Empire: A trajetória de Jamal Lyon e sua negritude homossexual

Empire (Fox, 2015-presente)

Guilherme Bianco
Musicais: Utopias no Audiovisual
9 min readAug 6, 2016

--

Resumo: Este artigo procura analisar a trajetória de Jamal Lyon (Jussie Smollett), personagem negro e gay da série Empire (Lee Daniels e Danny Strong, FOX, 2015-presente), principalmente durante a primeira temporada. Partindo de suas performances musicais, o foco da análise estará na relação dele com o pai homofóbico, e na identificação e representação de Jamal como homossexual.

No ar desde janeiro de 2015, Empire é uma série musical criada por Lee Daniels e Danny Strong e exibida pela Fox dos Estados Unidos. Focada no mundo do hip-hop, tem como enredo principal a relação conturbada entre os membros da família Lyon, na busca pelo controle da empresa que dá nome à série. Com elenco majoritariamente negro e repleto de participações especiais de grandes artistas da música, Empire logo se tornou um fenômeno de audiência. O número de espectadores quase dobrou entre as exibições do piloto e do último episódio da primeira temporada da série. Esse sucesso, porém, não se repetiu na segunda temporada, que perdeu grande parte do público anteriormente conquistado. Essa queda de audiência pode ser associada a diferentes fatores, mas um dos principais que aponto aqui é a mudança na atitude e na narrativa do personagem Jamal Lyon (Jussie Smollett), antes tido como um dois mais queridos do público (em competição acirrada com a deliciosa Cookie, da fantástica Traji P. Henson — não economizo elogios mesmo, a mulher é maravilhosa!).

Jamal Lyon (Jussie Smollett) e Cookie Lyon (Taraji P. Henson) em cena do episódio Piloto de “Empire

Jamal é gay e o arco do personagem durante toda a primeira temporada é baseado em sua busca por aceitação: aceitação de si mesmo, aceitação do público e, principalmente, aceitação de seu pai Lucious Lyon (Terrence Howard).

A sexualidade de Jamal é apresentada ao público logo na segunda aparição do personagem no episódio “Piloto” da série. Ele está sentado à mesa com seus irmãos Andre (Trai Byers) e Hakeem (Bryshere Y. Gray) quando o primeiro pergunta sobre o “amigo” de Jamal. Na aparição seguinte, já vemos ele e Michael (Rafel De La Fuente), seu namorado latino, juntos no apartamento onde vivem. Os dois conversam sobre a escolha de Lucious por seu sucessor no comando da empresa. Jamal diz a seguinte frase: “Ele nunca me escolheria. (…) Tem muita homofobia na comunidade negra”. E aos 11 minutos de episódio, já temos o primeiro beijo entre dois homens da série.

Apesar de realmente existirem pouquíssimos artistas negros abertamente homossexuais na indústria fonográfica (só consigo pensar em Frank Ocean), o mito de que a comunidade negra é mais homofóbica do que as outras comunidade é ainda muito questionado. Lee Daniels, um dos criadores da série — e negro e gay — , foi criticado por propagar esse mito. No artigo “Black People Are Not More Homophobic Than Everyone Else”, Michael Arceneaux afirma que Daniels não pode usar suas experiências pessoais para generalizar o assunto e criticar a comunidade negra como se ela fosse a raiz da homofobia. Em 2015, uma pesquisa feita pelo Public Religion Research Institute (PRRI) aponta que a maioria da comunidade negra apoia a existência de leis que protejam pessoas LGBTQ+ contra a discriminação.

Arceneaux aponta que Daniels acerta quando mostra a hipermasculinidade presente no hip hop (e consequentemente na comunidade negra) e afirma que a homofobia é amplamente baseada na misoginia. No texto “Queering/Quaring Blackness in Noah’s Arc”, John P. Elia e Gust A. Yep falam justamente sobre isso ao exporem o conceito de “negritude autêntica” (“authentic blackness”). Eles ligam o conceito de “negritude autêntica” a uma “ideologia heteropatriarcal enraizada no sexismo, heterossexismo, e homofobia” que se tornou hegemônica:

Essa concepção limitada — e dominante — de autenticidade racial definitivamente favorece homens negros heterossexuais como os legítimos representantes da raça enquanto torna outros, como mulheres negras, homens gays negros, e pessoas negras transsexuais, simbolicamente e materialmente inaudíveis e incompreensíveis. (ELIA e YEP, 2007, p. 38)

Ou seja, para ser visto como “homem negro de verdade”, ele deve ser masculinizado e se portar de forma machista, homofóbica e misógina, seguindo um modelo heteropatriarcal. Jamal segue, de certa forma, esse modelo, talvez para tentar se encaixar no mundo do hip hop e conseguir uma mínima aceitação do pai. Ele não é hiper-masculinizado, mas também não tem “trejeitos” nem se veste de forma extravagante, pode ser facilmente lido como heterossexual. Além disso, todos os personagens com quem Jamal se envolve romanticamente durante a série são homens masculinizados.

