Fantasia 2000: “Rhapsody In Blue” e as Engrenagens da Metrópole

Victor Guebel
Musicais: Utopias no Audiovisual
6 min readAug 6, 2016

Resumo: Este pequeno texto visa analisar o segmento “Rhapsody In Blue”, parte do musical Fantasia 2000 (Múltiplos diretores(as), Eric Goldberg dirige o segmento em questão, 1999) como uma utopia urbana que usa os desejos dos personagens como representações de como funciona uma grande cidade.

O curta Rhapsody in Blue, parte do longa-metragem Fantasia 2000 funciona como uma grande utopia urbana, uma ode à cidade e seu ritmo frenético. Quatro personagens são acompanhados em seu cotidiano ao longo de um dia: um trabalhador de construção que quer se tornar um músico percussionista, um desempregado procurando trabalho, uma garotinha que quer passar mais tempo com os pais e um homem mais velho casado que está insatisfeito com a esposa autoritária e consumista.

Como o título sugere, a música que acompanha as imagens é uma rapsódia que é um trabalho musical contínuo de variedades que pode assumir diferentes “climas”, podendo incluir elementos de improviso. Um estilo apropriado para mostrar várias situações na cidade com vários personagens. Além disso, por ser apenas um número musical contínuo ao som da rapsódia, múltiplos sentimentos podem ser evocados ao longo da atração.

Primeiro os personagens são introduzidos, a maioria seguindo energeticamente para os seus destinos, a única exceção sendo o desempregado que fica lento e desanimado até a parte final do número. Após todos saírem para a rua, a câmera entra numa estação de metrô, esta entrada inicia a segunda parte, simbolicamente começando a parte mais agitada do dia, o agitado sistema de transporte serve como porta de entrada para a porção que vai mostrar o expediente de trabalho, a mais energética do número.

A garotinha é deixada com uma espécie de tutora enquanto seus pais vão trabalhar, curiosamente é possível vê-los espremidos no metrô numa sequência onde se parodia as grandes lotações em sistemas de transporte público. A garotinha tenta executar várias atividades ao longo do dia, como esportes e artes, enquanto o homem casado precisa acompanhar sua esposa autoritária pelas ruas até uma pet shop de luxo onde uma lista imensa de mimos é comprada para o cachorrinho da madame e o homem é deixado apenas para pagar a conta.

O metrô apertado na hora de ir trabalhar.

Há um curioso efeito de contraste quando é mostrado o personagem trabalhando na construção e comendo nozes feliz e logo em seguida vemos o desempregado tentado a pegar uma maçã que caiu de uma banca de frutas, ele pensa em devolvê-la porém antes mesmo de concluir sua ação é hostilizado por um policial que come a maçã após pegá-la do personagem, talvez para um efeito cínico e cômico. Assim se vangloria a imagem do trabalho e coloca-se o emprego como uma meta importante para a vida, valendo ressaltar que o desempregado sequer pretendia roubar a maçã, ele ia apenas colocá-la de volta na banca.

É possível perceber por pistas visuais que o curta se passa em Nova Iorque em um momento de crise econômica como confirmado por um jornal mostrado logo no começo do curta, provavelmente em algum momento um pouco após a crise de 1929. Nesse contexto, empregos são algo raro e muitíssimo valorizados, principalmente num contexto capitalista que acabou criando o próprio problema da crise.

Após a agitação, todos os quatro protagonistas observam um ringue de patinação no gelo do alto dos prédios onde se encontram e acontece um momento reflexivo onde são expostos os desejos de cada um naquele grande pátio congelado. Neste momento começa a ficar bem claro o conceito de utopia sugerido por Richard Dyer em seu texto Entertainment and Utopia onde as canções servem como construção de uma situação utópica onde os personagens podem realizar seus desejos, transpor seus sentimentos de maneira direta ou até mesmo unir as pessoas através da música. É claro que o conceito se aplica a todo o número, este dia inteiro na cidade é utópico, apenas está sendo apontado o momento em que a ideia fica mais clara pelo teor de escapismo deste momento reflexivo dentro do mundo que já é utópico, criando camadas dentro do número.

Rostos dos personagens sobrepostos ao ringue de gelo que mostra seus desejos. Da esquerda para a direita e de cima para baixo são mostrados: o trabalhador, a garotinha, o desempregado e o casado.

