com a participação de todos os clubes filiados na Primeira Divisão do Campeonato Paulista, a saber: Atlética das Palmeiras, Corinthians, Internacional, Mackenzie, Minas Gerais, Palestra Italia, Paulistano, Santos, São Bento e Ypiranga.

No dia 26 de janeiro, o árbitro João da Silva, ao meio dia em ponto, soou o apito inicial da primeira partida do torneio envolvendo São Bento e Mackenzie. Com gols de Ulbrich, D’Alessio e Dias, os são bentistas venceram a partida que teve dois tempos de quinze minutos cada, sem descanso, e avançaram para a próxima fase.

A segunda partida apresentou a vitória do Santos pelo placar de 3 a 1 diante do Ypiranga. Gols santistas marcados por: Millon, Constantino e Arnaldo. Para o Ypiranga, descontou Cetra.

Minas Gerais e Internacional empataram em 1 a 1, com gols de Brenno e Biasi, respectivamente. Nos critérios de desempate, os mineiros anotaram dois escanteios contra nenhum dos seus rivais.

O quarto jogo apresentou nada mais nada menos que um Derby Paulista. Palestra Italia e Corinthians lutaram bravamente, mas não saíram do 0 a 0. Nos escanteios, os corintianos anotaram quatro escanteios contra apenas um dos palestrinos.

Paulistano e Atlética das Palmeiras apresentou o maior número de gols da competição. O alvirrubro goleou impiedosamente os anfitriões do torneio pelo placar de 4 a 1. Friedenreich (2) e Mario (2) marcaram os tentos do Paulistano. Lapa fez o gol de honra dos palmeirenses. O fato inusitado dessa partida ficou por conta da marcação de um pênalti inexistente pelo árbitro Sr. Manuel Pinto contra o Paulistano. O atleta do Palmeiras, cordialmente, chutou a bola para fora propositalmente. No reinício do jogo, os jogadores do Paulistano ficaram parados em campo e deixaram Lapa marcar o único gol a favor do seu time.

Na sequência, Santos e Minas Gerais empataram em 1 a 1, gols marcados por Haroldo e Brenno, respectivamente. Nos escanteios, os mineiros avançaram para as semifinais, ao superar os santistas por 1 corner a 0.

Num dos embates mais esperados da tarde, o Corinthians, capitaneado por Neco, superou o Paulistano, de Friedenreich, pelo placar de 1 a 0, gol marcado por Rogerio, avançando para a final do torneio.

Na outra semifinal, o Minas Gerais venceu a Associação Atlética São Bento pelo placar de 2 a 0, gols marcados por Brenno e Luchesi.

Corinthians e Minas Gerais fizeram a grande decisão. Com uma atuação maiúscula de Neco, autor de dois gols, e outro tento marcado por Garcia, os alvinegros atropelaram o Minas Gerais e conquistando a Taça Challenge, troféu oferecido ao campeão do primeiro Torneio Início.

Metade da renda da partida foi dividida entre o campeão, vice-campeão e a Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo. Os outros 50% foi revertida em benefício da Crechê Baroneza de Limeira.

Pacaembu na história do Torneio Início

O estádio Paulo Machado de Carvalho foi palco de 21 edições da competição. Em 19 de maio de 1940, a cancha da municipalidade recebeu cerca de oito mil torcedores que aplaudiram o esquadrão do São Paulo Futebol Clube se tornar o primeiro campeão do torneio na praça esportiva recém-inaugurada.

A Gazeta Esportiva, 16/02/1986, p. 3. Disponível na Biblioteca do CRFB.

Com gols de Armandinho e Jofre, os tricolores venceram o Corinthians na finalíssima pelo placar de 2 a 0 e levantaram o troféu. Os são paulinos foram a campo com a seguinte formação: King; Cioffi e Herculano Squarza; Turillo, Válter e Waldemar Zaclis; Mendes, Jofre, Luizinho II, Teixeirinha e Carmine Novelli. Os vice-campeões corintianos atuaram com: Barchetta; Brandão e Agostinho; Sebastião, Dino e Munhoz; Lopes, Servilio, Teleco, Joane e Arthur.

