Apostilas: São ou não sinônimo de qualidade de ensino?

Paul Wegmann
Music Filter
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5 min readOct 27, 2017
A apostila (ou método fixo) prevê uma única forma de organizar o conteúdo, uma única forma de aprender, e ainda mais, pretende que todos os sujeitos se relacionem com o conhecimento da mesma maneira, ao mesmo tempo.

Amigos, alunos, ex-alunos e futuros alunos, gostaria de dizer algumas palavras sobre algo que, observo, parece ser uma preocupação bem comum por ai. Se trata da questão do uso (no meu caso, não-uso) de apostilas como guia para conduzir as aulas, no meu caso, de música.

O objetivo deste post é justificar, com base na literatura, por que o uso de apostilas e métodos fixos nem sempre é sinônimo de qualidade de ensino, ou de uma abordagem pedagógica/metodológica adequada para nossa época.

Gostaria de deixar claro que há professores que fazem bom uso deste recurso, como material de apoio que apenas pode ser compartilhado em forma de referência gráfica/textual. Em música são muito úteis as digitações para o instrumento, repertório, exercícios, etc. mas, pessoalmente, acredito que muita dessa informação acaba sendo uma mera compilação de conteúdos que se encontram disponíveis na internet e aos quais qualquer um pode ter acesso, tornando a apostila, muitas vezes, redundante e consequentemente desnecessária.

Apesar disso, continua sendo muito comum, inclusive hoje em dia, em pleno século XXI, que os alunos tendam a valorizar e confiar mais na escola ou no professor que utiliza apostilas (ou métodos fixos) como base para o ensino. O professor passa a ser visto com melhores olhos, como um cara “sério”, e os alunos ficam com “a sensação” de estarem aprendendo os conteúdos da forma correta.

Mas qual a origem dessa crença generalizada e onde está o perigo?

Para explicar, utilizarei como base uma obra recentemente publicada no Brasil intitulada Educação no Século XXI: cognição, tecnologia e aprendizagens, produzida por um autor inglês e mais cinco autoras brasileiras, todxs com ampla experiência e expressiva produção acadêmica na área da educação: o Dr. Ralph Ings Bannel, Dra. Rosália Duarte, Dra. Cristina Carvalho, a Pós-Doutora Magda Pischetola, Dra. Giovanna Marafon e Dra. Gilda Helena B. de Campos. Não irei mencionar o currículo de cada um porque ficaria muito extenso, mas sintam-se a vontade de ir atrás por conta própria.

Encontramos as respostas a nossas interrogantes sobre o uso de apostilas no capítulo do livro chamado Educação Escolar e “Inflexibilidade Cognitiva”. Se prepare, que vem bomba!

O primeiro que deve ser mencionado, para poder entender por quê a apostila não é sinônimo de metodologia apropriada nem de qualidade do ensino, é o fato que o modelo escolar atual continua repetindo os mesmos paradigmas desde a sua criação, lá no século XVIII, que foi quando se originou a escola tal e como a conhecemos hoje.
Este modelo histórico e desatualizado, e infelizmente, generalizado, utiliza como base dois elementos: “a sequencialidade dos conceitos abordados, e a concentração necessária para sua apropriação” (Bannel, Duarte, Carvalho, Pischetola, Marafon e Campos et al. 2016:105).

Estes conceitos acabam se refletindo na produção de material didático, neste caso a apostila ou método fixo, que prevê uma única forma de organizar o conteúdo, uma única forma de aprender, e ainda mais, pretende que todos os sujeitos se relacionem com o conhecimento da mesma maneira ao mesmo tempo. Isto é mais perigoso ainda quando se trata de educação artística.

Os autores declaram que esta “inflexibilidade cognitiva” (termo mais do que pertinente para definir este fenômeno, no meu ver) é resultado de uma concepção de ser humano há muito ultrapassada, chamada de homem desengajado, ou homem desprendido. Nesta concepção de ser humano, a cognição aconteceria apenas como resultado de processos mentais (internos), similar ao que acontece dentro de um computador.

