A Representação da Mulher em Um Violinista no Telhado

Natália Teles
Musicais: Utopias no Audiovisual
8 min readAug 6, 2016

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Resumo: Esse artigo pretende analisar o filme Um Violinista no Telhado (Fiddler on the Roof, Norman Jewison, 1971) sob a perspectiva da representação feminina, partindo principalmente das narrativas das três irmãs mais velhas. Busca-se entender a partir da estrutura da narrativa se o texto é realmente sobre o conflito entre tradição e mudança ou defende uma fala conservadora.

certa discussão sobre o filme Um Violinista no Telhado (Fiddler on the Roof, Norman Jewison, 1971), questionando se este é um texto feminista ou não. Nesse contexto, é interessante levar em consideração a forma como a mulher é representada dentro das características textuais próprias de um musical, para tentar entender melhor se o discurso em si do filme pode ser considerado feminista.

Desde o início, é estabelecido em Um Violinista no Telhado uma estrutura de duplo foco narrativo (dual-focus narrative), conceito apresentado por Rick Altman como estrutura narrativa comum no musical, na qual os eventos são organizados por relações de semelhança e diferença ao invés de sucessão lógica de causa e consequência. Esta é, de acordo com Altman, responsável pela divisão da narrativa em papéis de gêneros e colocar os ideais de feminino e masculino em situações de paralelismo e oposição, para finalmente conciliá-los através do casamento. Essa construção é imediatamente visível no primeiro número musical, Tradition (vídeo abaixo), no qual os papeis do pai, da mãe, da filha e do filho na comunidade judia de Anatevka são claramente definidos.

O casamento é, assim, visto como uma ferramenta utópica de resolução e anulação de conflitos, o que pode ser observado tanto nas narrativas de cada uma das três filhas mais velhas quanto na relação entre Tevye (Topol)e sua esposa Golde (Norma Crane).

Cada uma das irmãs e seus pares romãnticos, no ato de pedir permissão para se casar. Tzeitel e Motel (imagem 1), Hodel e Perchik (imagem 2) e Chava e Fyedka (imagem 3).

Uma colocação levantada a respeito das narrativas das filhas mais velhas do casal, Tzeitel (Rosalind Harris), Hodel (Michele Marsh) e Chava (Neva Small) é que, apesar de elas estarem lutando por uma liberdade que o status quo as priva, essa liberdade ainda é em função de uma figura masculina: a de casar com quem elas desejarem.

É importante observar, aqui, que as existências de cada irmã na narrativa estão em função da de seus respectivos maridos, Motel (Leonard Fray), Perchik (Paul Michael Glaser) e Fyedka (Ray Lovelock): com exceção do número musical no começo do filme no qual elas se rebelam contra o sistema de casamento arranjado, cada uma das irmãs apenas figura em tela, a menos que seu par romântico esteja presente, ou no caso de sua ausência física, o par romântico será lembrado através das falas dos personagens.

Após o clímax de suas narrativas, o pedido de casamento, ou no caso de Tzeitel, o casamento em si, cada uma das irmãs tem sua presença apagada, indo viver com seus respectivos maridos, sendo que o afastamento da personagem será equivalente à quantidade de rebelião mostrada por ela: Tzeitel vai viver no vilarejo com Motel, Hodel vai atrás de Perchik, que está preso na Sibéria e Chava é considerada morta por se casar fora da religião.

Embora em grande parte a narrativa de cada um dos futuros maridos orbite no par romântico também, pelo menos dois deles não podem ser considerados personagens que existem em função de suas futuras esposas, uma vez que eles têm interesses próprios e a trajetória de sua busca por esse interesse é mostrada: Motel deseja comprar uma máquina de costura, há uma cena inteira em celebração de sua conquista; Perchik tem ideais comunistas e deseja participar de uma revolução, e seu confronto com a polícia em Kiev também ganha destaque. Enquanto isso, a única das irmãs que tem algum interesse a mais citado é Chava, que gosta de livros, o que no entanto só será visto em presença de Fyedka, que se aproxima dela para compartilhar esse interesse.

As personalidades individuais de cada uma das garotas só tem chance de florescer em razão de seus pares: a teimosia de Tzeitel ao suplicar a seu pai que a deixe casar com Motel; a “língua afiada” de Hodel que é percebida pela primeira vez no filme por Perchik; Chava, que até então tinha tido poucas aparições, ganha um número musical cantado e a partir da visão de seu pai celebrando sua doçura (Little Chaveleh). A partir do momento em que Tzeitel, Hodel e Chava são colocadas em igualdade entre si, ou seja, não são individualizadas, se tornam quase permutáveis, o que é evidenciado no momento dos pedidos de permissão para casar de cada uma delas, no qual tanto as falas de Tevye, quanto a decupagem da cena, quanto o fundo musical se aliteram. Existem diferenças entre os resultados dos pedidos dos casais, mas elas são ao mesmo tempo anuladas e salientadas pelo tratamento semelhante que sofrem.

Essa comparação se assemelha à estrutura do duplo foco narrativo dada por Altman, embora a comparação seja feita aqui entre diferentes casais, ao invés de entre os membros do mesmo casal. Quando isso acontece, a narrativa adquire significado também de perpetuação, de que a cena representada é algo que acontece desde sempre e vai acontecer para sempre. O texto do filme sempre reitera que as coisas mudam, mas a partir do momento que essa mudança é repetida e trabalhada de maneira a salientar essa repetição, a própria mudança passa a parecer tradicional, e as questões problematizadas são despolitizadas, principalmente quando a comparação acontece entre casais de diferentes gerações.

