Cabaret: O gênero como ferramenta de desconstrução da estética fascista

Resumo: Este artigo busca analisar como as representações de gêneros no filme Cabaret (Bob Fosse, 1972) são as principais ferramentas para a contraposição e desconstrução da estética fascista, com destaque para a relação entre gênero e política no personagem do Mestre de Cerimônia.

O filme Cabaret (Bob Fosse, 1972) pode parecer superficial e simples em questões políticas e de como ele se apropria do gênero e suas representações, porém é essa sua principal arma contra a estética fascista tão recorrente no filme. Para alguns estudiosos, os jogos entre gêneros nos números musicais representam a decadência da República de Weimar, mas o que é chamado de “decadência” por esses estudiosos parece nada mais do que uma visão negativa das representações de sexualidade e gênero. A forma com que o filme se apropria dessas questões tem total importância quando colocada em confronto com as representações fascistas do filme.

No artigo serão analisados três momentos musicais que acontecem no Kit Kat Klub: A sequência da dança típica alemã, “Tiller Girls” e “If You Could See Her”. Além da única sequência musical performada fora do Kit Kat Klub, “Tomorrow Belongs to Me”. A partir desses números musicais que irão formar o tom político do filme, o filme construirá e contrairá essa “estética fascista” — deve-se entender que essa definição é sobre o que é apresentada no filme, pois a palavra “fascista” nos dias de hoje pode ser designada a outras concepções.

Antes de analisar a sátira política do filme, é preciso entender como ela funciona e quais são suas teorias gerais. Segundo Susan Vogel em “Humor: A Semiogenetic Approach”, há três teorias gerais sobre o humor: “Teoria da Incongruência” onde o efeito cômico é causado pela desarticulação de pares ou elementos de choque, surpresa e do inesperado; “Teoria do Alívio e Escape”, cujo humor é usado para ser o alívio das restrições ou como escape do excesso de tensão; “Teoria da Superioridade”, cujo humor reside na zombaria ou depreciação de um alvo específico. Mesmo com uma ferramenta tão mutável e complexa de se definir em linhas gerais, essas categorias são primordiais para entender como o riso funciona.

A suástica nazista após ser “descoberta” pelo movimento de câmera em “Tomorrow Belongs to Me”.

Será analisado primeiramente um dos números mais próximos do final do filme “Tomorrow Belongs to Me”. O número musical não é apenas importante por causa que é o único performado fora do Kit Kat Klub, mas é desse fato que realça sua importância. Analisando a sequência é possível perceber os elementos que o compõe, um garoto, tipicamente alemão, ou “ariano”, começa de forma suave a cantar uma música energética e sobre um futuro esperançoso para ele, ao passo que a câmera abaixa, mostrando a bandana com a suástica nazista em seu braço, a música se intensifica e a maior parte da população começa a acompanhar o garoto na canção, tomando o lugar em coro e sendo finalizado com uma saudação nazista. Ao fim da saída dos personagens de Max e Brian a cena é entrecortada por um plano do Mestre de Cerimônias olhando para a câmera com uma expressão de malícia, é nesse plano que fica facilmente identificável a dupla intenção do personagem e de sua complexidade, que será aprofundada no número “If You Could See Her”. É nesse número musical que a estética fascista é completamente consolidada: para alguns teóricos contemporâneos uma das características dessa estética é a forma como ela absorve os outros por encorajamento da fantasia de que o indivíduo consegue atingir completa identificação com o coletivo. Assim não seria possível criar essa relação indivíduo-coletivo sem ser pela forma clássica de um musical, as pessoas começarem a acompanhar o garoto em coro ao passo que a música se intensifica, se homogenizando cada vez mais. Desse número deve-se lembrar, para futura análise, da homogenização da massa humana presente no número musical e da ordem dos movimentos.

A marcha em “Tiller Girls”

O próximo número musical, “Tiller Girls”, não será apenas analisado individualmente, mas em contraposição do número musical “Tomorrow Belongs to Me”. As garotas e o Mestre de Cerimônias (aqui in drag) dançam na primeira parte da performance em uma quase sintonia, contudo os movimentos não são calculados e perfeitamente atingido e suas expressões são de zombaria e diversão. É apenas na segunda parte, após o entrecorte da personagem Natalia encontrando seu cão morto, que as dançarinas congelam seus rostos e transformam seus chapéus em capacetes e os bastões em armas, e eles todos começam a marchar em sintonia. É nessa sequência que a teoria de Susan Vogel entra, é nesse momento que será encenado a Teoria da Superioridade, a zombaria que é provocada por dançarinas, representantes do gênero feminino, representando soldados, transformando toda uma ideologia de poder e controle em meras dançarinas; aqui também reside parte da Teoria da Incongruência, cujo efeito cômico é atingido pelo choque do inesperado. O Mestre de Cerimônias utiliza da arte drag não apenas de forma maliciosa com a platéia (na primeira parte), mas para zombar também de um escalão acima dos soldados, como ele é o único que mantém sua expressão desde o início da performance e está afrente das dançarinas, é dele o papel de falar que quem está acima desses soldados não tem diferença alguma entre a representação da primeira parte e a da segunda parte.

