Bela… recatada e do lar: A representação feminina em A Bela e a Fera

Ana
Musicais: Utopias no Audiovisual
9 min readAug 6, 2016

Resumo: O trabalho pretende analisar como o feminino é representado no filme de animação “A Bela e a Fera” (Gary Trousdale e Kirk Wise, 1991), seja através das músicas, dos personagens e de pequenos simbolismos contidos na obra. Pretende também identificar em quais âmbitos a protagonista da obra se assemelha e diferencia das princesas anteriores.

“A Bela e a Fera” narra a história de Bela, uma moça do interior que, para salvar a vida de seu pai, entrega sua liberdade, virando prisioneira de uma Fera que havia sido amaldiçoada. Ao decorrer da história, eles se apaixonam e vivem felizes para sempre.

O filme da Disney anda na corda bamba entre deixar sua protagonista diferente ou continuar nos moldes das princesas anteriores. No que diz respeito ao físico de Bela, sua pele é um pouco mais corada e seus olhos e cabelos são castanhos. Seu cabelo possui alguns fios soltos na frente para diminuir o aspecto de perfeição atribuído às princesas, mas ainda assim, Bela segue a linha de ter olhos grandes e doces, nariz arrebitado, ser branca, heterossexual e possuir uma figura esbelta.

Sobre sua personalidade, Bela parece ser inteligente, determinada, boa filha, não se importa com as aparências, além de ter o hábito de leitura. Possivelmente sua personalidade foi construída devido a essa paixão pelos livros. Se afastando ainda das princesas clássicas, ela não fica sonhando com o príncipe encantado ou com o amor ideal, o que ela deseja é “viver num mundo bem mais amplo” e ter alguém que a entenda, não necessariamente um marido. Mas à medida que o amor romântico aparece em sua vida, ela também não o nega. Importante destacar que esse amor não é à primeira vista — Bela leva certo tempo para confiar e começar a nutrir algum sentimento amoroso por Fera.

A primeira canção do filme é a introdução da personagem principal e revela o que a aldeia (machista e preconceituosa) pensa de Bela. Uma garota estranha, esquisita, distraída, sonhadora, muito fechada, metida a inteligente, não se dá com o pessoal, pensa que é especial — são as características dadas a ela. Ao final do número, Gaston entra no caminho de Bela, retira de suas mãos o livro que está lendo e diz que não é correto uma mulher ler, pois logo começa a ter ideias próprias e a pensar.

Gaston, o vilão da história, é alto, forte, bonito e sensual. É um caçador e colecionador. Ele deseja se casar com Bela porque a considera a mais bonita da aldeia — ela é a melhor, e já que ele é o melhor, são “perfeitos” um para o outro. Ela seria mais um troféu na estante de Gaston, ou mais uma cabeça empalhada em sua parede. Acontece que ele é também um narcisista, machista, ignorante, grosseiro e, nas palavras de Bela “um homem primitivo”. Ao pedi-la em casamento, promete realizar os sonhos de Bela, quando na verdade o que Gaston descreve são os próprios sonhos: uma mulher bonita que cozinhe, massageie seus pés, seja fértil e cuide da casa. A mulher idealizada pelo homem não tem vez e não tem voz, ela só precisa ser bonita, jovem e obediente. O homem fica encarregado de ser valente e de sustentar o lar.

Ao contrário de Bela, existem três mulheres loiras quase idênticas, sendo possível distingui-las basicamente pela cor de seus vestidos, que são obcecadas por Gaston. Elas não aparentam qualquer repulsa pelo jeito dele, ao contrário, acham que ser grosseiro e bruto são sinais de masculinidade, o que as deixa em êxtase. No filme elas não possuem nenhuma identidade, mas em uma revista em quadrinhos lançada pela Marvel no ano de 1994, é revelado que elas são irmãs e têm nome — Claudia, Laura e Paula — mas são conhecidas como As Bimbettes. Bimbette é uma expressão americana, feminino de Bimbo, que significa uma pessoa considerada intelectualmente tola e que tem um interesse exagerado em parecer sedutora.

Além das Bimbettes, outras moradoras da aldeia e do próprio castelo (quando viram humanos), também se vestem de forma mais sensual, com decotes e espartilhos afinando a cintura. A guarda-roupa acrescenta dizendo que o que sente falta em ser humana é de passar maquiagem e soltar os cabelos. Em comparação com animações anteriores, essa forma sensual de se portar pode ser encarada como um avanço à liberdade das mulheres, que tinham a imagem de mãe santa, sem vontade própria, que existe para satisfazer o marido. No novo comportamento, a mulher se assume como dona do próprio corpo e o usa como quer.

