Amor Sublime Amor e a Representação da Mulher Latina

Luana Rosa
Musicais: Utopias no Audiovisual
11 min readAug 6, 2016

Resumo: O trabalho a seguir se propõe a discutir a representação narrativa e imagética das personagens latinas no filme Amor, Sublime Amor (Jerome Robbins e Robert Wise, 1961) levando em conta a imagem midiática das duas minorias em questão.

Anita lidera as mulheres em “America”

Em 1961, era lançado nos Estados Unidos o musical Amor, Sublime Amor (West Side Story, Jerome Robbins e Robert Wise), um sucesso de público e crítica considerado por muitos até hoje como uma masterpiece do gênero. O filme é uma adaptação do musical homônimo da Broadway e conta a história de Tony e Maria, jovem casal que vive um amor proibido em meio às disputas territoriais de duas gangues: Jets (garotos marginalizados da periferia de Nova York) e Sharks (imigrantes porto-riquenhos).

Tony, interpretado por Richard Beymer, é um americano descendente de poloneses e melhor amigo de Riff, atual líder dos Jets. Já Maria aparece na tela na pele de Natalie Wood, que embora branca, interpreta uma porto-riquenha recém chegada aos Estados Unidos. Ela é irmã de Bernardo, o líder dos Sharks. A trama à la Romeu e Julieta é pano de fundo para discussões sobre ódio, preconceito racial, imigração, tensões sociais e questões de classe.

Apesar do perceptível brown face de Natalie Wood, Amor Sublime Amor se firmou na cultura popular como um grande representante da cultura porto-riquenha, sendo amado por estadunidenses e mesmo por porto-riquenhos, como aponta o texto de Kennaria Brown, West Side Story Read From Below: Young Puerto Rican Women’s Cultural Readings (BROWN, 2010). Ainda que cometa alguns erros de representatividade, o filme de fato apresenta veracidade em questões-chave vividas por imigrantes porto-riquenhos tanto na década de 50 (época em que a história se passa) quanto nos dias de hoje. Além disso, como apresenta o texto da autora, é comum que grupos minoritários apresentem certa ambiguidade em sua apreciação de produtos culturais. Ao mesmo tempo em que rejeitam representações estereotipadas, se deixam entreter por elas por haver algum tipo de representatividade onde antes essa era negada.

Esse é o caso de Amor Sublime Amor. Por mais que o filme apresente críticas à truculência policial, ao racismo e às questões de classe e imigração, ele apresenta os porto-riquenhos (e principalmente As porto-riquenhAs) de maneira bastante rasa e clichê.

Para começar, os códigos culturais de Porto Rico não estão presentes no filme. Os códigos culturais representados são, na verdade, códigos genéricos que representam a América Latina como um todo, perpetuando “a ideia mítica da latinidade”. Os personagens são todos morenos e bronzeados, parecidos entre si; todos são dançantes e têm um requebrado natural; todos falam inglês com um sotaque bem marcado; as mulheres são provocativas e cheias de curvas; os homens estão dados à violência e andam com facas nos bolsos; enfim, uma visão tropicalizada de Porto Rico e de sua cultura.

De acordo com Aparicio e Chávez-Silverman, “Tropicalizar, como definimos, significa impregnar um espaço, uma geografia, grupo ou nação com um conjunto de traços, imagens e valores” (APARICIO, CHÁVEZ-SILVERMAN, 1997, p. 8). Eles argumentam que a tropicalização tem uma função hegemônica quando parte de “uma posição de primeiro mundo privilegiada”, porque isso lança os medos e preconceitos da cultura dominante sobre culturas subalternas, desse modo “facilitando a aceitação popular e justificando as intervenções imperialistas, invasões e guerras” (ibid.). O modo que a tropicalização se manifesta em Amor Sublime Amor é subordinando a cultura porto-riquenha a uma “ideia mítica de latinidade”, enquanto estereotipa porto-riquenhos como a personificação das mazelas sociais atuais, estabelecendo-os como bodes expiatórios.

