Moulin Rouge! e o mito do entretenimento: Uma homenagem aos musicais de bastidores

Stephany Lins
Musicais: Utopias no Audiovisual
7 min readAug 6, 2016

Resumo: O artigo pretende analisar o musical Moulin Rouge de acordo com os preceitos de Jane Feuer sobre o mito do entretenimento e, desta maneira, classificar o musical de 2001 como musical de bastidores que carrega elementos da “Era de Ouro” dos musicais de Hollywood.

Pôster do filme de Baz Luhrmann

Logo após a Grande Depressão, surgiu um movimento no cinema que, de maneira lúdica, levou o espectador à experiência de observar o backstage dos grandes musicais. Os musicais de bastidores trouxeram para o público uma percepção ficcional, porém verossímil, de como a indústria do teatro/cinema reagiu à crise que atingiu muito mais do que a economia estadunidense. Disto surge o que Jane Feuer chama de “mito do entretenimento”, que consiste em uma constante desmistificação e remistificação dos bastidores de um musical, processo a ser explicado mais à frente neste artigo. O objetivo do presente texto é analisar um filme musical feito mais de meio século depois desse movimento— Moulin Rouge! — Amor Em Vermelho (2001), longa-metragem dirigido por Baz Luhrmann — sob a ótica do mito do entretenimento e, desta forma, poder enquadrá-lo como um musical de bastidores.

O filme se passa na França, em 1899, e conta a história de Christian (Ewan McGregor), um escritor inglês que parte de Londres para Paris com o objetivo de se tornar um escritor e seguir os ideais boêmios de verdade, beleza, liberdade e amor. Por acidente, o rapaz se envolve com a produção de um espetáculo da trupe de Toulouse (a personagem, baseada no real pintor pós-impressionista do final do século XIX e conhecido por pintar a vida boêmia parisiense do mesmo período retratado no filme, é interpretada por John Leguizamo, ator presente em outras produções do mesmo diretor) e, assim, conhece Satine (Nicole Kidman), a dançarina mais famosa da casa de espetáculos chamada de Moulin Rouge, dirigida por Harold Zidler (Jim Broadbent). A fim de patrocinar Espetacular, Espetacular (peça idealizada pela trupe em que Christian se insere), Zidler promete Satine ao poderoso Duque (Richard Roxburg). Porém, na noite em que Satine seria apresentada para o Duque, ela o confunde com Christian e acaba se apaixonando pelo último.

A existência do musical Espetacular, Espetacular e o fato de que o filme aborda a vida e dilemas de artistas mesclados com a trama da história de amor proibido entre Satine e Christian são o que o tornam semelhante aos musicais de bastidores e passível de ser visto como um. O texto inclusive exibe uma característica do filme Rua 42, de 1933, que apresenta uma

“(…) estratégia narrativa típica de musicais de bastidores: interlúdios musicais, normalmente na forma de cenas de ensaios que detalham a maturação do show, interpassadas com cenas dramáticas detalhando a maturação do amor fora dos palcos.” (FEUER, 2002, p.31).

Tal descrição se encaixa com o que acontece no número de Come What May, por exemplo, em que os ensaios para Espetacular, Espetacular são intercalados com a solidificação do amor entre Satine e Christian, na medida em que, nesta música, os dois juram amar um ao outro não importa o que aconteça, enquanto enganam o Duque de que não têm mais do que um relacionamento profissional.

Os musicais de bastidores — e de maneira análoga, Moulin Rouge — tem um quê de mito, segundo as definições de Lévi-Strauss. Para o pensador, a aparente estrutura superficial e aleatória de um mito mascara contradições que são reais e, portanto, insolúveis. O gênero musical passa por um processo similar ao mito e recebe muito mais valor do que realmente tem. Assim, o mito do entretenimento é uma “oscilação entre desmistificação e remitificação” (FEUER, 2002, p.32), ou seja, desmistificação do que parece secreto dos bastidores (inacessível ao público) e remistificação para reafirmar a magia que existe em um filme musical. Tal mito do entretenimento pode ser visto sob três óticas, como exposto a seguir.

O mito do entretenimento, segundo a autora, pode ser discutido sob três perspectivas: a do mito da espontaneidade, da integração e do público. A primeira característica, a da espontaneidade, refere-se àquela impressão de naturalidade que os números musicais buscam para “justificar” as performances musicais. Feuer identifica que, para tal, os artistas se utilizam de objetos cênicos para criar um universo no qual a performance musical se torna plausível:

Além disso, a impressão de espontaneidade nestes números deriva de um tipo de bricolagem; os artistas fazem uso de adereços— cortinas, parafernália de cinema, guarda-chuvas, móveis — para criar o mundo imaginário da performance musical. (FEUER, 2002, p.33)*

É possível perceber esta característica em Moulin Rouge na cena em que Harold Zidler apresenta a casa de espetáculo, as dançarinas e as performances pela primeira vez ao espectador. Cortinas, chapéus, saias, todos esses elementos resgatam a quem assiste a sensação de verossimilhança num mundo irreal. Não apenas isso, mas o fato da casa de shows realmente ter existido no século XIV aproxima ainda da realidade.