Adiante, quando Bela já está como prisioneira no castelo da Fera, ela conhece os objetos animados da casa: Lumière, Orloge, Madame Samovar etc. Interessante notar quais objetos eram mulheres antes do encantamento: o bule, o espanador, o guarda-roupa, a maquiagem, as panelas, os talheres, as vassouras, os esfregões. Literalmente objetificando e afirmando um estereótipo que existe há tempos, onde tarefas domésticas são destinadas somente às mulheres. Os artefatos masculinos (candelabro e relógio) possuem funções de maître e mordomo, aqueles que supervisionam e controlam o castelo.

Vale ressaltar que o encantamento do castelo foi feito por uma feiticeira, muito comum nos filmes da Disney, que costuma colocar mulheres como rivais. De um lado, no papel de Virgem Maria, estão as princesas, enquanto no papel de Maria Madalena estão as bruxas, feiticeiras, madrastas más e rainhas invejosas, prontas para serem apedrejadas, prontas para serem queimadas na fogueira. Geralmente nos filmes, o mal é demonstrado pela feiura, enquanto os mocinhos ficam com a beleza.

Um dos números musicais mais famosos do filme é “Be Our Guest”, que em português virou “À Vontade”, possui fortes influências berkeleyanas. Primeiramente Lumière anuncia que vai cantar, assumindo assim a não naturalidade do número. Tem-se a câmera como ponto de vista do espectador, planos zenitais e trabalho de câmera caleidoscópica. Nos números de Busby Berkeley, é comum ter números aquáticos, demonstração de riqueza e mulheres bonitas sem suas individualidades, transformadas em padrões geométricos. Em “Be Our Guest”, as piscinas e cachoeiras foram substituídas por uma taça gigante de ponche, os talheres e pratos viraram um coral uníssono que dançam em movimentos iguais e repetitivos, e que de certa forma, representam essas mulheres bonitas. Mesmo com o pós-Depressão de 29 e mesmo Bela tendo perdido sua liberdade, o clima de festa, surpresa e abundância é o mesmo.

As imagens formadas nos números Berkeleyanos, em geral são símbolos que representam a sexualidade feminina, como por exemplo, círculos e flores. Flores são simbolismos que representam beleza, fertilidade, pureza, perfeição e às vezes até virgindade, e que no filme, marcam presença. No início, Bela brinca com um dente-de-leão (conhecida também como amor-dos-homens), que representa a esperança, liberdade e otimismo. Segundo lendas populares, os apaixonados a devem a segurar, pedir o amor desejado e soprar suas pétalas. Caso elas voltem com o vento, é sinal de que o amor será correspondido. Mas a flor que ganha destaque é a rosa vermelha, que na mitologia Greco-romana estava ligada à Afrodite/Vênus, deusa do amor e da beleza, logo, representando também a sensualidade e a fertilidade.

Outro símbolo presente no filme é o espelho, geralmente ligado à verdade, sinceridade e pureza, mas também ligado ao mito de Narciso. Não à toa, ele pertence à Fera, que era um menino mimado, egoísta e grosseiro que após ser amaldiçoado, se sentiu envergonhado pela própria aparência. O espelho mágico servia como janela para o mundo exterior, mas pode-se afirmar que também servia como janela para o mundo interior de Fera. Toda vez que visse seu reflexo, lembraria como já foi um dia, e quiçá aprenderia a ter compaixão pelo outro, sem se importar com as aparências.

Após desobedecer as ordens de Fera, Bela é expulsa do castelo aos berros e foge pela floresta. No percurso é atacada por uma alcateia, mas ao invés de chorar, Bela enfrenta e tenta se defender. Mas como toda boa donzela em perigo, ela não conseguiu se livrar sozinha, sendo necessária a chegada de Fera para salvá-la. Por estar ferido, Fera desmaia, e Bela o ajuda a se recuperar. A partir daí, mudanças no comportamento de Fera vão surgindo, ao passo que Bela exerce papel de mãe: cuida dos machucados, o ajuda a comer, ensina a ter bons modos, ensina a ler, lê para ele, etc.

Os artefatos do palácio se fazem amigos de Bela, tentam fazer com que ela se sinta em casa, mas esse comportamento não é espontâneo e puramente sincero. O motivo real é que eles desejam ser humanos outra vez. O tempo todo afirmam que ela é quem vai quebrar o feitiço, e não parecem se importar de fato com o bem-estar de Bela (quando Fera tem atitudes agressivas e quando ela precisa sair do castelo para ajudar o pai). Tudo o que pensam é “lá se foi nossa esperança”. Por vezes os objetos até aconselham Fera a ser galanteador, cortês, impressioná-la com mimos e a fazer “promessas que não vai cumprir” — Bela é apenas o utensílio, o caminho para desfazer o sortilégio.