A narrativa de duplo foco pode ser observada entre Tevye e Golde, no começo do filme, quando o monólogo de Tevye (em paralelo com o número musical Tradition) é sucedido pela visita da casamenteira Yente (Molly Picon) a Golde (seguida do número musical Matchmaker): os dois personagens se posicionam dentro da tradição familiar judaica, são estabelecidos os lugares femininos e masculinos; e de maneira mais sutil entre Tzeitel e Motel na mesma cena da visita de Yente, uma vez que os dois discutem com Golde, os dois são mandados embora e os dois aparecem por quantidades de tempo equivalentes em cena.

A narrativa de duplo foco pode ser observada também através da mise en scène, como na cena do casamento:

As semelhanças e diferenças de Tzeitel e Motel são colocadas em evidência através da composição e montagem paralela dos planos na cena de casamento.

A cena do casamento de Tzeitel e Motel é um momento emblemático da mitificação da ideia de tradição e de um status quo que não são afetados pelos esforços de mudança, não apenas pelo seu teor de resolução de conflito e apagamento de problemáticas utópico atrelado à própria significação de casamento; mas também por uma sensação de perpetuação, muito presente no número musical Sunrise, Sunset: quando os pais refletem sobre os filhos crescendo, quando Hodel e Perchik expressam seu desejo de também se casar, e principalmente no refrão:

Nasce o sol, põe-se o sol
Nasce o sol, põe-se o sol
Os dias passam velozmente
Sementinhas que logo viram girassóis
Desabrochando enquanto as admiramos
Nasce o sol, põe-se o sol
Nasce o sol, põe-se o sol
Os anos passam rapidamente
Uma estação seguindo a outra
Carregada de felicidade e de lágrimas

Ainda no casamento, há um momento em que a linha dividindo o lado feminino e masculino na festa (se trata de uma linha literal) é partida e contrariando a tradição, eles dançam em conjunto, mas é importante ressaltar que o agente dessa mudança é Perchik, um homem (seguindo essa lógica de pensamento, o próprio filme é dirigido por um homem e baseado em uma peça escrita por homens). Não apenas isso, mas Perchik é a única pessoa no filme que defenderá que “mulheres também são gente” (suas palavras, ao defender que mulheres deveriam aprender a ler). O momento da mescla dos lugares masculino e feminino é breve e não chega a ter consequências no desenvolver da história, uma vez que é imediatamente interrompido (e posteriormente esquecido) perante à ameaça dos policiais russos e do antissemitismo. De acordo com Elizabeth Phillips, essa interrupção serve exatamente para demonstrar que a mudança é perigosa e deve ser evitada (PHILLIPS, 2015, p. 136).

Elizabeth Phillips coloca o tema principal da narrativa de Um Violinista no Telhado como o equilíbrio precário entre tradição e mudança, embora no final se admita que existe um limite de até onde esse equilíbrio pode ser mantido. A meu ver, parece que a repetição do motivo do violinista, muitas vezes personificado, cria uma ilusão de equilíbrio precário, enquanto a tradição faz pequenas concessões, colocando seu limite de aceitação como um ponto além do qual não é possível passar, um ponto de ruptura, que parece a um primeiro momento muito mais distante do status quo do que realmente é.

Pensando a questão do feminismo, é importante observar que os dois únicos momentos musicais cantados principalmente por mulheres se encaixam nessa interpretação (desconsiderando a sequência do “sonho” de Tevye, na qual Fruma Sarah tem a voz principal, mas é uma construção dele e portanto não se trata de um discurso feminino, além de se afastar da estética dos outros momentos musicais do filme, com um tratamento de cores diferenciado e figurinos e cenário menos “realistas” que os outros números musicais, não podendo ser analisado em igualdade com eles).

Numa inicial rebelião, as irmãs se posicionam contra um sistema de casamento arranjado que não leva em consideração suas opiniões ao decidir seu futuro (Matchmaker, vídeo abaixo). No entanto, meio filme mais tarde, Hodel canta sobre abdicar seus sonhos e ideais anteriores por um homem (Far from the home I love, vídeo abaixo). Apesar de ser uma decisão corajosa e que parte de Hodel e não de alguma influência externa, é significativo que essas sejam as duas únicas músicas onde mulheres cantam sem ser parte de um coro ou dueto. Isso deve ser observado, uma vez que o momento musical é tão importante quanto a parte da narrativa “realista” num filme que se considera um musical.

Portanto, seria um exagero chamar o texto de Um Violinista no Telhado de feminista: determinados personagens apresentam ideias moderadamente feministas em alguns momentos do filme, mas são ideias não-radicais, que o filme trabalha para parecerem muito afastadas da louvada Tradição, mais do que seria possível para que fossem aceitas. Além disso, as personagens femininas, ao menos no que diz respeito às três irmãs mais velhas, tem muito pouca representação independente em tela, funcionando na maior parte do tempo como o “lado feminino” de uma narrativa de duplo foco entre elas e seus maridos.

Referências bibliográficas

ALTMAN, Rick. “The American Film Musical as Dual-Focus Narrative”. In: COHAN, Steven. Hollywood Musicals, the Film Reader. Londres, Nova York: Routledge, 2002. p. 41–51.

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia”. In: COHAN, Steven. Hollywood Musicals, the Film Reader. Londres, Nova York: Routledge, 2002. p.19–30.

PHILLIPS, Elizabeth. “Fiddler on the Roof: A Balancing Act.” The Montag, vol. 4, p.130–143, Reno, Nevada, 2015.

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