Voltando ao episódio “Piloto”, há um flashback que mostra Lucious levando Jamal ainda pequeno para visitar a mãe que está presa (Cookie ficou presa por 17 anos e é solta no primeiro episódio). Na visita, ela diz a Jamal que ele é diferente e ela sabe disso, que a vida dele vai ser difícil, mas que ela sempre o apoiará. Depois, Jamal tem uma cena em que confronta Lucious e ele diz que a sexualidade do filho é uma escolha. A partir daí já estão definidos os papéis de Cookie e Lucious na relação com Jamal. Em outro flashback, anterior ao da visita, Jamal aparece na sala com um lenço enrolado na cabeça e salto alto nos pés. Lucious agride o filho fora de tela.

Acontece, então, o primeiro número musical solo de Jamal. Ao cantar “Good Enough”, Jamal pede pela aceitação e pelo amor do pai, pede que Lucious veja que ele é bom o suficiente como artista e como filho. Canta que, por mais que ele tente, o pai não enxerga seu esforço. Durante o número, performado em um palco com uma plateia diegética assistindo, são inseridas cenas de flashback que mostram Lucious jogando Jamal em uma lixeira, e Cookie defendendo o garoto depois que ele aparece de salto alto na sala. É um número de transparência, de acordo com as categorias utópicas de Richard Dyer, assim como muitos dos números de Jamal, principalmente quando eles se referem à sexualidade do rapaz ou à sua relação com o pai. A plateia diegética, diferentemente de Lucious, confirma o talento musical de Jamal e o aplaude.

Perfomance de “Good Enough”

No fim do mesmo episódio, Jamal aceita que a mãe cuide de sua carreira, e diz a ela que vai sair do armário. Porém, isso só acontecerá sete episódios depois. No terceiro episódio, “The Devil Quotes Scripture”, depois de mais uma briga com Lucious em que ele joga na cara do filho que quem o sustenta é ele, Jamal decide sair do apartamento pago pelo pai. No quinto episódio, “Dangerous Bonds”, ele grava uma música em que fala justamente disso. Morando em um pequeno apartamento pago com o próprio dinheiro, em “Keep Your Money”, Jamal diz: “Eu não preciso disso, você pode guardar seu dinheiro. Eu não quero se você vai jogar na minha cara”. No sexto episódio, “Out, Damned Spot”, Jamal tem a oportunidade de sair do armário quando, durante uma entrevista, é perguntado se tem alguém especial em sua vida. Ele diz que não, enquanto Michael, seu namorado, assiste a entrevista pela internet. No fim do episódio, mais uma revelação bombástica: uma ex-namorada de Jamal aparece com uma garotinha dizendo ser filha dele. No episódio seguinte, “Our Dancing Days”, Michael põe um fim à relação dos dois. Nesse episódio também se inicia uma aproximação entre Jamal e o pai, principalmente porque Lucious fica feliz com a possibilidade de Jamal ter lhe dado uma neta. E no fim do episódio ele revela à família que tem Esclerose Lateral Amiotrófica, deixando todos comovidos.

No início do oitavo episódio, “The Lyon’s Roar”, Jamal diz a Hakeem que só vai sair do armário depois que o pai morrer. Os dois começam a gravar uma nova versão para a música “You’re So Beautiful”, originalmente lançada por Lucious nos anos 90, para ser relançada em um álbum familiar. Mas eles entram em conflito quando têm que decidir quem vai ter mais destaque na apresentação que ocorrerá na festa promovida pela empresa. Ainda é apresentado um novo interesse amoroso para Jamal, Ryan (Eka Darville), um cineasta contratado por Lucious para gravar um documentário sobre sua vida. Incentivado por Ryan, Jamal decide se assumir gay publicamente cantando sozinho uma versão de “You’re So Beautiful”.

Performance de “You’re So Beautiful”

Jamal introduz sua apresentação dizendo: “O homem mais brilhante que eu conheço me disse que música é verdade. Tenho a honra de nessa noite poder usar a música dele pra explicar a todos vocês algumas das minhas verdades”. Em cima do pequeno palco no centro do salão, Jamal tira a espécie de roupão que usava, como se estivesse se despindo de seus medos, suas amarras, como que se libertando de um peso. Lucious observa o filho, parece orgulhoso de vê-lo cantando sua música. Ele está vestindo um roupão como Jamal vestia há pouco. Agora com roupas mais despojadas, Jamal está ainda mais distante da imagem do pai. Ele substitui “esse é o tipo de música que faz um homem amar uma mulher” por “esse é o tipo de música que faz um homem amar um homem”. É irônico pensar que a música que ele utiliza para sair do armário foi composta pelo pai homofóbico e ao alterar apenas uma palavra na letra, tudo mudou. A expressão de Lucious se transforma completamente, o sorriso desaparece. E no meio da música, mais uma vez o flashback de Jamal pequeno usando salto alto e depois sendo jogado na lata de lixo pelo próprio pai. Jamal termina sua apresentação cantando com ainda mais vigor e sendo ovacionado pela plateia, mais uma vez diegética.