Durante uma década, o estádio recebeu ininterruptamente todas as competições. Em 1951, não houve disputa. De 1952 a 1958 o estádio novamente foi a sede principal, bem como nas edições de 1984, 1986 e 1991. Além do Tricolor Paulista, Corinthians, Palmeiras, Nacional, Portuguesa de Desportos, Ypiranga, XV de Piracicaba, Santos, Guarani, Botafogo de Ribeirão Preto, América de São José do Rio Preto, Juventus e Bragantino escreveram seus nomes na galeria dos campeões do Pacaembu.

Jornal de Piracicaba, 22/07/1982. In: ROCHA NETTO, Delphin F. A história do XV: 43 anos de futebol profissional: II parte 1947–1990. Piracicaba: Jornal de Piracicaba, 1990. Disponível na Biblioteca do CRFB.

Curiosidades

Em 1920 a renda da competição foi revertida para as escolas noturnas mantidas pela Liga Nacionalista.

No dia 26 de dezembro de 1920 foi realizada a terceira edição da competição. Na final, entre Corinthians e Minas Gerais, os alvinegros venceram pelo placar de 7 a 0, registrando a maior goleada de toda história do Torneio Início.

Em 1921 a renda da competição foi revertida em benefício da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo.

Em 1922 toda a renda foi revertida para as associações de caridade mantidas pelo munícipio.

Em 1927 Antônio Prado Jr., então prefeito do Distrito Federal, esteve presente nas tribunas do estádio Chácara da Floresta, prestigiando a competição e vibrando com a conquista do Clube Atlético Paulistano.

Em 1957 foi a única vez que a competição não teve os escanteios como critério de desempate. Em caso de igualdade, os jogos iam direto para decisão por penalidades máximas. Nesse mesmo ano, a final foi realizada em dois tempos de 30 minutos.

A Gazeta Esportiva, 17/02/1986, p. 1. Disponível na Biblioteca do CRFB.

Em 1958 renda foi revertida para o pagamento da última parcela da compra da sede própria da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo.

Em 1969 a renda da competição foi revertida em benefício da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo.

Em 1986 o Clube Atlético Juventus sagrou-se campeão do Torneio Início sem marcar nenhum gol em quatro jogos disputados.

A Gazeta Esportiva, 17/02/1986, p. 1. Disponível na Biblioteca do CRFB.

Em 1991 foi a edição do torneio que recebeu o maior número de participantes com 28 equipes divididas em quatro sedes: Santo André, Campinas, Limeira e Ribeirão Preto. Os campeões de cada sede fizeram a final no estádio municipal do Pacaembu.

A última edição do Torneio aconteceu em 1996 no estádio Palestra Italia e teve como campeã a Associação Portuguesa de Desportos.

Como a crônica esportiva enxergava a competição

O Estado de S. Paulo, 24/06/1984, p. 32.

O jornalista Paulo Planet Buarque, em sua coluna no jornal A Gazeta Esportiva, batizada como Linha de Fundo, no dia 16 de fevereiro de 1986, escreveu sobre a competição, sob o título: “ A Festa do Torneio Início”, a qual transcrevemos na íntegra:

“Em primeiro lugar, cumprimento a Federação Paulista de Futebol e, por consequência, aos clubes pela boa ideia de franquear ao público os portões do estádio “Paulo Machado de Carvalho” para o pagamento do ou dos ingressos (pois às vezes é toda uma família que gosta do futebol) a chance única de ver perto não uma, mas uma dezena de partidas de futebol, todos os clubes, os do Interior e da Capital, todos os craques, um verdadeiro festival de futebol. Também porque é uma forma de propagar o futebol, de promovê-lo, pois muitos que normalmente não compareceriam, lá estarão para prestigiar esse desfile que pode até mesmo ser comparado ao das escolas de samba. Por horas, o Pacaembu será o futebolódromo…

Possivelmente teremos o estádio cheio se São Pedro colaborar, embora sinceramente estejamos todos pedindo que as chuvas não parem tão cedo.