O entretenimento musical assume, assim, um parentesco natural para processos de vida e as vidas de seus públicos. Ele reivindica para si a performance natural e divertida alegres e na vida. O mito da espontaneidade age (para usar a terminologia de Lévi-Strauss) para tornar o desempenho musical, que na verdade é parte da cultura, parecer parte da natureza (FEUER, 2002, p. 35).

O segundo tipo de mito citado é o da integração, que se aproxima do conceito de Dyer (2002) de comunidade nas performances musicais. O gênero conta com momentos em que a força coletiva é o que move o protagonista, a trama ou uma motivação maior. É a máxima do “unidos venceremos”. No filme, há algumas cenas em que esses momentos acontecem. Seja em El Tango de Roxanne, na qual as pessoas se reúnem para conscientizar o protagonista que se apaixonar por Satine — sendo ela uma prostituta —é uma má ideia, quanto na reprise de Come What May, que os artistas se unem para defender o amor dos dois protagonistas.

El Tango de Roxanne
Os artistas defendem Christian e Satine

O mito da integração também se interliga com a relação entre entretenimento e realização pessoal. O artista só é feliz quando é bem sucedido, e só é bem sucedido quanto entretém. Segundo a autora, “o mito da integração sugere que a realização pessoal caminha lado a lado com o desfrute de entretenimento” (FEUER, 2002, p. 38). Em Moulin Rouge, o sonho de Satine é ser atriz, ou seja, ser bem sucedida, ou seja, Satine só se sentiria completa e uma verdadeira entertainer ao chegar no auge de sua carreira.

Por fim, o mito da audiência reafirma a necessidade de um público — seja na trama ou fora dela — para a mágica das performances musicais aconteçam. E em Moulin Rouge é possível perceber a correlação com o público em ambas esferas. Existem, no filme, performances em que o público é parte presente dela, como é o caso da apresentação de Satine, com Diamonds Are a Girl’s Best Friend/Material Girl, em que os homens que estão no Moulin Rouge para assistir seu show participam ativamente da performance musical. Sem aqueles homens, Satine não teria razão para se apresentar.

Já quanto à relação com o público real, é perceptível na medida em que a trilha sonora é feita com músicas pop que já fazem parte do imaginário do espectador. No caso de Moulin Rouge, um exemplo disso é o medley de Elephant Love Medley, que reúne mais de dez músicas que fazem parte do conhecimento do público.

Segundo Feuer, existem musicais auto-reflexivos, que “nos fazem responder à músicas de outras peças ou filmes musicais” (FEUER, 2002, p.37). Moulin Rouge faz referências a diversos musicais, como A Noviça Rebelde, que aparece em uma cena na qual Christian canta uma das canções mais famosas desse musical. De maneira análoga, Os Homens Preferem As Loiras ganha uma homenagem no filme por meio da performance principal de Satine, assim como é possível perceber uma referência à Bollywood na composição do espetáculo montado pela trupe de Toulouse em parceria com Zidler.

O musicais de bastidores, auto-reflexivos, passam por um intenso processo de desmistificação, por mostrar os bastidores do processo de montar um espetáculo musical — como acontece no número The Show Must Go On e Hindi Sad Diamonds — e de remistificação, de reafirmação da mágica do espetáculo, que é possível perceber pela própria estética do diretor Baz Luhrmann, diretor que utiliza o exagero para salientar a relação com o teatro e sua própria estética como cineasta. Esta relação é citada por Feuer, que afirma que “musicais auto-reflexivos mediam uma contradição entre a performance ao vivo no teatro e a forma congelada do cinema (…)” (FEUER, 2002, p. 38). Em Moulin Rouge, esta relação é estabelecida logo na abertura do filme, onde abre-se uma cortina como num teatro.

Os símbolos teatrais são uma presença forte no filme, desde a abertura, até diversas quebras de quarta parede — como a primeira cena com o Toulouse olhando para a câmera e Spectacular, Spectacular, em que Zidler olha pra câmera como se o espectador fosse o Duque. “Exageros” típicos do teatro como os chapéus voando pra fora da casa de show, a arma que rebate na Torre Eiffel, momentos que reforçam a linha tênue entre o teatro e o cinema em Moulin Rouge.

Moulin Rouge, assim, pode ser considerado um musical de bastidores segundo as definições estabelecidas pela autora Jane Feuer, já que faz parte da lógica de desmistificação e remistificação do universo musical, ao se encaixar nas definições do mito do entretenimento e suas óticas: tanto no mito da espontaneidade — em que o musical se esforça para tornar a performance a mais natural possível — quanto no da integração — em que há um senso de coletividade e participação — e no da audiência — em que o público é um fator de extrema importância para a “mágica” dos musicais.

Notas:

*Todas as traduções de texto presentes neste artigo são de minha autoria.

Referências bibliográficas:

FEUER, Jane. “The Self-reflective Musical and the Myth of Entertainment” (Cap. 2). In: Hollywood Musicals, The Film Reader. London: Routledge, 2002.

COHAN, Steven. “Introduction: Musicals of The Studio Era”. In: Hollywood Musicals, The Film Reader. London: Routledge, 2002

DYER, Richard. “Entertainment and Utopia” In: Hollywood Musicals, The Film Reader. London: Routledge, 2002

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