A revelação de Jamal para o mundo repercute na imprensa de forma positiva, mas Lucious ainda não consegue aceitar o filho. Ele cancela o projeto do álbum em família. Mas no décimo primeiro — e penúltimo — episódio da primeira temporada, “Die But Once”, Lucious leva Jamal para a antiga casa onde moravam e os dois começam a trabalhar em uma música nova. Juntos. É um momento de união dos dois, um ponto de virada na história. Lucious diz a Jamal que se ele conseguir os direitos de antigas músicas com um concorrente, o controle da empresa será dele. Jamal então vai atrás do concorrente e ameaça jogá-lo do alto do prédio onde estão. Ele se torna inescrupuloso como o pai. Esse é um grande ponto de virada para o personagem.

Performance de “Nothing to Lose”

No episódio final da temporada, “Who I Am”, Lucious entrega o controle da empresa para Jamal. Com o conflito entre Jamal e Lucious aparentemente resolvido, no início da segunda temporada Jamal fica chato, toma o lado do pai — que sempre o discriminou — e se afasta da mãe — que sempre o apoiou. Ele ainda tem um envolvimento “amoroso” com Skye Summers (participação de Alicia Keys), pondo em questão sua sexualidade. Essa trama é particularmente problemática pois em nenhum momento Jamal se identifica como bissexual. Isso causa um apagamento desse setor da comunidade LGBTQ+, tão discriminado e tido como “confuso”. Essas atitudes afastam o público do personagem. No fim da segunda temporada, porém, Jamal entra novamente em conflito com o pai quando os dois passam a concorrer na mesma categoria de uma premiação musical. Lucious mostra que sua homofobia ainda é latente ao quase agredir o filho dentro do estúdio de gravação onde Jamal estava com um produtor musical (também gay, também masculinizado, e dentro do armário). Ele ainda se aproxima da personagem Freda Gatz (Bre-Z), rapper cujo pai foi morto a mando de Lucious, e recebe um tiro no lugar do pai durante a premiação — tiro dado pela própria Freda (sim, essa série é um novelão). Desse modo, o público volta a sentir uma identificação maior com o personagem.

A homossexualidade de Jamal é explorada durante todos os episódios, mas não é a única coisa que o define. Principalmente depois que ele sai do armário, o personagem ganha novos contornos, novos conflitos. O fato de ele ser gay é apenas mais uma característica do personagem, o que mostra a evolução na representação de personagens homossexuais na TV.

Empire tem seus momentos de brilho, mas também tem momentos decepcionantes (assim como quase tudo na vida — com a exceção de Nutella, que é sempre bom). É importante uma série dramática com um elenco majoritariamente negro ser exibida no horário nobre de um canal aberto dos Estados Unidos. É algo raro de acontecer. Geralmente são séries de comédia, sitcoms, que trazem um elenco todo negro. Ao mostrar um personagem negro e gay, Empire dá visibilidade a duas minorias — e visibilidade é algo importantíssimo para a construção de uma sociedade menos preconceituosa e discriminatória. Mas não se pode deixar de questionar o fato de o personagem Jamal Lyon seguir um padrão heteronormativo e só se envolver romanticamente com outros homens masculinizados, pois isso causa o apagamento de outros setores da comunidade LGBTQ+.

Referências bibliográficas:

ARCENEAUX, Michael. “Black People Are Not More Homophobic Than Everyone Else”. Complex. 28 jan 2015. Disponível em: http://www.complex.com/pop-culture/2015/01/black-people-are-not-more-homophobic-than-everyone-else. Acesso em: 03 de agosto de 2015.

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia”. In: Only Entertainment. London, Routledge, 1992. p. 17–34.

ELIA, John P.; YEP, Gust A. “Queering/Quaring Blackness in Noah’s Arc”. In: PEELE, Thomas (ed). Queer Popular Culture : Literature, Media, Film, and Television. New York: Palgrave Macmillan, 2007. p. 27–40.

--

--

Guilherme Bianco
Musicais: Utopias no Audiovisual

Vejo séries. Muitas séries. E cozinho. E leio. Às vezes escrevo. Estou tentando escrever mais. Mas estou sempre vendo séries.