A maior parte do curta se apresenta com energia, desde o trabalhador acordando atrasado para o trabalho e correndo para seu destino até a tutora levando a garotinha a vários lugares procurando uma atividade apropriada para ela. Neste momento de reflexão temos a transparência dos sentimentos dos personagens, projetando seus desejos no gelo: o trabalhador quer tocar numa banda, a garotinha quer passar mais tempo com os pais, o desempregado quer um emprego e o homem casado quer “liberdade”, simbolicamente representado quando ele voa com os pássaros.

O homem casado sonha com a liberdade voando ao lado dos pássaros.

Na parte final do curta é que os personagens realizam seus desejos: o trabalhador termina seu expediente e corre para a noite de talentos num clube de jazz, na mesma obra de onde ele saiu, o desempregado encontra trabalho no turno da noite, a menina sai com os seus pais depois do expediente e o homem casado, por uma ação atrapalhada do (agora ex)desempregado na obra se separa da mulher e segue para o mesmo clube de jazz que o trabalhador foi. Este final une quase todos os personagens na noite de lazer da cidade, com um pequeno indício de comunidade no clube de jazz onde dois dos quatro personagens se reuniram.

No mesmo clube há uma presença abundante de mulheres dançarinas — na verdade apenas o homem casado e os membros da banda são homens, todo o resto do que é visto do clube é composto por dançarinas. É uma forma de definir o local como palco de um show, porém esse tipo de representação pode ter uma conotação negativa, pois se utiliza da objetificação do corpo feminino em grandes quantidades para dar uma ideia de abundância (como nos musicais norte-americanos da depressão, onde a solução para os problemas eram “pilhas de mulheres”, conforme aponta Dyer).

Ainda falando nisso, outro ponto que vale ser interpretado é como todas as figuras femininas adultas proeminentes na narrativa possuem conotações negativas, temos a tutora da garotinha e a esposa do homem casado, ambas são vistas como autoritárias e motivo de desânimo para dois dos protagonistas, principalmente a esposa, que é retratada como a figura da gold-digger, uma mulher consumista que quer sugar o dinheiro de homens para gastar com luxos e não trabalhar. Além do que já foi mencionado, os desejos são majoritariamente de personagens masculinos, apenas a garotinha seria uma exceção, uma criança que quase não tem papel ativo na trama, é apenas carregada de uma lado para o outro por sua tutora, que tenta encaixá-la em padrões.

A última imagem do segmento, a cidade iluminada numa noite de lazer.

Um outro ponto que pode ser interpretado é uma certa ode à criatividade, com exceção novamente do desempregado, todos os personagens possuem algum tipo de restrição posta sobre eles que os atrapalha na sua expressividade: o trabalhador quer ser um músico mas precisa trabalhar na construção para se sustentar, e a garotinha não se encaixa em nenhum dos padrões em que a tutora tenta encaixá-la. O caso do homem casado é bem claro: quando ele tenta dançar com um macaquinho na rua, é repreendido pela esposa, e no fim ele vai participar do show de talentos no mesmo local que o trabalhador foi se apresentar (além do seu desejo de liberdade nas imagens do ringue de patinação também poder dar significado a essa vertente de interpretação).

Conclui-se que toda a atração ilustra basicamente um dia na cidade grande, há uma valorização do trabalho e uma representação utópica do ritmo acelerado da metrópole. A hora da saída é como uma recompensa pelo dever cumprido, os personagens só realizam seus desejos à noite, após terminarem seus expedientes de trabalho ou estudo, com exceção do desempregado que deseja trabalhar e pega o turno da noite. Seus desejos não são realizados por mágica ou por atitudes individuais, são presentes dados após mais um dia fazendo as engrenagens da cidade rodarem.

Bibliografia

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia”. In: Only Entertainment. London: Routledge, 2002. p.19–35.

SEMPERE, Xavier; TERRÉS, Jessica Maria. “ Aproximación sociomusicológica a la Rhapsody in blue de Disney”. In: Perspectiva Caleidoscópica. Letra de Palo, 2013.

PALLANT, Chris. “ Neo-Disney: Recent Developments in Disney Feature”. New Cinemas: Journal of Contemporary Film, vol. 8, 2010, p.103–117.

Filmografia

Fantasia 2000, Múltiplos Diretores(as), Walt Disney Pictures, 74 min, Cor, Som, 1999, EUA.

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