É claro que nessas minipartidas quase sempre não prevalece a maior categoria, não importando muito a quantidade de craques que as equipes possuam. Geralmente, os jogos são decididos pela sorte, pelos mais audaciosos, os que atacam, os que procuram o escanteio, que é também uma forma de ganhar às vezes, mais que os próprios gols. Quando os jogos estão empatados, são os escanteios que decidem. Mas, de qualquer forma, trata-se de um suceder de jogos interessantes, rápidos, curiosos, onde se pode ver não apenas o time da nossa preferência, mas realmente todos os que participam do campeonato. Valendo muito a tabela, que, acho, deveria ser elaborada através do sorteio para ser mais justa.

Uma festa tradicional do futebol brasileiro, única, aliás, em todo o mundo, pois esse tipo de apresentação geral das equipes não existe na Europa. Um festival de jogos, gols, escanteios, disputas acirradas, boas e más apresentações, primeiras oportunidades para vermos os novos craques e, de forma geral, uma ocasião singular para assistirmos todos os clubes do interior, o que é bastante raro.

Não nos esqueçamos que neste Torneio Início, além do mais, teremos novidades maiores a presença das duas cidades que, através das vitórias no futebol, credenciaram-se a participar da Primeira Divisão.

Com toda certeza não veremos os craques convocados para a seleção nacional, pois não se acredita nem que os clubes que os mantém sob contrato queiram exibi-los como, ainda, é de se imaginar que esses mesmos jogadores não desejariam se expor ao risco de uma contusão, que o afastaria desde logo até mesmo dos treinos da seleção. Um sensível desfalque em termos de atrações, mas compensado com a primeira apresentação daqueles que serão os seus substitutos. O torcedor estará interessado, particularmente, em saber quem ocupará o lugar de Casagrande, como se arranjará o São Paulo sem alguns dos seus valores….

Como não devemos esquecer que também desfilam os árbitros para que se possa ter uma ideia de como poderão correr as coisas no campo das arbitragens no campeonato. Afinal, o campeonato vem em seguida, na próxima semana.”.

Árbitros da segunda parte do Torneio Início de 1957. Da esquerda para a direita: Euclides Fattore Rosa, Catão Montez Junior, Dino Pasini, Casimiro Gomes, Sérgio Tramontani (Diretor do Departamento de Árbitros) e Telemaco Pompeu. A Gazeta Esportiva, 05/06/1957. Disponível na Biblioteca do CRFB.

O jornal Popular da Tarde em seu caderno de esportes publicou um editorial em 23 de junho de 1984, sob o título “Torneio Início, Saudade do Futuro”, o qual transcrevemos na íntegra:

“Em torno dos trabalhos de exumação do Torneio Início, rondaram sombras de ciúmes (pelo fato de o evento ter o patrocínio de uma empresa que opera na área de televisão, como a Promoção) e de bucólicas (às vezes basbaques) nostalgias.

Nem o acontecimento merece reparos por ter apoio financeiro da TV, tampouco a sua reedição bastará para fazer o futebol paulista mergulhar na atmosfera romântica dos anos 50.

Na verdade, o Torneio Início morreu de inanição, na medida em que a política, tomando conta do futebol, inflava a nossa Primeira Divisão e os grandes clubes, como resultado da crescente desproporcionalidade, se desinteressaram em investir para valer nessa competição. Retirando-se a qualidade técnica do espetáculo, esvaziava-se o seu conteúdo. E, sem base financeira, faleceu o velho Torneio Início.

Eis por que se justifica plenamente a sua ressurreição com as verbas injetadas por um acordo comercial com a TV. Mesmo porque é nesses casos que a TV mais se torna aliada do futebol, embora os cretinos de sempre (ou aqueles que se fazem de cretinos para defender outros interesses paralelos) assestem com frequência suas baterias sobre esse tempestuoso relacionamento TV-Futebol.

Claro que curto algumas incursões ao passado, pois a sabedoria da Natureza dotou o homem do poder de selecionar as lembranças, retendo apenas aquelas mais tépidas e saborosas. Mas não suspiro pelo passado como um instante congelado na história como um padrão de perfeição a ser resgatado a qualquer preço. Mesmo porque há vários passados, embora eles se encontrem na infância de cada um. No futebol, então, a coisa chega a ser engraçada, pois eu mesmo testemunhei sóbrios senhores lançando ais de saudade da figura esguia e imarcável do legendário Fried enquanto assistiam Pelé cumprir a mais antológica carreira de quantas a história reservou a jogador qualquer.

