Invisibilidade bi e bifobia em Glee

Claudia Modena
Musicais: Utopias no Audiovisual
7 min readAug 6, 2016

Resumo: No presente artigo, discutiremos como uma série considerada de “grande” representatividade LGBT como Glee (Ryan Murphy, Brad Falchuck e Ian Brennan, 2009–2015) sub-representou a bissexualidade durante toda a sua trama.

Heather Morris como Brittany S. Pierce

Glee (2009–2015) é uma série musical norte americana produzida e transmitida pelo canal Fox, uma criação de Ryan Murphy, Brad Falchuck e Ian Brennan. A série acompanha os estudantes do colegial de McKinley High School que fazem parte do clube do coral da escola. As músicas cantadas pelos alunos relacionam-se diretamente com as questões de suas vidas pessoais, atuando como forma de expressar o que não é possível ser dito, como é insinuado muitas vezes pela treinadora Sue Sylvester (Jane Lynch).

Um dos arcos que Glee aborda é a sexualidade e sua descoberta e posterior exploração. O texto de Whitney Monaghan, Glee: coming out on the U.S. teen television, fala do processo de “sair do armário” nas séries americanas e contrapõe o arco de Kurt Hummel (Chris Colfer), que se assume gay logo no início da série, com o arco de Rickie Vasquez (Wilson Cruz) em My So-Called Life (série norte-americana criada por Winnie Holzman, exibida originalmente nos Estados Unidos de agosto de 1994 a janeiro de 1995) que somente se assume gay ao final de sua trama. Monaghan trabalha com o fato de que o sair do armário já é algo ultrapassado e antiquado para uma série de televisão, pois personagens queer possuem mais histórias além do coming out.

Para Santana Lopez (Naya Rivera), o coming out acontece. Ela passa pelo processo de descoberta sexual durante o Ensino Médio e é retratado na série. Durante as primeiras temporadas, a sexualidade de Santana não é muito bem trabalhada. Ela sai com vários rapazes, mas sempre está próxima de Brittany S. Pierce (Heather Morris) e no episódio 13 da primeira temporada, “Sectionals”, Santana afirma que sexo não é namoro quando questionada sobre seu relacionamento com Noah “Puck” Puckerman (Mark Salling) e Brittany complementa: se fosse, Santana e eu estaríamos namorando. Isso mostra uma relação escondida das duas que somente é afirmada na segunda temporada, episódio 4, “Duets”, quando mostra as duas garotas se beijando. No episódio 18, “Born This Way”, Santana assume para si que é lésbica, mas somente no sexto episódio da terceira temporada, “Mash Off”, ela sai do armário para os outros. Finn Hudson (Cory Moneth) diz que sabe a respeito de Santana e Brittany, mas em nenhum momento as outras pessoas enxergam a possibilidade de Santana ser bissexual. A partir do momento em que ela se dá como não-heterossexual, ela é tida como lésbica.

Brittany, por outro lado, não tem o arco do coming out, tendo sua sexualidade definida assim que sua personagem ganha mais importância na série. Entretanto sua bissexualidade é deixada de lado e muitas vezes invisibilizada.

No episódio 22 da terceira temporada, “New York”, quando Kurt se despede do clube do coral antes da formatura ele diz que no clube do coral não importa se você é gay ou hétero. A bissexualidade não existe para Kurt, que reproduz em vários momentos o discurso de bifobia e invisibilidade bi. No episódio 14 da segunda temporada, “Blame It On The Alcohol”, Blaine Anderson (Darren Criss), assumidamente gay desde o início, beija Rachel Berry (Lea Michelle) quando está bêbado. Quando Blaine conta para Kurt que, apesar da antiga certeza a respeito de ser gay, ele gostou de beijar Rachel e que talvez exista a possibilidade de ele ser bissexual, Kurt encara a bissexualidade como mera confusão, sendo “um termo que os gays usam quando querem ver uma garota e se sentirem um pouco normais”, além de ser o que dizem quando homossexuais ainda estão no armário.

Em vários momentos o termo “bi-curioso” é utilizado na série, o termo implica em mera curiosidade por pessoas de gêneros diferentes, excluindo, portanto, o fato de realmente existir um interesse e atração verdadeiros. O termo é utilizado pela primeira vez pela treinadora Sue Sylvester na primeira temporada, sexto episódio, “Vitamin D”. A partir daí, o termo é utilizado várias vezes, incluindo a própria Brittany que se chama de “bi-curiosa” quando Santana se assume lésbica para ela.

Santana, mesmo assumidamente lésbica, depois de ter relacionamentos com rapazes, “falha” em alguns momentos, quando afirma “sentir coisas” por homens. No episódio 8 da terceira temporada, “Hold On To Sixteen”, ela diz que sentiu coisas com Sam Evans (Chord Overstreet) cantando; três temporadas depois, no episódio 8 também, “Previously Unaired Christmas”, Santana, Rachel e Kurt trabalham como elfos de Papai Noel durante o período natalino e conhecem o “Papai Noel Sexy”, Cody Tolentino (Brice Johnson), e desde o primeiro momento nota-se a atração que ela sente por ele. Por mais que Santana tenha a certeza de que é lésbica, às vezes parece que foi imposto a ela que se não fosse hétero, a única outra opção era ser lésbica.