Há ainda muita divergência sobre se esse número entrecortado é realmente uma estética anti-fascista, ou se ela é o próprio fascismo. Muitos veem o Mestre de Cerimônia apenas como um “agente bobo” do fascismo, simples demônio que serve para descaracterizar o fascismo de suas reais intenções e mostrar como não se deve preocupar com ele. Contudo, nos dias de hoje também deve-se perceber que a alusão ao“fascismo” e suas características em outras artes ou estéticas é na verdade feita para descaracterizar, assim como eles dizem, mas com um propósito completamente diferente do de deixar como algo inofensivo. Assim como a banda alemã Rammstein já foi acusada de referências nazistas por causa do ritmo de sua música e letra, a cena de Cabaret descaracteriza a estética nazista e a transforma em nada, ou pior, em um motivo de zombaria e riso. Não se deve pensar na sequência como algo controlável e inofensivo, mas em descaracterizar essa estética, se algo não tem uma estética própria ou se sua estética é motivo de riso, não há motivo para que a ideologia dela permaneça nela. Descaracterizar a ideologia fascista é o efeito final desse número musical.

O Mestre de Cerimônias sobre as dançarinas com roupa típica alemã

O próximo número que será analisado é um que não se enquadra em questão de humor — o número da dança típica alemã encenada enquanto o dono do cabaré é espancado por garotos nazistas do lado de fora. Essa é a primeira cena em que o público é confrontado com o contraste do número musical no palco com o que ocorre fora dele. É aqui que o choque não tem efeito cômico, mas de tensão, de preocupação por conta da interligação criada ente o que seria tipicamente alemão. De certa forma esses dois atos não estão “entrecortados”, em forma de edição, eles são comparações da representação do alemão no filme. O “típico alemão” proposto no filme não é apenas o nazista que espanca, mas a pessoa que dança algo típico do século passado, vemos de novo a descaracterização da estética fascista. O número musical das dançarinas com os trejeitos afeminados e divertidos do Mestre de Cerimônia, o único a não usar um uniforme típico daquela dança, acaba por fazer com que ele seja o único a ficar em pé no final da performance — ou seja, essa seria a reviravolta do ato físico real do espancamento do dono do cabaré que acaba no chão pelos nazistas. Aqui o ato musical não tem o propósito de divertir, ou provocar riso, mas de paralelismo entre as situações, de mudança de dimensão entre o final das duas, reforçando a ideia de desconstrução da estética fascista, não apenas para ridicularizar, mas também para a pulverizar a ideologia nela impregnada.

Enquanto que esse número musical também apresenta divergências de leitura entre os estudos, muitos o leem como um ato de mal gosto sobre a onda de violência provocada pelos nazistas. Por conta da falta do riso em sua estrutura de número musical, não pode-se definir realmente o número como parte da da estética fascista ou de sua desconstrução. O grande momento aqui para se pensar é sobre o período de produção, não apenas a palavra “Cabaret” tinha sua variação da República de Weimar, “Kabarett”, mas elas eram sinônimos — apenas nos anos de 1950 que a palavra “Kabarett” começou a significar crítica política, enquanto que “Cabaret” era usado como referência a um show de striptease. Contudo, em nenhum momento do filme o tom de crítica política se subalterna ao tom de show, eles não estão representados no filme como momentos diferentes e alternados, mas como momentos em conjunto e de sintonia. Mesmo que o próprio cabaré não seja um lugar de consciência política, as encenações nele feitas e a forma que o filme leva os números musicais podem ser lidos tanto com um propósito pró-fascista, como um propósito anti-fascista. Segundo a crítica de Alan Lareau:

Ambiguidade desconcertante, ironia, citações brincalhonas e ousados questionamentos— eles disfarçam a essencial atitude de um cabaré . . . O melhor cabaré é uma faca de dois gumes de diversão e resistência, de zombaria e melancolia (BELLETO, 2008, p. 617).

Logo, não há necessidade de tentar compreender definitivamente as intenções dos números musicais do filme, apenas especulação e leituras diversas vindo de cada um, segundo sua visão. Entretanto, as diversas formas de leitura do filme Cabaret é o que o torna tão complexo em questões de ideologia política, e não deve ser rechaçado caso a visão do filme for a de defesa de uma ideologia catastrófica, pois o filme não tende a tomar lado em suas representações.

