Ouvi sua música, mas não entendi nada!

Paul Wegmann
Music Filter
Published in
4 min readSep 18, 2017
B Rosen

Se nós, compositores, ganhássemos um real por cada vez que ouvimos uma frase similar à do título… já sabem o resto da história!

Por isso resolvi escrever sobre o assunto para tentar, de alguma forma, desconstruir os mitos que giram em torno do que significa ouvir, perceber e entender música, para público em geral.

O primeiro que tenho a dizer, é que vamos nos referir a música no seu estado mais puro, ou seja, desprovida de qualquer referência concreta. Acontece que um cidadão que não recebeu instrução adequada em matéria artística, especificamente, de música, normalmente está acostumado a ouvir música cantada, com letra. Quando a pessoa se encontra numa situação onde a música é puramente instrumental, ou seja, sem letra, simplesmente perde a referência, porque não sabe onde focar a sua atenção.

“Nossa… parece que a música não começa nunca!”

Já ouvi isso enquanto tocava música popular instrumental, ou seja, formato canção, mas sem letra, onde a melodia da voz é interpretada por um instrumento como a guitarra ou o piano, e quando a música volta ao início, começam os improvisos seguindo a mesma sequência de acordes.

A sensação que as pessoas sem instrução musical tem, é de estar ouvindo uma grande introdução para algo que não chega nunca rs e explico Por quê:

Simplesmente estamos perante uma expressão artística cuja referência não se encontra na palavra, mas isso não quer dizer que não seja possível, mediante um mínimo esforço perceptivo, encontrar uma referência.

Na música popular instrumental, a referência se encontra na própria forma da canção, ou seja, quanto mais íntimos somos com a canção, mais teremos a capacidade de seguir os improvisos do começo ao fim. Isto exige do ouvinte o ato de ir atrás das canções e construir um repertório, ouvindo versões cantadas, e instrumentais intercaladamente para entender a relação. Nada impossível, acredite! só lembre que o entendimento musical não vem de graça!

Duas coisas nas quais você pode focar: Detectar quando a música começa de novo, e quando um improvisador termina o solo e “passa a bola” para o próximo. Comece com Garota de Ipanema, ou músicas que você conheça bem. Tem zilhões de versões instrumentais, umas mais comportadas que outras. Milton Banana e Zimbo Trio são excelentes para começar a treinar sua percepção, já que o improviso é mais comportado, e não irá te confundir. Grupos mais atuais focam na desconstrução da canção, mas é um caminho gradativo que vá do simples ao mais complexo. Vá aos poucos mas não desista!

Já na música contemporânea de concerto, de tradição erudita, pode chegar a ser inclusive mais simples, pois muitas vezes a referência se encontra no modo em que um determinado estado sonoro se transforma no tempo. Alguns compositores mais ligados à tradição exploram a melodia como elemento principal (aquilo que na canção tem letra, só que sem letra rs), Villa-Lobos, por ex. Outros, já encaram a música como organização de sons na sua forma mais bruta, utilizando técnicas mais complexas, mas isso é coisa de especialista. Você, público, tem que encarar aquele momento como uma experiência sensorial, você decide onde focar sua atenção, o importante é eliminar o julgamento e se permitir “entrar na pira”. Sinta o barato!

Na nossa era, cada compositor é uma história aparte, mas o que gostaria de chamar a atenção é para o fato de que um indivíduo dotado do sentido da audição e da memória tem a capacidade inerente de perceber mudanças no estado do som. Não é?

Da mesma forma que armazenamos na nossa memória um dado primário como o grau de luminosidade, fazendo com que nos demos conta quando o dia está acabando, temos a capacidade de perceber quando um som se torna mais agudo ou mais grave, quando numa sequência de sons aumenta ou diminui a distância entre eles (ficando mais lento ou mais rápido), quando se torna mais ou menos intenso, quando temos uma carga maior de ruído ou elementos irregulares, quando a orquestra sai de um tutti (quando a orquestra toda está tocando ao mesmo tempo) para deixar apenas o naipe de violoncelos soando… Mesmo ouvindo a gravação de uma explosão numa televisão a volume baixo, sabemos que se trata de uma grande descarga de energia, assim como quando ouvimos a gravação de um sussurro, porém aumentamos o volume do aparelho de áudio, não irá parecer que essa pessoa está gritando, continuamos ouvindo um sussurro, em volume alto.

Estes são apenas alguns exemplos de mudanças de estado da matéria sonora apreensíveis mediante a audição em conjunto com a memória, por qualquer pessoa que tenha um ou dois ouvidos e um cérebro cuja memória esteja saudável.

Portanto, antes de pensar em “entender” o que vc ouve, foque em perceber.

A música está mais perto de você do que alguma vez imaginou. Vai por mim, é só ouvir! Se entregar ao momento, pensar que o músico que inventou aquilo fez com carinho, com dedicação, com muito suor. Não tente interpretar nada, não tente comparar o que ouve com música de algum filme ou com a trilha do seriado do netflix. Essa música foi feita para acompanhar as cenas e deixar você tenso ou relaxado.

A música pura não tem essa pretensão, é ela por ela mesma, nua, íntima, desfuncional, exibindo para você uma configuração inusitada, única.

Apenas ouça!

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