Na quarta temporada, depois que Santana vai morar em Nova York e termina com Brittany, Brittany começa a sair com Sam e diz que existe uma rede na internet em que todas as mulheres lésbicas sabem o que acontece na vida das outras, e tem medo que elas descubram que ela está saindo com um homem. Brittany mostra que existe uma necessidade de aceitação por parte dos outros. Nesse caso, a bissexualidade não existe, é apenas um codinome para algo que varia entre ser hétero e ser lésbica. Portanto, ao ver dessas moças lésbicas, quando Brittany namora um homem, ela deixa de ser lésbica (o que ela nunca foi).

Com Brittany namorando Sam ainda em Ohio, Santana começa a trabalhar em uma lanchonete, onde conhece Danielle (Demi Lovato), que também trabalha no estabelecimento, é lésbica e flerta com Santana. Na primeira vez em que elas conversam durante o expediente, no segundo episódio da quinta temporada, “Tina In The Sky With Diamonds”, Santana conta que namorou Brittany e fala que ela é bissexual (a primeira vez que alguém da série trata Brittany como bissexual propriamente) e que não tinha chances das duas voltarem. Dani diz a Santana que ela merece “uma deusa 100% lésbica”.

Danielle (Demi Lovato) e Santana Lopez (Naya Rivera)

Santana e Dani cantam juntas Here comes the sun durante o nascer do Sol após o turno da madrugada na lanchonete. Antes disso, Santana conta a Rachel que nunca esteve com uma lésbica de fato, somente bissexuais ou garotas que experimentaram na faculdade. Como é a primeira vez que Santana namora uma outra mulher lésbica, o número das duas fala sobre um novo dia, iluminado, contrapondo-se às supostas trevas de se envolver com alguém bissexual. Um momento utópico de que o envolvimento com pessoas bi não pode resultar em um relacionamento estável.

A falta de visibilidade bi também está presente nas universitárias curiosas, pois durante o casamento de Will Schuester (Matthew Morrison) e Emma Pillsbury (Jayma Mays) na quarta temporada, episódio 14, “I Do”, Quinn Fabray (Diana Agron) e Santana dormem juntas, apenas por curiosidade de Quinn, e Santana fala que agradece às garotas da faculdade por serem curiosas.

Glee mostra que os bissexuais são curiosos e tendem a não ser fiéis às pessoas que estão namorando. Na segunda temporada, Artie Abrams e Brittany estão namorando e Tina Cohen Chang (Jenna Ushkowitz) e Mike Chang (Harry Shum Jr.) também namoram. No episódio 9, “Special Education”, Brittany e Mike tem que ensaiar uma coreografia juntos para o clube do coral e passam muito tempo juntos. Artie e Tina acreditam que Brittany e Mike estão mantendo um caso. Reforçando a errada ideia de que bissexuais são infiéis e não conseguem manter relacionamentos monogâmicos, da mesma forma que Brittany mantinha um relacionamento escondido com Santana enquanto namorava Artie. Entretanto neste caso, Santana a convenceu de que não era traição porque eram duas meninas e as relações sexuais funcionavam diferente.

Além de considerados infiéis, Glee os retrata como insatisfeitos sexualmente. Na quinta temporada, segundo episódio, “Tina In The Sky With Diamonds”, quando Santana começa a namorar Dani, ela está conversando com Rachel e Kurt e analisa as alegrias dos três naquele momento.

Santana: Não é incrível como a vida fica fácil quando você não dá a mínima? Olhem, Hummel vai se casar, Berry está toda segura, e eu arrumei uma namorada que não vai me trocar por um pênis.

Santana diz isso como se um gênero não satisfizesse quem é bi. Estar com uma mulher não é suficiente por não ter um pênis, estar com um homem não é suficiente por não ter uma vagina. Glee passa uma visão completamente deturpada desse grupo queer.

Glee muitas vezes é considerada uma série cheia de representatividade LGBTTQ+, entretanto quando se analisa além das camadas visuais dos personagens, pode-se ver que a série mal representa o que propõe. Os personagens pregam a aceitação, a diversidade, a contemplação da sexualidade de cada um. Porém suas ações e o que é dito confronta essa aceitação, justamente o contrário, as personagens de Glee ignoram a existência do que é diferente, a rejeitam e pregam sua rejeição. Glee negligencia os bissexuais e impõe atos bifóbicos em seus discursos. Não só a série negligencia essas pessoas, como os próprios autores, pois a deficiência de textos que tratem deste assunto é enorme, existem textos que falam sobre a homossexualidade apenas, tratam apenas dos personagens gays, com menor ênfase, das lésbicas, mas a bissexualidade é coadjuvante tanto na série como na vida real.

Referências bibliográficas:

MONAGHAN, Whitney. “Glee: coming out on U. S. teen television”. Disponível em: http://www.ejumpcut.org/archive/jc54.2012/Monaghan-Glee/

FRANÇA, Clarice. “A Letra B na Ficção: Problemas com a Representação Bissexual”. Disponível em: https://ideiasemroxo.wordpress.com/2015/06/25/a-letra-b-na-ficcao-problemas-com-a-representacao-bissexual/

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Claudia Modena
Musicais: Utopias no Audiovisual

Uma estudante de cinema tentando se formar e no meio disso tentando fazer umas reflexões sem pé nem cabeça.