Outro dia, num papo com um garotão de seus 18 anos, santista, claro, surpreso, colhi dele fundas saudades e imagens magicamente distorcidas de seu Santos campeão de 1978…

Os tricolores da faixa dos 30 certamente cultivam na memória como um super esquadrão o time campeão de 70/71, embora quem tivesse visto em ação aquele e comparando com o bicampeão de dez anos após — romantismos à parte — sabe perfeitamente que o mais recente, no geral, era muito superior.

Assim como os corintianos que hoje criticam Sócrates, amanhã estarão curtindo as lembranças deste bicampeão como seus pais curtiram o outro bicampeão de Baltazar, Cláudio, Luizinho, Roberto, Gilmar…

E assim vai como tem sido desde o aparecimento do primeiro piteco nesta pequenina bola azul chamada Terra.

Não sei quem já disse, porém, que sentia saudade apenas do futuro. E dai uma frase que me agrada, pois nela se insere ideia utópica de que a realidade presente seja sempre depuração das boas lembranças passadas adubando as sementes de um amanhã melhor.

Dos anos 50, por exemplo, cultivo as lembranças de um Campeonato Paulista disputado ainda com apenas 12 clubes, o que lhe conferia força, atração e rentabilidade, na esperança de rever brevemente essa saudade nos dias de hoje; um torneio disputado apenas nos finais de semana, dentro de calendário rigoroso, racional, com o apoio de poderosas organizações comerciais, a verna de carnê antecipado e tudo o mais que possa permitir que o nosso futebol volte a ser um espetáculo atraente e lucrativo.

Aliás, a redução do número de participantes na Primeira Divisão é que permitia a realização de Torneios Início memoráveis, uma festa dedicada ao público, aquele afinal a que se destina o espetáculo.

Hoje, com 20 clubes, sei que não se terá a mesma magia. A magia que começou a fugir exatamente quando mais se inflava a disputa.

Na verdade, o Torneio Início, da forma como o conhecemos nos idos de 40–50, embora sua origem remonte ao final da primeira década do século, tinha uma profunda identidade com os chamados festivais varzeanos, quando certos domingos eram superados para reunir extras e amadores de toda uma região, em jogos sucessivos cujas taças tinham valor do suor que regava a terra das miríades de campinhos que se espalhavam pela cidade inteira.

Talvez fosse essa identidade com o futebol de várzea, o futebol de rua, que conferia ao Torneio Início aquele ar meio debochado, meio ingênuo, quase infantil que era sorvido com prazer singular pelo torcedor das gerais do Pacaembu. Os escanteios valendo mais que gol, o tempo se escoando rapidamente, a festa de cores múltiplas que se sucediam no gramado, o gozo de torcer pelo seu time e contra seus rivais ao mesmo tempo, enfim, aquela descontração toda.

Nunca me esquecerei por exemplo, da cena chapliniana protagonizada pelo goleiro Poy, num desses Torneios Inícios. Ídolo de sua torcida, já veterano, Poy voltava a campo depois de longo tempo de recuperação de uma cirurgia nos joelhos, creio.

Sua entrada foi celebrada com rojões e tudo mais no rigor da moda. Postou-se o gringo sob os três paus e ficou ali comandando seus companheiros contra o Guarani, se não me equivoco. Ia lá o Tricolor se classificando com tantos escanteios possíveis, quando, no finzinho do tempo, alguém disparou um chute pretensioso (nunca entendi por que os locutores daquela época e os de hoje insistem no inverso) lá do meio-campo. A bola, preguiçosamente, subiu e desceu, depois de longa trajetória, nos braços do goleiro. Desceu e varou braços, pernas e foi rolando suave até as redes. E Poy, ali olhando de pernas abertas, olhar perdido soterrado pela vaia da torcida, o aplauso malicioso dos adversários e a desolação dos companheiros que caíam fora da competição logo nos primeiros 15 minutos.