A última canção, “The Mob Song” ou “Canção da Multidão”, reafirma a intolerância e machismo do vilarejo. “Quem é homem vai ter que lutar, tem que me seguir!” entoa Gaston, convocando somente os homens da aldeia para a luta contra a Fera. As mulheres são retratadas assustadas, indefesas e dependentes de seus heróis corajosos — tudo o que elas podem fazer é ficar em casa protegendo os filhos e fazendo orações para que esses heróis voltem bem.

Ao se tratar da sociedade primitiva, as atividades nobres são responsabilidade do homem, enquanto as subalternas cabem à mulher. Os homens são glorificados com os louros da caçada, enquanto pras mulheres restam atividades de menor prestigio no contexto em que se passa o longa, como ficar em casa e cuidar dos filhos, não lhes rendendo status de salvadoras (CARVALHO, 2014, p. 57).

Durante a invasão ao castelo, dois momentos chamam atenção. O primeiro é o desnecessário desespero de um dos homens, que ao lutar com o armário, tem suas roupas trocadas por saia, sutiã, salto, peruca e colar, e o faz fugir aterrorizado. O outro momento é quando o espanador (Fifi) tem suas penas arrancadas — é gritante e assustadora a alusão ao estupro — sendo salva pelo seu par, Lumière.

Por fim, Bela se encontra satisfeita vivendo no palácio com seu príncipe, com criados, uma biblioteca própria e com seu pai. A personagem que é tão inteligente, tão independente, tão mente aberta, acaba abrindo mão de seus interesses pessoais para uma situação de conforto. Apesar de querer conhecer mundos distantes, ela acaba ficando na mesma região, já que o castelo não fica muito distante da aldeia. A não ser que o mundo novo que ela deseja esteja nos livros. Aí sim, com uma biblioteca enorme e nova, ela poderá conhecer esse mundo.

Portanto, “A Bela e a Fera” não difere tanto dos contos antecessores, parece que tenta agradar a Gregos e Troianos ao apresentar Bela como mulher decidida, mas que ao mesmo tempo se mostra frágil e maleável. Pegam uma fórmula já usada, modificam de acordo com o contexto social em que a obra é realizada e produzem algo muito similar. Continuam presentes: os padrões estéticos das protagonistas (ocidental, branca, magra), os padrões de comportamento feminino (educada, meiga, calma), o amor romântico (heterossexual) que garante o final feliz, a ausência de personagens de diferentes etnias e, a pena de morte para os malfeitores.

Referências bibliográficas:

CARVALHO, Ana Elisa Alves de. Personagens femininas em animações dos Estúdios Disney: transformações de perfis em mulheres complexas. 85f. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação — Departamento de Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2014.

LOPES, Karine Elisa Luchtemberg dos Santos. Análise da evolução do estereótipo das princesas Disney. 52f. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação — Departamento de Comunicação Social, Centro Universitário de Brasília, 2015.

NEVES, Fátima Maria; BENTO, Franciele; MEN, Liliana. A leitura no desenho animado “A Bela e a Fera”: incentivo ou estratégia mercadológica? 8f. — Universidade Estadual de Maringá.

AGUIAR, Eveline Lima de Castro; BARROS, Marina Kataoka. A representação feminina nos contos de fadas das animações de Walt Disney: Ressignificação do papel social da mulher. 15f. Intercom — Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste — Universidade Estadual do Ceará, Faculdades Nordeste, 2015.

FOSSATTI, Carolina Lanner. Cinema de animação e as princesas: Uma análise das categorias de gênero. 16f. Intercom — Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, X Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2009.

VAZ, Priscila Mana; BALTAR, Mariana. A Bela e a Fera — Uma análise do musical animado da Disney. 5f. Intercom — Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste — Universidade Federal Fluminense, 2012.

CECHIN, Michelle Brugnera Cruz. O que se aprende com as princesas da Disney? Revista Zero-a-seis, Revista eletrônica editada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas de Educação na Pequena Infância, v.1, n. 29, Jan./Jul., 2014.

FISCHER, Lucy. The Image of Woman as Image: The Optical Politics of Dames. Film Quarterly, University of California Press, v.30, n.1, Outono, 1976.

COHAN, Steven. Hollywood Musicals, The Film Reader: In Focus Routledge Film Readers, 2002.

--

--

Ana
Musicais: Utopias no Audiovisual

I started to cry which started the whole world laughing