Esta noção de ser humano desconsiderava, até então, aspectos que com o avanço das teorias cognitivas e da ciência se mostraram essenciais a todo processo cognitivo: a interação entre mente, corpo, ambiente, sociedade e sua história. Esta noção recebe o nome de homem situado, ou homem sócio-histórico.

Entre as crenças implícitas no uso das famosas apostilas, tão ingenuamente valorizadas por quem procura fazer aulas de música, está a que diz que “o desenvolvimento cognitivo se dá, principalmente, na relação com o conteúdo curricular” (Ídem), reduzindo o universo do aluno a “uma única interpretação da história, da sociedade e do mundo. Perde-se, dessa forma, o potencial da sala de aula em tornar-se um lugar de confluência de diferentes saberes e experiências, e de diálogo entre eles, fundamentais na construção do pensamento crítico, pois o aluno não é visto como um produtor de conhecimento, apenas como consumidor ou receptor”.

Vamos nos deter um pouco neste último ponto para fazer um apontamento ético sobre o uso da famosa apostila, que observei em algumas escolas privadas de música. Nestes casos (isolados, mas existem!) a finalidade é a de “segurar aluno”.

Funciona assim: você, professor, pode ensinar muitíssimo menos em muitíssimo mais tempo, entregar conteúdo hiper-dosado e hiper-mastigado.

Ou seja, o aluno não precisa saber que não vai dar certo, e ainda vai ficar com a sensação de estar aprendendo algo. Isto é, recebendo o produto pelo qual ele está pagando. Ou seja, você dá a algo que chamamos de educação artística uma certa carinha de produto, como se o aprendizado fosse algo que se adquire comprando. Assim, o aluno que iria desistir normalmente em três meses, fica na escola entre cinco e seis meses. Política da empresa.

Outro aspecto que deve ser considerado, e falando um pouco sobre a minha experiência como aprendiz (a vida inteira, e continuo sendo!), tive aulas com mestres que me passaram quase tudo de forma oral, direcionando-me de uma forma muito orgânica, humana e inteligente, respeitando meu próprio ritmo de aprendizado.

Mas nessa caminhada também observei que existem, do outro lado, professores inclusive de curso superior, com sendas apostilas coloridas, power-points muito bem organizados, mas com uma visível incapacidade de dar a esse conteúdo aparentemente tão organizado, uma profundidade que se esperaria de um curso de graduação.

E na hora de responder as perguntas dos alunos, que costumam ir além do power-point, transpiram!

Ou seja, a apostila, além de ser fruto de uma compreensão desatualizada do ser humano, portanto, de um modelo educacional ultrapassado, e ser utilizada muitas vezes com finalidades educacionais eticamente questionáveis — onde o que interessa é manter o consumidor consumindo, pouco importando o desenvolvimento intelectual e cognitivo do sujeito — não nos diz absolutamente nada a respeito da qualidade do professor.

É importante destacar que estas novas abordagens pedagógicas não defendem em hipótese alguma a eliminação do método, muito pelo contrário. A proposta é construir a metodologia em conjunto com o aluno, com base nas suas necessidades, dificuldades e objetivos individuais. Assim, é possível elaborar uma metodologia que se adeque ao aluno, ao invés de impor um método baseado em pressupostos do que a gente acha que os alunos devem aprender, em que ordem, e em quanto tempo. Desta forma, o aluno se torna responsável e principal protagonista pelo próprio aprendizado, desenvolvendo capacidade de planejamento e autonomia na superação de dificuldades.

Para finalizar este post, a decisão pela não utilização de apostila ou métodos fixos é uma questão de escolha pessoal fruto de uma consciência pedagógica, e não falta dela, como muitas vezes é entendido por alunos, inclusive por outros colegas professores, ainda apegados a métodos tradicionais que vem sendo sistematicamente contestados há mais de um século.

Procuro nas minhas aulas, adotar cada vez mais uma abordagem baseada em concepções atualizadas sobre o ser humano, tentando levar em consideração os diversos aspectos envolvidos nos processos cognitivos, essenciais na relação ensino-aprendizagem.

Continuarei no próximo post.

Saúde!

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