Amor Sublime Amor conta uma história clássica com arquétipos claros e definidos. Mulheres estão estereotipadas. Imigrantes latinos estão estereotipados. Policiais e jovens brancos estão estereotipados? Também, um pouco. Mas essa estereotipagem tem um peso consideravelmente menor, tendo em vista os danos causados pela consagração da ideia do latino violento e da latina hipersexualizada. O filme de certa forma confirmou o receio da população quanto aos porto-riquenhos por causa da crescente violência de gangues e da disputa por mercado de trabalho nos Estados Unidos da década de cinquenta (PÉREZ, 1997, p. 151). A chuva de prêmios que a obra recebeu (só de Oscars foram dez) ajudou a autenticar o que ela representa.

Se esses estigmas trazidos pelos estereótipos são ruins para homens, serão ainda piores para mulheres, que além de suas identidades, terão também suas vidas afetivas, sexuais e sua segurança afetadas por essas representações. Nos tópicos a seguir, esse trabalho se propõe a analisar aspectos específicos de Amor Sublime Amor levando em conta a leitura que se faz da mulher latina e de seu corpo.

Felizmente, 55 anos depois desse cenário, percebemos que a representação feminina nos filmes apresentou certo progresso. Embora a esfera cinematográfica ainda seja predominantemente machista, agora há casos pontuais de real protagonismo e já não é tão raro que uma obra retrate mulheres sem objetifica-las ou diminui-las. Entretanto, não se pode dizer o mesmo sobre a imagem porto-riquenha na mídia. Amor Sublime Amor continua um elemento forte no imaginário popular acerca dos PR’s principalmente porque continua sendo o principal caso de representatividade porto-riquenha na mídia mainstream em que os personagens dessa nacionalidade têm voz, certo protagonismo e não estão presos somente à imagem de bandidos. Por isso esse estudo se faz tão importante.

“América”

O número musical da canção “América” talvez seja o que há de mais conhecido no filme. Nele, os personagens porto-riquenhos (com a exceção de Maria) dançam no terraço do prédio em que moram e cantam sobre os males e as promessas de morar em Nova York.

À primeira vista, o número é bastante machista. As opiniões sobre morar nos Estados Unidos são apresentadas de maneira bem dicotômica: os homens não gostam e as mulheres adoram. Os rapazes, comandados por Bernardo, falam sobre a maneira racista como são tratados no país e sobre as dificuldades financeiras de ser um imigrante. Enquanto isso, as moças são comandadas por Anita (namorada de Bernardo) e cantam sobre comprar a crédito e liberdade, sonham com apartamentos amplos e máquinas de lavar.

Essa separação sexista de opiniões soa como um discurso misógino de que as mulheres são fúteis e apolitizadas e gostam do luxo que os EUA lhes proporciona, enquanto os homens estão preocupados com os problemas reais e têm o espírito purista e nacionalista. Essa ideia é reforçada quando antes da música começar, Bernardo diz sobre Anita: “Ela sofreu uma lavagem cerebral. Está de caso com o Tio Sam”.

O terraço é palco para a dança dos porto-riquenhos, mas também se torna uma espécie de arena onde os homens e as mulheres disputam para ver quem está certo. A coreografia é montada de forma a demonstrar isso. Mas como se dá essa briga? Em parte do número, os homens avançam para cima das mulheres na hora de cantar e elas todas saem correndo. Mas quando é a vez delas cantarem, elas se aproximam deles dançando de forma sedutora. O figurino delas ajuda nisso: com exceção de uma, elas usam vestidos acinturados, decotados e cheios de anáguas. Elas dançam fazendo com que a saia dos vestidos se levantem e mostrem suas pernas e é dessa forma que se aproximam dos homens, como se fossem convencê-los através de seus corpos. Em um momento da música inclusive, quando Bernardo canta a respeito das coisas ruins que há na América, Anita argumenta: “você esqueceu que eu estou na América”.

No entanto, a montagem sexista dessa sequência não está de todo errada. Uma pesquisa feita por Kennaria Brown (2010) com jovens porto-riquenhas imigrantes de 16 a 21 anos, mostra que as opiniões de homens e mulheres porto-riquenhos nesse assunto costumam realmente se dividir dessa forma.

As jovens contaram através de suas experiências pessoais e da vivência de outras pessoas de suas famílias, que tanto na década de 50 quanto hoje em dia, a tendência é que os homens tenham o desejo de retornar à terra natal, enquanto as mulheres desejam viver nos EUA para sempre.