E o gringo, por certo, só ouvia a voz do portenho que habita sua alma a consolá-lo: “Son cosas del bandoneon viejo….”.”

A Gazeta Esportiva, 10/05/1958, p. 4. Disponível na Biblioteca do CRFB.

Por que considerá-lo ou não?

Algumas correntes de pesquisadores da história do futebol alegam que o Torneio Início era uma competição menor e que o tempo de duração das partidas não era compatível com os parâmetros dos jogos das competições principais. Para efeito de catalogação e registro isso seria o bastante para não o considerar como válidos nos números oficiais.

Outra alegação para não levar em conta os jogos do Torneio Início na relação dos confrontos é o fato de que em algumas ocasiões as principais equipes disputavam a competição com equipes alternativas.

Na visão de quem considera o Torneio Início como jogos válidos, as justificativas mais relevantes são:

1. Competição oficial organizada e chancelada pela entidade máxima do futebol estadual;

2. Competição com regulamento definido;

3. Competição com premiação estabelecida (troféu e bonificação em dinheiro aos participantes);

4. Competição com arbitragem oficial;

5. Competição com ampla difusão da mídia;

6. Competição com bilheteria, renda e público;

7. Competição com tradição e continuidade por cerca de quatro décadas consecutivas;

8. Competição congregando todos os filiados da Divisão Principal;

9. Competição em que as equipes utilizam seus uniformes oficiais;

10. Competição em que os atletas deveriam estar devidamente filiados e registrados de acordo com as normas vigentes;

11. Competição com súmula oficial.

Todos os campeões do Torneio Início Paulista

1919 — Corinthians
1920 — Corinthians
1921 — Corinthians
1922 — A.A. das Palmeiras
1923 — A.A. das Palmeiras
1924 — Paulistano
1925 — A.A. das Palmeiras
1926 — Auto Esporte Clube (APEA) — Santos (Extra APEA) — Paulistano (LAF)
1927 — Palestra Italia (APEA) — Paulistano (LAF)
1928 — Santos (APEA) — Paulistano (LAF)
1929 — não houve disputa (APEA) — Independência (LAF)
1930 — Palestra Italia
1931 — C.A. Santista
1932 — São Paulo
1933 e 1934 — não houve disputa
1935 — Palestra Italia (LPF) — Portuguesa de Desportos (APEA)
1936 — Corinthians (LPF) — Humberto Primo (APEA)
1937 — Santos
1938 — Corinthians
1939 — Palestra Italia
1940 — São Paulo
1941 — Corinthians
1942 — Palestra Italia
1943 — SPR (Nacional)
1944 — Corinthians
1945 — São Paulo
1946 — Palmeiras
1947 — Portuguesa de Desportos
1948 — Ypiranga
1949 — XV de Piracicaba
1950 — Ypiranga
1951 — não houve disputa
1952 — Santos
1953 — Guarani
1954 — Guarani
1955 — Corinthians
1956 — Guarani
1957 — Botafogo de Ribeirão Preto

De pé, da esquerda para a direita: Sula, Machado, Julião II, Dicão, Julião I e Gil. Agachados: Zezé, Moreno, Neco, Paulinho e Guina. Da A Gazeta Esportiva, 07/06/1957, p. 1. Disponível na Biblioteca do CRFB.

1958 — América de São José do Rio Preto
1969 — Palmeiras
1984 — Santos
1986 — Juventus
1991 — Bragantino
1996 — Portuguesa de Desportos

AUTORIA

Fernando Razzo Galuppo é jornalista, pesquisador do futebol e assessor de comunicação da S.E.Palmeiras. Autor dos livros “Alma palestrina” (2009); “O time do meu coração: Sociedade Esportiva Palmeiras” (2009); “Palmeiras campeão do mundo 1951” (2011); “Clube Atlético Juventus: glórias de um Moleque Travesso” (junto com Angelo Agarelli e Vicente Romano Netto, 2012); “Morre líder, nasce campeão!: 1942 arrancada heroica palmeirense” (2012); “Parque dos sonhos” (junto com Ezequiel de Oliveira Filho, 2016).

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