O polêmico final de “If You Could See Her”

O próximo número musical analisado é o número mais polêmico, tanto da peça, quanto do filme, “If You Could See Her”. Em primeira instância deve-se lembrar como começou toda a polêmica da performance, na peça musical de 1966 a frase “She wouldn’t look Jewish at all” (“Ela não parecia judia o suficiente”) causou um mal estar e teve que ser removida, substituída pela frase “She wouldn’t look meeskite at all”; contudo seu efeito teve uma drástica modificação e até perda de efeito. Para ser analisado propriamente, deve-se ver a questão sobre o romance entre os personagens de Natalia e Fritz. É nesse pedaço da trama que a performance musical de “If You Could See Her From My Eyes” se estabelece como parte da narrativa e, mais propriamente falando, como motivo para se pensar a ideologia que seria dominante, mas nunca perdendo seus traços de ambiguidade e seu humor por muitas vezes visto de forma maligna.

Outro motivo do descontentamento de alguns por conta desse momento musical é a interligação que se pode fazer entre a pessoa fantasiada de gorila com um judeu, sendo interligados pela questão de sub-humanos. A fantasia de gorila foi duramente criticada como uma representação antissemita. Contudo o número musical é apresentado com variações de seu conteúdo, deixando ainda mais confuso o espectador ao seu final. Não apenas em primeira percepção o sentimento de ofensa é definido pela fantasia, mas em sua letra ele o ameniza e parte logo para outra visão, a qual se intensifica na parte do discurso declamado pelo Mestre de Cerimônias que interrompe a música:

Meine Damen und Herren, Mesdames and Messieurs
Senhoras e Senhores
É um crime se apaixonar?
Alguém pode escolher para onde o coração vai nos levar?
Tudo que pedimos é eine bisschen Verstandnis
Por que o mundo não pode leben und leben lassen?
‘Viver e deixar vive’?

A platéia olha fixamente para o Mestre de Cerimônia enquanto essas palavras são declamadas. Esse momento fugaz é seguido pela finalização, onde o Mestre de Cerimônias diz “She wouldn’t look Jewish at all”, e começa a dançar no palco em meio aos risos da platéia. O público (e o espectador do filme) fica se perguntando se essa última frase endossa a estética e pensamento fascista ou está montando uma crítica tanto à visão de Fritz sobre Natalia quanto dos próprios fascistas.

Seria absurdamente sub-humano e fascista após uma declaração sobre o amor ele declamar sobre ela não “parecer judia o suficiente” como se judeus não fossem seres humanos para ser amados, “viver e deixar viver”, e é nesse ponto que a crítica negativa vê o número musical, como uma forma de perpetuar a ideia de que judeus não são seres humanos, e se são, são seres humanos de uma categoria inferior aos outros, ou ainda pior, abaixo até mesmo de um gorila. O amor entre um gorila e um homem seria visto como algo romântico na apresentação, que ninguém deveria se importar, contudo se for uma judia seu comportamento seria diferente.

Entretanto, Joel Grey, o interprete do Mestre de Cerimônias tanto na peça quanto no filme, considera a frase “anti-anti-semita”, um comentário de humor negro (assim como tudo ligado ao seu personagem) sobre o virulento anti-semitismo do partido nazista, a linha seria um “chute na virilha” para o público destinado a chocar, provocar e transmitir para eles o horror do anti-semitismo da atmosfera da época. Como o filme foi feitos décadas após aquela época e após todos já terem consciência do que o nazismo se tornou, ainda não era possível transmitir o sentimento de horror, sem ser emocionalmente manipulado, e foi com essa frase tão polêmica, pois tinha que ser mesmo, a ferramenta escolhida pelo filme para levar de volta o espectador àquela atmosfera nazi-fascista.

O Mestre de Cerimônias é uma figura “queerificada” em que nada que ele faz pode se levar a sério, mas que também não se pode ver apenas como superficial ou vazia. Seus trejeitos e relações com as dançarinas e os espectadores do cabaré são uma desculpa para que, na época, fosse aceitável fazer essas críticas. Ou seja, ele se utiliza de gêneros e suas representações, pois não há gênero sem representação, para criar o tom de zombaria da estética fascista. Por conta de sua persona criada e de seu efeito cômico, as zombarias e malícias não ajudam a definir suas reais intenções. O personagem levanta questões de ambiguidades com relação a suas intenções, e assim se torna o mais complexo personagens do filme, que pode ser visto por óticas completamente diferentes.

Referências bibliográficas:

BELLETTO, Steven. Cabaret and Antifacist Aesthetics. Criticism, vol. 50, n. 4, Fall 2008, pp. 609–630.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero — Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira, 2003.

MORRIS, Mitchell. “Cabaret, America’s Weimar, and Mythologies of the Gay Subject”. American Music, vol. 22, n. 1, Spring, 2004, pp. 145–157.

TERRI, Gordon J. “Film in the Second Degree: Cabaret and the Dark Side of Laughter”. Proceedings of the American Philosophical Society, vol. 152, n. 4, December 2008, pp. 440–465.

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