Uma pesquisa da década de cinquenta, A Puerto Rican Journey (MILLS, SENIOR, GOLDSEN, 1950) explica que isso se dá principalmente porque o porto-riquenho, ao retornar a seu país de origem, recupera também respeito e status, coisas que não consegue conquistar nos EUA. Já as mulheres, ao imigrarem, conquistam maior liberdade e independência através do trabalho fora de casa. Elas ganham poder para se libertar da dominação masculina de seus pais e maridos e muito disso vem com a independência financeira. Por isso, não lhes é agradável a ideia de retornar ao país. Os homens sentem sua supremacia masculina ameaçada por isso, que é outro motivo para quererem voltar.

Toda essa perspectiva é bastante contemplada em Amor Sublime Amor, embora precise ser lida nas entrelinhas. As porto-riquenhas chegam aos Estados Unidos e vivenciam com prazer uma ruptura da sociedade que conheciam antes. Já os homens não querem que essa quebra aconteça, se prendem aos valores de seu país.

Prova disso é que Maria chega aos EUA com um casamento arranjado com Chino, um conterrâneo que ela mal conhecia. Bernardo faz o papel do irmão ciumento, machista e protetor, pronto para defendê-la dos perigos que Nova York apresenta para o seu caráter virginal. Ele controla a vida sexual/afetiva dela e mesmo suas roupas. No início do filme, Maria implora para que Anita aumente o decote do vestido dela. Anita não o faz por ordens de Bernardo.

O líder dos Sharks fica furioso quando a irmã beija um americano. Depois de lhe passar um sermão, ele diz: “Quando você for uma mulher velha e casada, com cinco filhos, poderá me dizer o que fazer”. Isso demonstra que no pensamento dele, apenas casamentos e filhos dignificam uma mulher. Achando que ele está sendo muito duro com a irmã, Anita interfere depois: “As moças da América são livres para se divertirem”. A ideia que fica é que em Porto Rico elas não são. E isso é reforçado quando Bernardo pede para Anita espera-lo depois de um conselho de guerra. “Eu sou uma americana agora. Eu não espero”, ela diz. Bernardo retruca: “Em Porto Rico as mulheres sabem o seu lugar”.

Tudo isso deixa claro o porquê das porto-riquenhas defenderem tanto os Estados Unidos durante o número “América”. Mas a abordagem machista da coreografia não pode ser totalmente justificada por isso. E a dicotomia sexista não é a melhor forma de contemplar todos os pormenores desse cenário.

Maria

Natalie Wood como Anita

A protagonista do filme se difere extremamente das demais latinas da obra. Maria não é tão morena, não usa vestidos que ressaltam suas curvas, não tem o comportamento ousado e extravagante de suas conterrâneas. Maria não está na sequência de “América” e também não dança junto com os porto-riquenhos no baile, onde a estrela é Anita. Ou seja: Maria não é uma figura dançante e cheia de ritmo. Ela não se encaixa na representação padrão de latinidade.

Maria é o estereótipo da mocinha virginal e recatada, tímida. Não é a toa que ela é a única mulher a aparecer de branco no baile. Para não deixar dúvidas, quando ela demonstra interesse por Tony e ele pergunta se ela não está brincando, ela responde: “Eu ainda não aprendi a brincar dessa forma”.

Além disso, ela é apresentada como sendo superior aos demais personagens, de certa forma. Ela é a única que consegue enxergar como é tola a guerra das gangues, a única capaz de transcender as questões raciais. Jets e Sharks estão atolados em ódio. As demais mulheres fazem vista grossa para as brigas dos namorados e também não se misturam com as pessoas da outra etnia. Tony concorda com a visão de Maria. Mas ele não só já fez parte de uma das gangues, como se deixa levar pela emoção no final do filme a ponto de assassinar alguém. Maria é a única “imaculada”. E é ela a portadora da mensagem final do filme, alertando a todos sobre o perigo do ódio e da violência.

Que pensamento o filme passa com isso? Para que consiga ver através do conflito de raças é preciso que a mocinha seja menos latina? Por que uma mulher forte, independente, sexualizada e mais excêntrica como Anita não poderia fazer esse papel? Além disso, para merecer um homem americano é preciso ser menos latina, mais branca, mais “comportada”? Por que Maria e Tony foram o primeiro caso de amor interracial naquela comunidade? Por que foi Maria e não alguma outra porto-riquenha que conquistou Tony? Por ser virginal?

Estupro

No entanto, Amor Sublime Amor não é feito somente de erros. Há no longa metragem uma cena que faz alusão a um estupro. E no entanto, ela é extremamente respeitosa à imagem da mulher. A cena acontece na mercearia de Doc. Anita tenta dar um recado a Tony, mas os Jets avançam sobre ela.

Contrariando a tradição dos filmes musicais clássicos, essa cena não se vale do corpo da atriz para provocar erotização. E contrariando a tradição de Hollywood, a agressão se desenrola em cena de forma completamente coreografada, sem usar o sofrimento da mulher para causar comoção como um artifício fácil.

Os Jets a tocam nos braços e no rosto, levantam sua saia, a empurram para cima uns dos outros e por fim a jogam no chão. Isso tudo é visto pelo expectador em uma sequência de planos conjuntos de ângulos diferentes. Não há closes nem movimentos de câmera. O plano mais fechado desse seguimento mostra todos os personagens do busto para cima.

Uma sequência com essa conotação executada dessa forma em um musical demonstra uma maturidade narrativa e cinematográfica, visto que esse é um gênero que tradicionalmente usa os corpos amontoados das atrizes em coreografias geométricas e perspectivas ousadas, com câmeras ou mesmo atores que as tocam e percorrem e olham de maneira a remeter a um assédio ou mesmo a uma agressão sexual mais grave.

Final

Assim como em Romeu e Julieta, no terceiro ato de Amor Sublime Amor, uma falha de comunicação é responsável pela morte de Tony. Mas diferente do encerramento da obra shakespeariana, a Julieta porto-riquenha não se suicida. Quando Tony é baleado, ela chega a começar a cantar, acreditando que tudo ficará bem. Mas esse número musical é interrompido. A utopia dela morreu. Ela está sofrendo, está devastada e cheia de ódio. Mas ela não se mata. Maria não só tem forças para continuar vivendo como ainda dá um sermão cheio de lição de moral em Jets e Sharks. A mensagem que fica, além da do discurso contra o ódio e a violência, é a de que é possível sobreviver sem um homem.

Amor Sublime Amor é um filme que foi idealizado por cinco homens americanos e brancos: os diretores Jerome Robbins e Robert Wise; o letrista Stephen Sondheim; o compositor Leonard Bernstein e o roteirista Arthur Laurents. Era natural que um filme com uma equipe criativa tão pouco plural, inserido em uma indústria como Hollywood, fosse cometer diversas falhas de representatividade e carregasse discursos machistas e racistas. Entretanto, o filme não é feito somente de erros. O importante dos estudos de minorias em produtos culturais não é demonizar as obras clássicas do passado (quando não propositalmente preconceituosas), mas entendê-las dentro de um contexto e aprender com elas as consequências sociais e artísticas desses equívocos.

Referências bibliográficas:

BROWN, Kennaria.West Side Story Read From Below: Young Puerto Rican Women’s Cultural Readings”.The Communication Review, 2010.

APARICIO, F. R., & Chávez-Silverman, S. Tropicalizations: Transcultural representations of Latinidad. Hanover, NH: University Press of New England, 1997

MILLS, C. W., SENIOR, C., & GOLDSEN, R. K. Puerto Rican journey: New York’s newest migrants. New York: Harper & Brothers, 1950.

PÉREZ, G. M. “An upbeat West Side Story: Puerto Ricans and postwar politics in Chicago”. Centro Journal, 13, 47–71, 2001.

CHAVES, Anita. Do Figurino de Amor, Sublime Amor. Monografia — Universidade Federal Fluminense, 2011.

NEGRÓN-MUNTANER, F. (2000). “Feeling pretty: West Side Story and Puerto Rican identity discourses”. Social Text, 63, 83–106, 2000.

* As traduções dos textos citados são de minha autoria

--

--

Luana Rosa
Musicais: Utopias no Audiovisual

Atriz, roteirista e assistente de direção. Formada em Audiovisual pela UnB. Mais fã de Star Wars que qualquer nerdão e apaixonada pelo cinema nacional.